Poucas palavras, olhares intensos, humor indiscutível e profundidade abissal nos sentimentos, essas características estavam presentes em todos os filmes que fizeram sucesso ou foram premiados durante o Sundance Film Festival 2003.Nos últimos 20 anos, os filmes apresentados no festival organizado pelo ator, diretor e ativista Robert Redford apontam tendências em termos de tratamento de roteiros e interpretação que influenciarão a produção cinematográfica do país de Hollywood.
Os filmes apresentados este ano mostram que para os cineastas jovens deste milênio a melhor tradução da rebeldia em relação à temática é simplesmente fazer filmes sobre o desejo atávico de buscar o amor para superar a solidão.
Em relação à forma, a atitude revolucionária está em contar as histórias de um modo quase lacônico, onde as imagens são mais poderosas que os diálogos. Algo bem diferente da violência e verborragia que ganhou prêmios na década de 90.
A melhor tradução desta revolução de paz e amor que invadiu as telas das salas de exibição de Park City é o filme The Station Agent. Escrito e dirigido pelo estreante Tom MacCarthy, o ganhador de melhor roteiro e do "Dramatic Audience Award", o prêmio do público que no mundo do cinema independente equivale a um passaporte para distribuição mundial, acompanhado de milhões de dólares em bilheteria.
A lista de "Cinderelas de Sundance" é grande e inclui nomes como Quentin Tarantino, Ed Burns, Scott Hicks, Kevin Smith. Para Steve Soderbergh esse prêmio funcionou como uma fada-madrinha. Depois do reconhecimento máximo do público, o diretor de Sexo, Mentiras e Videotape fechou um contrato de distribuição com a Miramax, o que fez Sexo... render US$ 24 milhões só nos EUA (o custo foi US$ 1,2 milhões). Meses depois, o filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes.
O fenômeno mais recente, de 1999, A Bruxa de Blair, dirigido por Daniel Mayrick e Eduardo Sanchez, não foi premiado, mas causou impacto no público. Resultado: a fita que custou US$ 10 mil arrecadou US$ 140 milhões nas bilheterias de todo o planeta.
Sundance atrai um público especial. Dos 20 mil visitantes que Park City, uma pequena cidade mineira do século XIX que se tornou estação de esqui nos anos 50 e capital do cinema independente por obra de Robert "Sundance Kid" Redford nos anos 80, recebe durante o festival de filmes independentes, cerca de 14 mil visitantes.
Destes, 82% têm carreiras ligadas ao mundo do cinema - 27% são cineastas, 14% são produtores, 9% são atores. Celebridades hollywoodianas sempre comparecem, mas deixam sua face mais afetada em Los Angeles. "Há um certo respeito pelo estilo despojado que é tradição do festival porque esse é um evento de revelações de caráter cultural e comportamental, não tem espaço para estrelismo", diz o advogado especializado em contratos de cinema, Jonathan Handel.
Neste ano, a premiação ocorreu em um clima de paz e amor. "Houve total consenso entre o júri em todas as categorias, algo inédito na história do festival", disse o jornalista Emanuel Levy. Os outros membros do júri da competição principal são os atores Steve Buscemi (Armageddon), Forest Whitaker (Bird), Tilda Swinton (Orlando) e o diretor David O. Russell. O prêmio de melhor desempenho feminino foi concedido para Patricia Clarkson que atuou em Pieces of April e All the Real Girls, filme de David Gordon Green que ganhou o Prêmio do Júri na categoria Verdade Emocional, além de protagonizar The Sation Agent, vencedor do público.
"O interessante sobre os filmes deste ano é que todos tentam definir o amor por meio da solidão, mas todos mostravam essa trajetória com muito humor", diz Tilda Swinton. A protagonista do filme Orlando diz que o estilo de interpretação que os diretores independentes pedem dos atores está cada vez mais distante da grandiloqüência quase teatral que dominou o cinema americano por boa parte do século XX. "A atuação é cada vez mais sutil e intimista nas expressões", diz a atriz inglesa.
Um dos exemplos mais perfeitos desta tendência está em The Station Agent, o vencedor do publico. O filme conta a história de três pessoas muito diferentes - um anão (Peter Dinklage), um latino namorador (Bobby Cannavale) e uma dona de casa burguesa (Patricia Clarkson) - que têm suas vidas mudadas pela morte recente, iminente ou insuperável de entes queridos - um grande amigo, o pai e um filho de três anos - e procuram anestesiar sua dor com o isolamento.
Entretanto, no cenário bucólico do interior de New Jersey, essas três pessoas descobrem que compartilhando do improvável passatempo de observar trens podem encontrar o caminho para superar suas limitações afetivas. A figura central do filme é o anão Finbar MacBride, interpretado pelo ator Peter Dinklage, que é anão na vida real e não um produto de efeitos especiais.
"O roteiro era muito preciso e o personagem concebido com verdade. Só tive de me concentrar na atuação", diz Dinklage. O conflito central do filme era justamente o desconforto de MacBride em ser anão, levado muito mais a sério por ele do que por seus amigos e pelas mulheres bonitas.
Com estatura mediana e vida medíocre o escriturário Harvey Pekar canaliza suas energias para a expressão das suas insatisfações, cinismo e amargura nas histórias em quadrinhos American Splendor.
A história de Pekar é baseada na sua biografia real e o filme dirigido por Shari Springer Berman e Robert Pulcini toma emprestado seu formato dos documentários - cenas do Pekar real são alternadas com as cenas em que o ator Paul Giamatti o interpreta - e não economiza no humor.
American Splendor mostra uma América de gente condenada a vidas sem perspectivas, que encontram no amor uma boa razão para justificar e superar sua existência mesquinha. Seus personagens centrais são outsiders, feios e cheios de neuroses, mas vivem um grande amor que vence a solidão e o câncer. O charme às avessas desta história arrebatou o Grande Prêmio do Júri.
Na categoria World Cinema, o vencedor foi The Whale Rider, um filme sobre como uma adolescente supera o fato de pertencer ao sexo feminino durante sua luta pela sucessão do seu avô como chefe de uma tribo maori. É nessa categoria que o filme brasileiro Madame Satã, dirigido por Karim Ainouz e estrelado por Lázaro Ramos, concorreu.
Baseado em uma história verdadeira, como a de American Splendor, e mostrando uma forma sui generis de tratar as insatisfações relativas a gênero e condição física, Madame Satã foi a produção que mais chamou a atenção da audiência entre as quatro "made in Brazil" que foram para o festival neste ano. Graças à boa recepção, a história do travesti dos anos 30 deve estrear nos cinemas dos EUA em junho.
Atualmente quem está desfrutando do prazer de ser bem sucedido nas bilheterias da terra de Cidadão Kane é Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, que recebeu seu primeiro prêmio, ainda na forma de roteiro, do Sundance Film Institute.
O filme está fazendo tanto sucesso nos EUA, que a revista Movie Maker que circulou em janeiro fez um perfil do jovem diretor brasileiro. Durval Discos, de Ana Muylaert, que ganhou sete prêmios em Gramado em 2002, passou pelo workshop de roteiros do instituto antes de começar a ser filmado.
Entre os premiados de 2003, a única presença brasileira foi a do ator Bruno Campos, em um dos papéis centrais de Dopamine, filme do diretor estreante Mark Decena que conquistou o Alfred Sloan Prize, prêmio em dinheiro concedido pela primeira vez este ano e que visa incentivar produções com conteúdo científico. Dopamina é a substância que o corpo produz quando estamos nos apaixonando.
Dopamine, o filme, discute se o amor é uma reação químico-fisiológica que acontece a partir das glândulas no cérebro ou se é um sentimento irresistível que nasce misteriosamente no coração.
"Durante nossa pesquisa, descobrimos que há uma lógica química que explica a atração entre as pessoas", diz o co-autor Jim Breitbach. "A coerência destas informações científicas chega a instalar a dúvida sobre a real existência do amor", diz Breitbach.
E esse é o conflito central desse romance ultra contemporâneo passado em San Francisco e que retrata um jovem interpretado por John Linvingston que escolhe o cinismo para escapar da dor de ver sua mãe definhar com Mal de Parkinson e que prefere se relacionar com uma criatura virtual do que com uma namorada.
De repente, tomando cerveja num bar com seu sócio (Bruno Campos), vê uma garota (Sabrina Lloyd) que cataliza a produção de seus hormônios. Enquanto ferormônios, testosterona, estrógeno e dopamina jorram, o velho amor romântico é discutido. "Prefiro achar que o amor é magia", diz o diretor Mark Decena. Eis a prova do quanto os cineastas da nova geração podem ser revolucionários.