Busca

Pressione "Enter"

Cobertura completa Sites de cinema Grupos de discussão Colunistas Os melhores filmes Notas dos filmes Todos os filmes Roteiro de cinema O que está passando no Brasil










Cartas do Reichenbomber (Opus 5)

Locarno 99 - A Missão


Quinta-feira, 12 de agosto, 21 horas. A gigantesca sala Revi mal comporta a multidão de quatro mil espectadores que se avoluma em seus corredores. Afinal, iriam ser projetados dois filmes muito esperados da vizinha Itália. Como aperitivo, o curta metragem de estréia de Asia Argento, a jovem e fascinante filha do mestre do bizarro Dario Argento e atual musa do demente Abel Ferrara. O nome do pequeno filme já vinha aguçando a libido da rapaziada Suíça: "La Tua Lingua Sul Mio Cuore". Prato principal, o longa "Beijos e Abraços", de Paulo Virzi ,aguardado com a promessa de ser a única comédia rasgada entre os filmes em concurso.


Asia Argento, a jovem atriz filha de Dario Argento, apresentou seu primeiro curta em Locarno

A sala Fevi, na verdade um enorme ginásio de esportes travestido em cinema durante o evento, foi a alternativa dos organizadores à chuva abundante que impedia a projeção na Piazza Grande. Asia Argeno subiu ao palco debaixo dos aplausos consagradores da enorme platéia. Vestida toda de preto, maquiagem acentuando sua palidez natural, a jovem estrela dark italiana foi apresentada pelo diretor do festifal, Marco Müller, como autêntica herdeira do talento exótico do "papá" Dario. A galera foi ao delírio.

Asia assumiu o microfone e começou a explicar que se tratava de um clip musical de três minutos, todo filmado em Super-8 em sua própria casa, editado e concluído em vídeo. Ao tentar justificar suas frustrações com o suporte vídeo, recebeu a primeira demonstração de desagravo.

Surpreendida com a reação de uma pequena, mas ruidosa parte da platéia, disparou a falar pelos cotovelos. Chamou os músicos do clip ao palco e continuou falando. A platéia passou a assobiar alto e a bater com a mão direita nas laterais das poltronas. Asia e músicos abandonaram o palco perplexos e ressabiados.
Foi a minha primeira lição de Locarno: com a mesma generosidade com que recebe artistas e criadores, espera deles o bom senso na dosagem do popular "simancol".

Em seguida foi a vez de Virzi. Espertos, ele e a equipe foram rápidos nos discursos. Desceu as escadas do palco já consagrado. O filme começa e os primeiros segundos agradam em cheio. Quando terminam os letreiros de abertura sobre as imagens, já se pode perceber a montagem digital feita por um editor de televisão. Os cortes abruptos, quase ofensivos, mais parecem realizados com estilete. Após quinze minutos de primarismo fílmico, saí da sala agachado para não ser descoberto.

Embora tenha encontrado colegas cineastas e críticos visivelmente entediados no bar do Fevi, a platéia se divertiu muito e foi generosa com Verzi.

Naquela noite mal consegui dormir. Meu filme, Dois Córregos, iria enfrentar no dia seguinte o mesmo público que ovacionou o militante Rosa Von Praunhein e o trivial Verzi, mas que havia vaiado a mórbida, talentosa e realmente promissora Asia Argento.

Outra agravante para a minha insônia foram as duas projeções privadas de meu filme no pequeno cine-teato do cassino da praça principal. A primeira projeção havia acontecido para os jornalistas. Mesmo portando crachá de imprensa, não tive a ousadia de assistir a sessão. Foi uma jornalista franco-brasileira quem me deu a boa notícia de que os críticos haviam aplaudido uma cena específica de Dois Córregos: o longo movimento circular em torno do casal se beijando. A rara manifestação pareceu um sinal a favor do filme.

A segunda projeção tinha sido para o júri oficial. O filme brasileiro e o coreagno "Les Insurgès",. de Park Kwang-Su, por estarem programados para o último dia do concurso, foram exibidos para o júri longe do público do Fevi. Pensei que isso pudesse conspirar a favor dos dois filmes. Ledo engano.

Sexta-feira, 13 de agosto, amanheceu um sol esplendoroso projetando-se nas águas do lago Maggiore. Fui conduzido pontualmente às quatro horas para o ginásio Fevi. Disseram-me que haveria um público de duas mil pessoas, mas eu não estava acreditando. Um filme japonês, exibido dois dias antes, mal havia ocupado um quinto da sala.

Encontro o diretor Marco Müller me esperando na entrada. Havia um movimento intenso, e ele sorria, esfregando as mãos: três mil pagantes. As minhas pernas tremeram. Trinta e cinco anos de profissão, doze longas metragens nas costas, e eu nunca havia visto uma multidão tão grande em uma única sessão de meus filmes.

Müller me levou ao palco e exacerbou na apresentação do diretor brasileiro. Lição aprendida no dia anterior, dediquei rapidamente o filme ao meu padrinho de batismo e ao genial Valério Zurlini, com quem penso ter aprendido a filmar sentimentos. Os cronometrados dois minutos me valeram um vibrante "boas-vindas". Foram 112 minutos de tensão quase insuportável, que me deixaram a um passo da apoplexia. Fui arrancado da poltrona na cena em que a personagem Ana Paula adulta cruza de carro com a charrete de Ana Paula jovem. Como disse um amigo, é o Brasil de 69 se despedindo definitivamente do Brasil de hoje.

Como sei que o filme ainda tem quase quatro minutos de letreiros, tente resistir. Sou gentil, mas energicamente, conduzido ao pé do palco. Marco Müller está me esperando. Sobem os primeiros créditos ainda em cima da imagem da charrete se afastando. Os aplausos começam lentos e vão se tornando cada vez mais fortes.

Nesse momento começo a me arrepender dos letreiros de três minutos e meio. As pessoas saem da sala ainda aplaudindo, mas mais da metade permanece atenta às letras das palavras que não compreendem. Deve ser a magia da música de Ivan Lins solada no trumpete pelo bamba Marcio Montarroyos. Quando aparece o nome do filme no rotativo, mais aplausos. Finalmente, Müller me leva ao palco sob o calor da platéia. Arranco da cabeça o boné que andei carregando o dia inteiro como amuleto. Penso em jogar o boné para a galera que não parava de aplaudir. O Jeca em seu dia de pop star exagerou no simancol e saiu descendo as escadas antes da hora. Quase caí!

Refeito da atordoante experiência de estar na arena, me dirijo à Piazza Grande para celebrar os 100 anos de Alfred Hitchcock , com a exibição da cópia restaurada e remasterizada de Os Pássaros. Ao palco é chamada Mrs. Tippi Hedren. As doze mil pessoas que lotam a praça - novo recorde mundial de público pagante em uma única sessão - aplaudem entusiasticamente a conservadíssima mãe de Melanie Griffith. E então, a bela, loira e elegante senhora repete o mesmo equívoco de Ásia Argento. Fala durante 25 minutos das perucas que vertiam sangue artificial, dos pássaros mecânicos que se arrebentavam nas paredes, do prendedor de microfone que rasgou seu vestido e etc...

O pessoa que se sentia mal instalado no final da praça começa a reagir batendo nas laterais das cadeiras. A platéia da frente começa a bater palmas para abafar os ruídos da platéia dos fundos. Alguém dá um toque sutil para Mrs. Hedren e ela se despede. Nova ovação da massa. Ela dá dois passos e volta como se tivesse se esquecido de dizer alguma coisa. Até aqueles que havia tentado abafar o ruído do fundo fizeram coro no assobio característico do "tá boa, nega? ".

A sessão homenagem vai começar. Todas as luzes se apagam, faz-se um silêncio absoluto, e entra a voz do locutor oficial do festival: "Fuora de concorso: De Berrrrrdssss" *

Melhor que ver doze mil pessoas aplaudindo é ouvir doze mil gargalhadas uníssonas.

* Traducão do dialeto: The Birds entend
ós o re-alinhamento dos astros do dia 11.

CARLOS REICHENBACH

O cineasta viajou a Locarno a convite do Ministério da Cultura

Carlos Reichenbach, 54, é cineasta, roteirista, diretor de fotografia e crítico, além de rebelde renitente e utopista assumido nas horas vagas. Suas principais vítimas e afetos serão revelados nesta coluna. Atrás das câmeras desde 1966, Reichenbach está lançando seu 12º longa, Dois Córregos.

Comentários, desgostos, bombas e coquetéis podem ser enviados para: reichenbach@zaz.com.br

Saiba mais:


Biografia

Filmografia

Índice de colunas


Copyright © 1996-1999 ZAZ. Todos os direitos reservados. All rights reserved.