|
O testamento escandaloso de Kubrick
Xico Reis, de Nova York
É difícil não ficar impressionado logo nos primeiros segundos de De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut), que Stanley Kubrick (1928 - 1999) terminou pouco antes de morrer de um ataque cardíaco, em março passado, e que estreou há pouco mais de uma semana nos Estados Unidos. Assim que as luzes do cinema se apagam, ela surge, em todo seu esplendor.
"Talvez seja a mais bela imagem de um ser humano já utilizada na abertura de um filme", escreveu, empolgado, o crítico Jack Kroll, na revista Newsweek. Com estudada casualidade, Nicole Kidman, que a câmera focaliza de costas, deixa cair a seus pés um vestido preto. Sem nada por baixo, revela o que, com certeza, é o mais belo par de nádegas da história do cinema.
A cena dura o tempo de um piscar de olhos, mas não demora para que o espectador seja contemplado com uma sucessão de imagens de Nicole, perseguida por uma câmera obsessiva: mais visões das nádegas perfeitas, Nicole urinando, Nicole cheirando o sovaco e aplicando desodorante, absurdamente à vontade.
É noite, final de dezembro, e, em seu amplo apartamento em Central Park West, o médico nova-iorquino Bill Harford (Tom Cruise) e sua mulher, Alice (Nicole, mulher de Cruise na vida real), estão se preparando para uma festa de fim de ano na mansão do milionário Victor Ziegler (Sydney Pollack).
Mais iluminada que uma vitrina da loja Bloomingdale's, a residência de Ziegler serve de palco para acontecimentos significativos: primeiro, Alice, que entorna vários cálices de champanha logo à chegada, é abordada por um aristocrata húngaro, com quem dança um tórrido foxtrot, que por pouco não acaba na horizontal.
Em seguida, Bill, prestes a ser seduzido por uma dupla de modelos disposta a fazê-lo experimentar prazeres desconhecidos, é chamado ao banheiro principal da casa, onde uma jovem, com quem Ziegler se divertia, acabou de desmaiar, nua, numa cadeira, vítima de uma overdose de drogas.
Profissional acima de tudo, indiferente à nudez, o médico reanima a convidada inconveniente.
Na noite seguinte, estimulada por um cigarro de maconha que o casal divide no quarto enquanto recapitula as peripécias da véspera, Alice inicia um longo monólogo que inclui uma confissão: algum tempo antes, quando estiveram hospedados num hotel, ela quase largou marido e filha por causa de um oficial da marinha que vira na recepção do hotel. Só a muito custo, diz a Bill, conseguiu refrear a vontade irresistível de ir para a cama com o desconhecido.
O marido não tem tempo de reagir à confissão: tão logo ela termina, é chamado pela filha de um paciente. Daí em diante, enquanto tortura a mente pensando no que sua mulher faria na cama com o oficial da marinha (as cenas em que dá asas à imaginação são mostradas em preto-e-branco no filme), mergulha numa odisséia nas ruas de Nova York: a filha do paciente, que morrera pouco antes de sua chegada, declara-se apaixonada por ele. Uma bela prostituta oferece-lhe seus serviços.
Pouco depois, testemunha um caso de pedofilia. Finalmente, vai parar numa mansão em estilo gótico, em Long Island, onde milionários promovem uma orgia em que todos os participantes usam máscaras venezianas.
Leia mais: Diretor sempre quis filmar livro de Schnitzler
(Xico Reis/Agência RBS)
|