Se para cada grande cineasta há uma grande atriz - como Fanny Ardant nas mãos do francês François Truffaut e a italiana Monica Vitti nos clássicos de Michelangelo Antonioni -, então ao diretor italiano Pier Paolo Pasolini coube a misteriosa Laura Betti. » Leia mais notícias sobre a 26ª Mostra
A italiana Betti, que atuou em alguns dos principais filmes do diretor, é a responsável pelo documentário poético Pier Paolo Pasolini e a Razão de um Sonho, sobre a vida e obra do cineasta, que será exibido nesta quarta-feira na 26ª Mostra BR de Cinema de São Paulo.
Considerado um dos maiores diretores do pós-guerra, Pasolini foi também um grande poeta, escritor e filósofo, responsável por filmes polêmicos como Teorema, Saló ou 120 Dias de Sodoma e Desajuste Social.
Depois de sua morte misteriosa, aos 53 anos, em 1975 - muitos acreditam que ele foi assassinado por um michê a mando dos setores da extrema direita italiana por ser uma voz inconveniente na Itália -, foi criada a Associação Pier Paolo Pasolini para preservar e divulgar seu legado.
Betti está a cargo da direção da Associação desde 1980 e foi a fundação que tornou viável a maior retrospectiva de Pasolini já realizada no país, com longas-metragens e curtas sendo exibidos pela Mostra BR de São Paulo até 31 de outubro.
CLÁSSICOS E FUTEBOL
Foram dos arquivos desta instituição que saíram muitas das imagens em preto-e-branco que a atriz, hoje com 68 anos, utilizou em A Razão de um Sonho.
Betti não aparece fisicamente na tela, apenas em algumas fotos e nas reproduções de filmes antigos. Sua voz é ouvida recitando um pequeno poema no início e no final da projeção.
O motivo da morte misteriosa de Pasolini não é mencionada, apesar o filme trazer várias cenas de uma multidão seguindo pelas ruas o enterro do artista.
"O filme não tem nada a ver com isso. Trata-se de uma obra muito particular, um filme de poesia", afirmou ela à Reuters em entrevista recente por telefone, de Roma.
A Razão de um Sonho teve pré-estréia mundial no Festival de Cinema de Veneza de 2001. Segundo a atriz, o documentário teve três projeções, todas lotadas.
"Foi fantástico, porque grande parte do público era formada por pessoas muito jovens. E tem sido assim em todos os lugares", disse Betti.
"Não sei explicar o motivo deste interesse jovem. Talvez porque eu tenha feito o máximo para realizar um filme claro, que realmente explicasse Pier Paolo".
No documentário, Pasolini parece bastante à vontade em cena. Em uma das sequências, ele participa de um jogo de futebol realizado entre o elenco de seu último longa, Saló, contra a equipe do filme 1900, de seu colega Bernardo Bertolucci.
O filme também mistura cenas de seus clássicos - como O Evangelho Segundo São Mateus e Mamma Roma. Sobre o primeiro, Pasolini comenta: "resolvi não fazer nenhum tipo de concessão ao público. Resolvi filmar a maior história já escrita de todos tempos".
Laura Betti também usou inúmeras entrevistas de época e depoimentos do diretor sobre o relacionamento problemático com seu pai ("relação estéril mas construtiva", como ele mesmo explica no filme), com a mãe e o falecido irmão.
"Escandalizar é um direito", define Pasolini no longa Ser encandalizado é uma delícia e quem proíbe o escândalo é um moralista.
A RETROSPECTIVA E ALGO MAIS QUE AMIZADE
Laura Betti começou a atuar ao lado de Pasolini na produção de 1963 La Ricotta - terceiro episódio de um filme realizado com Roberto Rossellini, Jean-Luc Godard e Ugo Gregoretti.
Nas décadas de 1960 e 1970, Pasolini criou muita polêmica e chocou a conservadora classe média italiana com seus filmes. Em Teorema, de 1968, Betti interpreta a empregada doméstica Emilia que se infiltra numa família burguesa e faz sexo com todos na casa, subvertendo a ordem das coisas.
Com esse papel, ela ganhou o prêmio Coppa Volpi de melhor atriz no Festival de Veneza.
No total, Betti, que atua na produção de 2002 de Torvino Cervi, Il Quaderno della Spesa, participou de sete filmes de Pasolini. Entre eles estão A Terra vista da Lua (1966), Che cosa sono le Nuvole? (1968), Pocilga (1969) e Saló (1975).
O penúltimo deles, Os Contos de Canterbury, inspirado nos contos de Geoffrey Chaucer, fez parte da Trilogia da Vida (1970 -1974), período em que Pasolini deixou para trás alegorias sociais e políticas radicais para mergulhar nas tradições populares da Idade Média e do Oriente.
Na Trilogia da Vida, além da adaptação de Chaucer, ele rodou Decameron, de Bocaccio, e As Mil e Uma Noites, baseado nos contos árabes de mesmo nome.
Todos esses filmes estão sendo exibidos pela Mostra BR de Cinema de São Paulo, além de curtas-metragens como Totó al Circo, Set de Sana'a e Appunti per un film sull'India (notas de um filmes sobre a Índia).
"Não sou a pessoa certa para responder qual o melhor filme de Paolo, porque eu não vejo o poder de seus filmes de um ponto de vista crítico", afirma Betti.
"Eu não posso pegar um e dizer: esse é o meu preferido. Desajuste Social, Teorema, Saló... Até os curtas são obras-primas, são maravilhosos".
Segundo Betti, se Pasolini estivesse vivo estaria "pintando, escrevendo e fazendo alguns poucos filmes". Ela se recusa a falar sobre o início da amizade entre eles.
"Foi uma verdadeira amizade e algo mais. Só que essa parte da história é minha vida pessoal e eu guardo para mim".