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"O Exorcista" é relançado com 11 minutos adicionais
Quem viu
a cena em As Confissões de Henry Fool, o mais recente e em parte
escatológico filme de Hal Hartley, vai se lembrar para sempre. A garota
levanta seu vestido e mostra o traseiro para o rapaz que, nauseado, acaba
vomitando nela. Mau gosto para alguns, nostalgia para outros.
Impossível deixar de lembrar de outra apelação famosa à sensibilidade,
digamos, estomacal do espectador. Ela acontece num contexto bem diferente
daquele filme de Hartley. Enquanto este leva a um humor involuntário,
o vômito verde * isso mesmo, verde * da garotinha Regan busca o horror
voluntário. O líquido pegajoso é uma das munições que o diretor William
Friedkin
utilizou para mexer com o público. E conseguiu. Seu filme O Exorcista,
de 1973, está voltando hoje às telas com 11 minutos adicionais. Por isso,
vem com o subtítulo Versão do Diretor, ou seja, o que foi cortado
na sala de montagem, à época do lançamento. Também vem com som digital
remasterizado. Enfim, tudo novinho. Exceto o vômito, que continua com
o mesmo aspecto repugnante.
Foi um fenômeno, tanto cinematográfico como até mesmo social, desses que
só se vê de tempos em tempos numa indústria tão fugaz como a de Hollywood.
É comum ouvir ainda hoje de adultos quarentões que presenciaram a estréia
o relato não só do medo justificável no escurinho do cinema, como também
das conseqüências fora das salas. Pessoas em crise nervosa, situações
comparadas a possessões demoníacas, debates alterados sobre a veracidade
ou não do que era visto na tela. O Exorcista provocou tudo isso
e muito mais. Também foi a gênese de uma escola de imitações, baratas
ou não, que atingiria sua face maior nos filmes "trash" de Jason
e Freddy Krueger e hoje ainda pode ser reconhecido aqui e ali numa produção
adolescente, vulgarizada numa estética moderninha.
Mas nem o diretor Friedkin nem o roteirista William Peter Blatty, que
adaptou sua própria obra, pensavam em fundar um gênero mesmo. Queriam
apenas tratar seriamente, sem excentricidades, um tema desconhecido, misterioso
e que mexia com a imaginação das pessoas. Sabiam, isso sim, que ele poderia
também ser apavorante. E daí o trunfo do filme. Ao apresentar um terreno
fértil de possibilidades e sugestões, os realizadores colocam no mesmo
plano o espectador e uma figura tão ignorante e desesperada com o "oculto"
quanto o outro. Chris MacNeil, uma atriz reconhecida e rica, é a mãe da
garota Regan. Num jogo sintomático e perverso, ela é a platéia.
Chris
(Ellen Burstyn) e Regan (Linda Blair) têm o status de uma família de tanta
normalidade que seus diálogos de afeto e demonstração de felicidade chegam
a irritar de tão melosos. Moram com um mordomo sinistro (ninguém disse
que não sobram clichês) e uma governanta dedicada. Não deixa de ser irônico,
no entanto, a sugestão que falta a figura paterna neste lar. Separado,
ele foi viver em outro país e troca diálogos ríspidos com a ex e não consegue
lembrar o aniversário da única filha. Talvez nos anos 70, tal situação
se demonstrasse mais trágica e isso logo estará estampado na face da pequena
Regan.
Mas o trauma maior ainda está por vir. Regan começa a expor comportamentos
estranhos e é levada ao médico. Sem diagnóstico, suas atitudes pioram:
fala palavrões, cospe nas pessoas, e se desespera quando a cama sacode
freneticamente. O caso evolui para uma morte e para uma das cenas mais
impressionantes da fita, cortada anteriormente. Regan desce uma escada
de costas e de quatro. A equipe médica conclui que Regan pode estar possuída
pelo mal e pronta para um exorcismo. Os doutores, claro, não acreditam,
mas não custa tentar.
É
nesse momento que o filme exibe suas maiores qualidades. Antes do terror
explícito, tanto no rosto deformado da vítima como no ato de banir o demônio,
a história joga com a consciência dos personagens. Já se falou da mãe,
do horror em lutar contra o desconhecido e não saber o que pode salvar
a filha. Há também o dilema do padre Damien Karras (Jason Miller), que
se debate em ter abandonado os cuidados com sua mãe, o que a teria levado
à morte. Os dois caminhos, claro, vão se cruzar. A mãe da possuída procura
Karras por seus conhecimentos sobre exorcismo. Este não se sente seguro
para a execução. Decide chamar um veterano seu colega (Max von Sydow),
o exorcista.
A história de Peter Blatty e o filme de Friedkin são precursores, modernos
mesmo em sua visão do que incomoda o espectador. Mas esse cuidado também
engloba o tema central do enredo. Os realizadores não só tomaram precauções
em não banalizar ou fantasiar o exorcismo, como terminaram por realizar
uma remota previsão. No início de 1999, o Vaticano divulgou um documento
em que revia as normas para a possessão demoníaca, em vigor desde 1614,
alertando sua comunidade que esta nunca deveria ser confundida com casos
psíquicos. Esta preocupação não só é o diagnóstico preferido dos médicos
no filme, como também é o discurso de Karras. Para se convencer e às autoridades
da Igreja, ele toma a iniciativa de registrar sinais de possessão, como
falar línguas estrangeiras ou ter força física descomunal, o caso de Regan.
Quase
perfeito como projeto feito para aterrorizar, O Exorcista criou
também uma outra lenda, a de filme maldito. Ao menos para alguns de seus
participantes, a destacar Linda Blair, que cumpriu trajetória inglória
no cinema depois de Regan e ainda amargou escândalos na vida real por
seu envolvimento com drogas. Num documentário produzido para a TV, em
1998, atores e diretor dão conta do exagero das fofocas que se criaram
em torno das filmagens. Mas não deixam de citar acontecimentos estranhos,
como desaparecimento de objetos e cenas rodadas.
Muito mais fácil de comprovar são os nomes que naufragaram ou conseguiram
se impor a tal maldição. O primeiro time é liderado por Max von Sydow,
o brilhante ator sueco de Ingmar Bergman, seu cavaleiro em O Sétimo
Selo. Também por Ellen Burstyn, cujo respeito na América a leva novamente
ao Oscar este ano. Na contramão, o autor e roteirista e o diretor. O primeiro
não ficou contente com o sucesso da fita original e se meteu a realizar
a segunda seqüência do filme. O caso mais grave, no entanto, é de Friedkin.
Passadas quase três décadas de seu maior evento de público, ele amargou
carreira medíocre, como atestou recentemente com Regras do Jogo,
um drama de julgamento em que o cineasta se impõe perigosamente a favor
de um dos lados da questão, a saber, a decisão de um militar em abrir
fogo contra árabes que invadiram uma embaixada americana. É nítido que
Friedkin ainda se alimenta do gosto por temas internacionais como em Operação
França (1971), seu filme mais saudado, mas nem por isso uma obra-prima.
Assim
como não é também O Exorcista. O que o filme faz muito bem é criar
o clima correto, entre o sombrio e o inesperado, dando o sabor de sutilezas
como não existem mais. É bom avisar ao espectador novato que elas existem,
como na cena em que a mãe de Regan anda pela casa sem perceber as silhuetas
do mal. Para a turma que sacraliza o horror atual na figura de estudantes
adolescentes psicopatas, talvez uma possibilidade de conhecer melhor esse
mundo, digamos, adulto, seja esperar para breve o quarto filme da série,
que lança mão de um recurso muito comum no caça-níquel hollywoodiano,
a lembrar Guerra nas Estrelas e a criação do personagem Hannibal,
o canibal. O novo exorcista vai voltar no tempo, às origens do padre Merrin
(o papel de von Sydow) e sua experiência de espantar demônios na África,
no caso de um garoto possuído. Também ali ele terá seu primeiro encontro
com o mal, o que explica a cena inicial do filme de 1973, um tanto desconexa,
com o mesmo personagem no Iraque. Aí sim, talvez seja o momento de os
quarentões rirem do que sentiram muito medo no passado.(Orlando
Margarido/ Investnews - Gazeta Mercantil)
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