Após as cotas, presença de professores negros avançou pouco
Estudantes, militantes do movimento negro e especialistas falam sobre representatividade nas universidades brasileiras
Em vigor há 10 anos, a Lei de Cotas ampliou a participação de estudantes pretos, pardos e indígenas nas universidades, mas ainda não ampliou a representatividade entre os professores e nas vagas de pós-graduação. É o que apontam estudantes e educadores em universidades federais que veem dificuldades para ampliar a diversidade na academia.
Morador de Guarulhos, Matheus Sena, 22, é estudante de história na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e enxerga como "escasso" a presença de professores negros na instituição que fica na Grande São Paulo.
Um levantamento sobre o corpo docente da EFLCH (Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da Unifesp Guarulhos, realizado em 2018, pelo NNUG (Núcleo Negro Unifesp Guarulhos), ilustra essa percepção de Matheus.
"Nele constou que no total tínhamos 211 professores e que somente 11 deles eram negros e negras", relata Matheus. "Nota-se que não existe um equilíbrio de proporcionalidade."
Matheus vê a presença de um professor negro como um espelho. Um contraponto importante para estudantes negros e das periferias, que conhecem bem o silenciamento desse perfil nos espaços universitários. "Porque tudo que está à sua volta, professores, estudantes leituras, cronogramas de estudo, análise de casos, assim por diante, são brancos", desabafa.
"Enquanto professor negro, antes de chegar com sua intelectualidade, pesquisas, teses e análises, chega primeiro sua raça, sua cor".
Matheus Senna, estudante da Unifesp
Educadores ouvidos pela Agência Mural apontam que a presença de mais professores negros ainda esbarra em questões como a legislação atual, o racismo estrutural e a situação econômica que afeta os estudantes, em especial vindos das periferias.
A começar pelo fato de que entrar e permanecer na universidade já é uma rotina complicada. Soma-se a isso a necessidade de dividir os estudos com o trabalho, realidade de vários estudantes cotistas, e que dificulta o ingresso em projetos de pesquisa e de iniciação científica, uma das portas de entrada para a carreira acadêmica.
"Algumas dessas bolsas também não permitem que você trabalhe e faça iniciação", afirma a professora professora Anna Carolina Venturini, coordenadora de pesquisas do Afro (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial) do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
"As desigualdades continuam existindo e as pessoas enfrentam situações muito desiguais ao longo dos cursos de graduação", ressalta.
Fundador da Uneafro Brasil e membro da Coalizão Negra por Direitos, Douglas Belchior considera que a sociedade brasileira atualmente reconhece mais a importância das cotas, e que chegou a hora de dar o próximo passo que é "gerar e formar um contingente de professores, mestres e doutores que possam ocupar também o espaço enquanto docentes."
"Nós já não sofremos de ausência de profissionais capacitados para ocupar esses lugares, incluindo, os bancos das universidades", assegura Belchior, dando como exemplo a atual participação de negros e negras no mercado editorial do Brasil.
Na visão dele, o que impede a presença de professores negros nas universidades é a alternativa de entrada, por isso ele defende que haja uma legislação que determine a proporcionalidade de professores negros nas universidades. "É o racismo que mantém um muro muito alto impedindo professores negros de ocuparem esses lugares", diz.
Falta de representatividade
Moradora de Diadema, na Grande São Paulo, Dayane Galdino, 21, é estudante de ciências naturais e exatas da UFABC (Universidade Federal do ABC), em Santo André. Tendo sido aluna de escola pública, com renda familiar baixa, negra e com deficiência visual, ela ingressou na universidade como cotista em 2019.
De lá pra cá, teve apenas uma professora negra que ministrou duas matérias da grade, o que foi significativo para ela. "É muito lindo você olhar e se sentir representado por alguém. Sentir que você também pode fazer e alcançar aquilo. Nos faz perceber que não é tão impossível assim, que são poucos, mas tem gente chegando em algum lugar", diz a estudante.
Também cita a ausência de docentes com deficiência, pois poderia ter feito total diferença na trajetória universitária dela. "É importante para criarmos uma uma universidade menos singular, que acolhe todo mundo e não só através de perspectivas, mas através de vivência", acrescenta.
Para além da representatividade, a diversidade também tem impacto nas pesquisas produzidas pela universidade. "É fundamental termos pesquisadores não só em nível de pós-graduação, mas também professores que têm diferentes identidades, perspectivas e trazer esses novos olhares em termos metodológicos e teórico", diz Venturini.
Apesar do cenário de pouca presença atualmente, a pesquisadora é otimista sobre o efeito da Lei de Cotas na ampliação de educadores negros nas faculdades.
"Por termos um contingente maior de estudantes pretos, pardos, indígenas e com deficiência concluindo a graduação, também temos um volume maior desses estudantes em busca de curso de pós-graduação e, depois disso, o acesso deles à docência", afirma.
O ingresso de professores negros é assegurado pela Lei 12.990/2014, que determina a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos da administração federal a candidatos que se declaram negros. Lei que tem validade até 2024.
"Isso vale para vários cargos, tanto do Executivo, quanto das universidades e empresas públicas. Tem uma série de impactos", explica a pesquisadora. "Essa lei acabou sendo replicada também em outros órgãos, como no Judiciário e no Ministério Público, e em alguns estados, em âmbito estadual."
Venturini diz haver falha na implementação da norma, já que ela só se aplica em caso de concursos que estão oferecendo três ou mais vagas - há departamentos que abrem concursos para apenas uma ou duas vagas, o que permite driblar a regra.
De 2014 a 2018, os pesquisadores Luiz Mello e Ubiratan Pereira de Resende estudaram a implementação dessa lei no âmbito das carreiras docentes de 63 universidades federais (UFs) e de 38 institutos federais (IFs). Eles constataram que o percentual previsto na lei estava longe do praticado pelas instituições. Nos editais, apenas 12% das vagas nos IFs eram previstas para negros e nos UFs, somente 5,3 %.
Pós-graduação
Venturini é ainda coordenadora do Observatório de Ações Afirmativas na Pós-Graduação e lembra que não existe uma lei federal que estimule ou que prevê o ingresso de pessoas de grupos excluídos na pós-graduação.
"Seria muito difícil ter uma lei sobre esse tema, porque o ingresso na pós-graduação é muito diverso", comenta. "Cada programa tem o seu processo seletivo e tem modalidades de seleções muito diferentes dentro do programa nas áreas do conhecimento."
A pesquisadora reforça que há programas que fazem prova de idiomas, prova escrita, análise de projeto e currículo, o que torna mais complexo estabelecer uma forma de ingresso para cotistas.
Por outro lado, existe a Portaria Normativa número 13 de 2016 que regulamenta as ações afirmativas para a inclusão de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência nos programas de pós-graduação (mestrado, mestrado profissional e doutorado), em todas as instituições federais de ensino superior do país.
A partir dela muitas universidades criaram ações afirmativas nos programas de pós-graduação. Em sua pesquisa de doutorado, Venturini analisou o crescimento dessas ações, até janeiro de 2018. Análise que deu origem ao Observatório que ela coordena e que tem dados atualizados até dezembro de 2021.
Em três anos, houve um aumento no número de programas com ações afirmativas. Em 2018 eram 737 programas com algum tipo de mecanismo como as cotas. Em 2021, eram 1.531. "Hoje já temos 54% dos programas acadêmicos de universidade pública com ação afirmativa", afirma.
Resultado que ela acredita que impactará no ingresso de professores de diferentes grupos nas universidades.
"Teremos um volume maior de estudantes pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e de vários outros grupos, como quilombolas e trans, ingressando nos programas"
Anna Carolina Venturini, coordenadora de pesquisas do Afro (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial)