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CARTAS DO REICHENBOMBER - Opus 50 De volta à (ao)Terra, ainda embriagado de tantas imagens deflagradoras, fragmentos de alguns momentos e assuntos instigantes que fizeram a delícia da minha (árdua) estadia na Suíça italiana. 1. Locarno 2.000 foi a consagração do cinema eletrônico. Praticamente, só se falou de "câmera numérica" e da (re) evolução digital. Alguns cineastas de peso elegeram a pequena câmera DVCAM - SONY DSR PC 100A como seu novo instrumento de trabalho. Entre eles, o asceta Alain Cavalier, Marco Bellochio, Clemens Klopenstein e Pedro Costa. Quem estiver interessado em conhecer a nova esferográfica fílmica pode acessar o endereço abaixo: https://bpgprod.sel.sony.com/model.bpg?cat= Se eu tivesse dinheiro agora, e quisesse uma câmera para não sair debaixo do meu braço, seria este o modelo que eu escolheria (sem pestanejar). O interessante é que ela pode ser acrescida e anexada a equipamentos portáteis (custos à parte, claro) como um Vídeo Walkman, que, além de servir como monitor sobressalente, permite fazer edições rápidas no próprio local das filmagens (gravações); e mais, com um pouco mais de grana, compra-se uma míni-câmera CVX-V3, que é operada via walkman e que pode ser amarrada no capacete de um paraquedista ou na braguilha de um ator de filme erótico. https://bpgprod.sel.sony.com/model.bpg?cat= https://bpgprod.sel.sony.com/modelaccessories.bpg?cat= Por estes endereços chega-se ao equipamento ideal daqueles que querem fazer cinema sem depender de ninguém. Em resumo, eis abaixo um "parque industrial" em miniatura, cujo custo não deve exceder 8.000 dólares (metade do preço de uma câmera DVCAM "quase profissional"). a) Câmera Sony DSR PD 100A b) Vídeo Walkman DSRV10 c) DSRM-E1 Editing Adapter d) CVX-V3 Mini Camera e) CVX-V18/NS Nightshot Camera f) DSRME1 - DVCAM Video Walkman Edit Controller g) CVXV3 - Miniature Color Camera Attachment com 3x Zoom Lens Os expertos de plantão podem fazer ressalvas quanto ao número de linhas e outros detalhes técnicos que pressupõem a adesão de mais pessoas na captação das imagens. Para aqueles que buscam um equipamento ágil, prático, fácil de manejar, e abominam aparatos sofisticados e cheios de botões, este set up está mais que bom. Traquitanas high-tech inibem quem está sendo filmado, ou mesmo quem está operando o equipamento. Eu sou testemunha do belo resultado da transferência para o 35 milímetros do material filmado e editado neste processo. 2. Em Locarno, algumas dúvidas foram sanadas sobre o "affaire" Cahiers du Cinema. O Cahiers du Cinema foi vendido ao jornal Le Monde ... Serge Tobiana foi afastado e a revista está passando por uma reformulação total ... o Le Monde quer que ela comece à competir com a Première e a Studio ... mantiveram o Charles Tesson, mas a revista agora tem que vender, senão fecha!
Os leitores fiéis debandaram para o semanário de rock (é quase inacreditável, mas se trata de uma revista inteligente e inovadora) Les Inrockuptibles. Ela era mensal e, na época, chegava fácil no Brasil. Comprei alguns números porque eles sempre abriam espaço para o gênio Brian Wilson, de quem sou fã absoluto. Ao se tornar semanal, a revista injetou ênfase também nas páginas sobre cinema e literatura. Agora, para acompanhá-la regularmente por aqui, é preciso fazer assinatura ou acessar o seu site na Internet. No caderno de cinema escrevem Vincent Ostria (ex-Cahiers), Frederick Bonnaud (que foi meu companheiro de júri), Olivier Père e Serge Kaganski, que são atualmente as referências absolutas dos que amam (e entendem) de cinema na França. No comentado abaixo assinado, capitaneado pela ARP, associação dos cineastas-produtores franceses de plantão - Patrice Leconte, iniciou a polêmica, pagando meia página dos jornais mais importantes para questionar os jornalistas que ignoravam o cinema de apelo comercial feito na França - atacava a crítica de ponta gaulesa (que despreza o "cinema de qualidade" e à americana que certos realizadores franceses realizam e defendem), foram citados nominalmente todos os críticos do jornal Liberation, do Les Inrockuptibles e do extinto Cahiers du Cinema. Bertrand Tavernier, um senhor arrogante que filma sem personalidade e engana nos festivais com conteudismo de ocasião, saiu com as quatro patas contra os "intelectuais de merda" da crítica local. De castigo, acabou transformando as páginas de cinema do Les Inrockuptibles na nova bíblia crítica. Vale a pena conhecer o site da revista, e cravá-lo nos favoritos: https://www.lesinrocks.com/lesinrocks/ Nós, órfãos de Bazin, Valcroze, Commolli, Bergala e Cia, estamos salvos!
3. O ponto alto de Locarno 2.000, indiscutivelmente, foi a mostra dos filmes soviéticos redescobertos recentemente; alguns que, por razões diversas, estiveram ou foram "desaparecidos" durante o regime comunista. Infelizmente, cada filme desta sessão só foi exibido uma única vez (eram muitos), o que obrigou o escriba a fugir da exibição oficial de um vídeo em concurso (é óbvio que o assisti posteriormente em sessão privada). Havia uma expectativa muito especial para conhecer a versão não autorizada de "TRI PESNI O LENINE" (Três Canções Para Lenin) do mago Dziga Vertov (1935 - 35 mm - Preto e Branco - 57'). Trata-se de um filme institucional, um documentário feito para celebrar os dez anos da morte de Lenin. Vertov viajou pelo país inteiro em busca de histórias, canções populares e imagens de arquivo que enalteciam Lenin. O objetivo era realizar uma "sinfonia de idéias" em torno de três temas: a emancipação da mulheres da Ásia central, as homenagens e funerais do chefe desaparecido e as grandes realizações do socialismo. Para facilitar a exibição do filme nas salas de cinema ainda não sonorizadas na época, Vertov montou uma versão diferente e muda da chamada "oficial". Os primeiros vinte minutos são entediantes pois lembram o pior do cinema de propaganda ideológica. Todos trabalham felizes na cidade e no campo, as crianças estudam com entusiasmo, os tratores trafegam solenes e os teares se movem em ritmo dinâmico e compassado; tudo, porque "Lenin está vivo e olha por nós". Que saco! Na seqüência, baixa o espírito do ainda nem nascido Gláuber Rocha, e o filme se transforma num "Di" (o curta interditado de Rocha) premonitório. São mais de duzentas imagens de Lenin no caixão. Da alegria ensaiada do terço inicial, os abundantes closes do povo soviético se transformam em máscaras do desespero. Até aí, nada demais. Porque o governo soviético escondeu por tantos anos essa versão de TRÊS CANÇÕES PARA LENIN? O motivo se revela tão fulgurante quanto os raios de sol que iluminam o banco de jardim preferido de Lenin (aliás, uma cena imóvel digna de antologia). Enquanto o corpo do líder morto é velado por uma multidão silenciosa e desconsolada, a sombra aterrorizante de um abutre margeia o caixão. Aos inúmeros closes expressivos do povo órfão e os detalhes constantes do ilustre cadáver, Dziga Vertov insere três ou quatro planos de Stalin, de cara amarrada, como um mastim raivoso (ou enciumado), um ameaçador anjo da morte ou carrasco irreversível. Visto com a distância do tempo, TRÊS CANÇÕES PARA LENIN parece apontar todos os caminhos para um autêntico cinema político, onde meia dúzia de imagens valem por um século de discursos vazios. No final da sessão, aplausos ecoaram com intensidade na sala de projeção do cassino de Locarno. Mas a atmosfera era de tristeza absoluta, cujos motivos estavam explicitados no filme. Tristeza pela ausência do talento avassalador de Vertov, da subversão corrupta e histórica de uma ideologia magnífica, do cinismo atual e militante que celebra um falso fim das utopias e, sobretudo, da nossa infernal nostalgia por dignidade e seres humanos notáveis, como Lenin. 4. Depois da política, o escândalo.
As manchetes nos suplementos culturais dos jornais suíços questionavam: porque um filme pornográfico e interditado em seu país de origem havia sido selecionado para a competição oficial em 35 milímetros. Só quem conhece mais intimamente o ex-diretor do evento, Marco Müller (que pediu demissão do cargo no final do festival), sabe o quanto ele aprecia uma provocação salutar e libertária. É até engraçado. Em uma das minhas primeiras colunas, aqui neste portal, há um ano atrás, comentei a reação de desagravo da platéia da enorme sala Fevi, quando foi projetado o curta metragem de estréia da deliciosa petutinha Ásia Argento. Em meio aos vídeos em concurso de Locarno 2.000, corri para assistir o tão comentado e polêmico BAISE-MOI, de Virginie Despentes e Coralie Thrin Ti, com a mesma expectativa. Ao chegar, com meia hora de antecedência, à entrada da sala Fevi, já fui me deparando com uma fila imensa. Havia um amigo logo entre os primeiros e, com aquele jeitinho peculiar de brasileiro, acenei como que se tivéssemos combinado o nosso encontro com antecedência. Na hora em que as portas de vidro se abriram para dar vazão à multidão excitada, quase fomos prensados contra a parede. Clima de Maracanã em dia de Fla-Flu. As quatro mil cadeiras da sala Fevi mal puderam acomodar a horda de curiosos e lúbricos locais. No ar, o frisson habitual das ocasiões transgressivas. Como todo e qualquer filme em concurso, diretor e equipe são chamados ao palco para apresentar a obra. Se apresentam publicamente, a escritora e diretora Despentes, a co-diretora e ex-atriz de filme ponô Coralie Thrin Ti e as duas protagonistas Karen Bach e Raffaëla Anderson, veteranas estrelas do cinema explícito. As quatro estão visivelmente constrangidas e, mesmo à distância, é possível perceber que suas pernas estão tremulas. Temo que se repita o longo e nervoso discurso de Ásia Argento, expediente que ocasionou a animosidade da platéia em 99. Raffaëla, mais desinibida, apresenta as outras três e ela não levam mais de trinta segundos para cumprimentar o público e saírem do palco, como que envergonhadas de estarem ali. O público aplaude, com respeito.
O filme começa e a platéia não disfarça o seu assanhamento. Nos primeiros dez minutos nenhuma cena de sexo. Sente-se uma certa frustração no ar. Duas histórias correm paralelas: na primeira, uma prostituta drogada divide o quarto com sua amante insossa; na segunda, uma garota de periferia, com cara de marroquina, sofre para cuidar de um irmão traficante e de seus parceiros truculentos. De repente, uma seqüência de estupro, quase canhestra de tão acanhada. Tudo filmado de longe, onde o gestual agressivo dá a tônica. Na banda sonora, música americana bate-estaca. Surge o primeiro detalhe explícito e eu quase saio da sala. Desde quando estupradores boçais e apressados usam camisinha, e pior, que já venham, de casa, com ela colocada no apetrecho. Por sorte, não demora muito para as duas mulheres se esbarrarem em cena. O filme toma um novo rumo e se transforma numa versão "hard" de THELMA E LOUISE, o cult movie feminista de Riddley Scott. Daí para frente, machões e depravados são abatidos como moscas pelas duas "heroínas". A drogada troca definitivamente o pó pela pólvora. Nesta trajetória transgressiva não faltam mortes desnecessárias. Mas, como as duas pistoleiras são de carne e osso, a matança é atenuada pelos hormônios à serem alimentados. A ordem é matar, e, quando possível, transar e gozar. Nos momentos de tesão é que o filme mostra à que veio. A co-diretora e as duas estrelas entendem do riscado e, nestes momentos, o filme esquenta. Mas aí, a feminista histérica, que se esconde na mente da autora do texto, interfere e joga um balde de água fria no cio incontrolado. E dá-lhe sandice assassina. No segmento mais violento, um boçal é colocado nu e textualmente de quatro. O cano do revólver é introduzido em sua reentrância mais íntima. As garotas mandam ele rebolar. Ele aquiesce. Fazem o idiota reprisar tudo aquilo que ele pagou para elas fazerem alguns minutos antes, com o revólver naquele lugar. Na seqüência, uma delas se entedia e aperta o gatilho. Foi então, que uns duzentos espectadores saíram xingando da sala Fevi, perplexos. Barbárie em excesso entedia até o espectador mais sádico (que deve preferir praticá-la, lógico!). Quando o filme está quase beirando o fascismo, a garota pobre morre estupidamente. A outra se desespera e tenta o suicídio. Não consegue; a polícia chega antes. O que, num outro filme comum, poderia ser enxergado como concessão ou pieguice, em BAISE-MOI parece ser a única conclusão viável. No final, diretoras e protagonistas voltaram a subir no palco. A sala, ainda cheia, recebeu-as com respeito e vários aplausos. Não, BAISE-MOI não é um grande filme, mas é inegável que ele faz o público refletir, por vias transversas. Não é o sexo explícito que incomoda. É, dentro da sua militância feminista descarada, até sovina em termos de detalhes acurados da anatomia feminina. Pior; mesmo o elenco masculino, sem trocadilho, feio pra cacete, parece escolhido sob a égide da provocação. O que choca mesmo, é a violência mostrada como instrumento de libertação. A inexperiência da autora-diretora permite um certo desleixo da gramática cinematográfica, onde o eixo é, constantemente, quebrado sem a menor cerimônia. Mas é justamente o frescor desta falta de intimidade com a linguagem fílmica que torna o filme assistível, ou até surpreendente em sua gratuidade. O que surpreende mesmo é o talento exuberante da atriz Raffaëla Anderson, que um juri corajoso, e menos convencional que o de 35 milímetros em 2.000, teria contemplado com uma menção honrosa. Eis uma atriz expressiva que deveria ser alçada do cinema pornô para o estrelado menos mercenário. De qualquer maneira, vai ser interessante assistir BAISE-MOI com o público exigente da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, caso os produtores aceitem enviar o filme. Quem quiser ir se preparando para a experiência, pode acessar o endereço: https://www.baisemoilesite.com/ O site, inclusive, é muito bem construído e fornece informações detalhadas sobre as duas protagonistas, a escritora e diretora Virginie Despentes e a co-diretora Coralie Thrin Ti. Logo na entrada existe um link onde o internauta pode se manifestar contra a censura que baniu o filme da França. Surpreende também trazer em sua página-home o símbolo do movimento internacional antifascista. Para os mais assanhados, cenas de quatro pequenos traileres. Outra dica: como a distribuidora Frenetic, a mesma que irá lançar BAISE-MOI na Suíça, disponibiliza os endereços eletrônicos de todos os filmes de seu catálogo, vale a pena fazer uma visita ao site do novo filme de Nagisa Oshima, GOHATTO, idealizado especialmente para Cannes 2.000. A Frenetic já possui os direitos de alguns filmes que serão exibidos no Festival de Veneza; quem quiser se informar sobre eles deve acessar: https://frenetic.ch/index.html 5. Finalmente, já por estas plagas, não dá para não registrar uma volta ao obscurantismo. Reproduzo integralmente um e-mail que está circulando entre a classe artística. É inacreditável, mas parece que entramos na máquina do tempo. "Na estréia do espetáculo O INCRÍVEL ENCONTRO, do CENTRO EXPERIMENTAL TEATRO ESCOLA na Fundição Progresso (Rio de Janeiro), elenco e público presentes foram vilipendiados pela truculência de numerosa equipe fardada do juizado de menores e mais uma equipe de policiais civis comandadas por um delegado que invadiram o teatro , camarins e platéia pedindo documentos aos presentes como numa blitz. Atores, publico revoltados protestaram contra o autoritarismo . Tais policiais acionaram a PM alegando que estavam encurralados por pessoas fortemente armadas. A PM chegou com metralhadoras e outras armas em punho e por pouco não aconteceu mais uma tragédia, como inúmeras que presenciamos nesta cidade, neste Brasil.As alegações jurídicas do sr. juiz , justificando as medidas, tem respaldo legal mas analisando o contexto, leis e aplicações, vemos uma situação terrível que poderá atingir a toda a classe e seus espetáculos. É necessário uma classificação do espetáculo, ou seja uma censura. É o teor da Lei. Extinta a censura não existe um órgão para executar esta tarefa. Ora quem irá classificar os espetáculos? Pergunta-se por que este espetáculo foi o escolhido para a aplicação da referida lei e a resposta é simples: porque parte de seu numeroso elenco é formado por negros, pobres, suburbanos. Povo fazendo teatro? Ousando expor sua versão da história do Brasil? Estudantes de segundo grau assistindo? A resposta nos foi dada naquela noite e na manhã seguinte na edição do RJ-TV, na Globo AO VIVO, com o Dr. Siro Darlan chamando o ANTÔNIO PEDRO de 'IGNORANTE E INCOMPETENTE", nunca permitindo a réplica, tal e qual aqueles personagens da ditadura que julgávamos extintos. Este espetáculo tem apoio da SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO ESTADO, SECRETARIA ESTADUAL DE CULTURA, já foi assistido por inúmeras personalidades da cultura do estado e obtém ampla repercussão entre o público que nunca pode ir ao teatro e que comparece ha mais de dez meses aos ensaios públicos do espetáculo; alem de ter cito citado pelo CONSELHO ESTADUAL DE CULTURA pelo trabalho democrático que vem realizando." O e-mail é assinado pelo grande ator Anselmo Vasconcelos. CARLOS REICHENBACH P.S. - Deixo para o próximo mês as cartas recebidas durante a minha ausência. |
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