Emerson Alcalde leva slam da periferia de SP a Prêmio Jabuti
Projeto de campeonato de poesia em escolas idealizado pelo escritor ganhou maior premiação literária do país, na categoria Fomento à Leitura
O sol do início de tarde embalava crianças correndo e brincando no gramado enquanto um ambulante vendia sorvetes na praça que fica anexa à estação Guilhermina-Esperança da linha vermelha do Metrô, na zona leste da cidade de São Paulo. Sentado em um dos bancos, o escritor e slammaster Emerson Alcalde, 39 anos, desembrulhou a estatueta guardada com cuidado, envolta em plástico e um tecido. “O cara que entregou o Prêmio Jabuti falou esse foi o lugar mais longe que eu já fui. Achei legal porque saiu da Vila Madalena, da Pompeia, onde moram os escritores que estão na cena cultural”, brinca.
Em 2021, o projeto Slam Interescolar SP, criado por Alcalde, ganhou a categoria de Fomento à Leitura no eixo Inovação do maior e mais tradicional prêmio de literatura do Brasil, o Jabuti. “Quando saiu [o resultado], parecia gol em campeonato de futebol de tanto que a gente comemorou, até os vizinhos vieram bater na porta para saber o que tinha acontecido”, ri.
O campeonato de poesia falada acontece desde 2015 e, o que começou com quatro escolas da rede pública na periferia da zona leste na primeira edição, hoje inclui estudantes dos ensinos fundamental II e médio de 130 escolas do estado. Em 2020, também foi transmitida de forma remota uma edição nacional do projeto.
“A gente inscreveu [para concorrer ao prêmio na] edição de 2020, em plena pandemia e com dificuldade de recursos”, conta Alcalde. “Os alunos mandavam em vídeo gravado pelo celular e faziam onde conseguiam wi-fi: terminal de ônibus, praça; e encaminhavam”.
A ideia surgiu quando o escritor retornava de uma competição mundial de slam na França, em 2014, da qual foi vice-campeão. “Vi que existia isso nas escolas parisienses e pensei dá para trazer para cá, com uma adaptação, porque a gente já se apresentava nas escolas e agora são eles [estudantes] que produzem suas poesias”.
As escolas que quiserem participar realizam uma inscrição, é oferecido material pedagógico e são os professores que coordenam a execução em cada sala. “Não é um concurso em que se envia a poesia. Conta a performance, o jeito de gesticular, ritmo, é o spoken word, a poesia falada”, enfatiza. “Os professores também se apropriam do slam, incorporam nas matérias, se vão discutir algum tema, já saiu em livro didático”.
Foi também após esse campeonato na França que Alcalde idealizou o Slam da Guilhermina, que ocorre desde 2012 na praça ao lado da estação homônima, na última sexta-feira do mês, e onde recebeu a reportagem.
“O slam, nos outros países, é uma parada muita boêmia, acontece em teatros, pubs, livrarias, cafeterias, o que poderia ser associado aqui [aos bairros] Vila Madalena, Pompeia, não acontecia na periferia”, explica.
Ele conta que se inspirou no ZAP! Slam, o primeiro criado no Brasil, em 2008, pela atriz, MC, slammer e artista Roberta Estrela D’Alva, que nasceu na zona sul da capital paulista. “A ideia é se conectar com os movimentos e pegar quem está vindo para cá, então a gente faz na praça, no horário de pico, quando a estação fica cheia, as pessoas param e assistem, os poetas vêm para serem ouvidos, mostrar o trabalho”, afirma.
Para ele, é a identificação com os assuntos que envolve o público. “O slam traz temas atuais”, explica. “[O público e os artistas] são pessoas populares, que não foram assistir a um evento cultural, e se for um assunto que a pessoa não se interessa, ela vai embora, então se acontece um fato, já está na poesia e a pessoa faz uma reflexão em cima que ela não vê na TV”, destaca.
Ele também percebe uma diferença das discussões nas escolas e as que são feitas na praça. “Um dos temas que não tinha na minha época e nem na escola se falava, por exemplo, era sobre depressão, saúde mental, suicídio, Setembro Amarelo, que aparece muito nas poesias e nas escolas do Slam Interescolar. Na praça, é mais política, racismo, polícia”.
O cerne é a contestação. “Não temos um partido, mas temos um lado, que é de esquerda na periferia e, dentro dela, entram outras pautas como o feminismo, a LGBTQIA+fobia, o microfone está aberto, as pessoas falam”.
E foi nas vozes de grandes nomes do rap, como Sabotage, que Alcalde passou a se interessar por literatura na adolescência. “Eles cantavam que era importante ler e isso ficou na minha cabeça porque na minha casa não tinha livro, nem nada, meus avôs eram pedreiros, não tinham cultura de ter livro em casa”, lembrou enquanto mostrava alguns dos livros que escreveu, o mais recente chamado Diário Bolivariano (Autonomia Literária, 2019).
Natural de Itaquaquecetuba, na região metropolitana, o escritor é filho único e passou a morar no bairro de Cangaíba, na zona leste da capital, aos oito anos após o falecimento do pai. Hoje, mora no bairro de Artur Alvim. “Sempre na zona leste”, frisa.
“Tinha sido lançado um livro do Ferréz, chamado Capão Pecado, e eu lembro que o Sabotage veio aqui, na Vila Matilde, tinha uma casa de música eletrônica que alugavam para vários eventos, e ele falou desse livro”, conta. “Fui atrás desse livro, não achei, até que encontrei na Galeria do Rock numa loja de discos, eu tinha 19 anos”.
Depois, Alcalde passou a frequentar saraus e se formou em Artes Cênicas. “Fui atrás de mais coisas, os grupos de rap falavam de Sérgio Vaz, da Cooperifa [Cooperativa Cultural da Periferia], eu demorava três horas para ir e para voltar. Ia toda a semana. Um hora, o pessoal falou ‘gostamos de você vir até aqui, mas por que você não faz no seu bairro?’”.
No início, Alcalde pensou em um formato similar ao da Cooperifa: sarau em barzinho. “Mas eu não achava lugar que se identificasse com o meu bairro”, pontua. Depois, mudou de ideia para slam. “Até que teve um dia que eu conheci uma garota numa peça de teatro na Casa de Cultura Vento Leste, vim andando, parei ali em cima e olhei para essa praça: ‘é aqui que eu vou fazer’”.
E, de lá para cá, o Slam da Guilhermina vai completar dez anos em 2022. “O nosso propósito é que eles passem a refletir sobre o mundo, formar politicamente, formar seres humanos críticos que até possam virar artistas, cantores, escritores, mas que se forme enquanto pessoa atuando em qualquer tipo de emprego, isso é mais rico do que descobrir escritores ou formar poetas”, diz, orgulhoso. “Eles vêm aqui e trazem a sua sensibilidade, se expressam”.
Para ele, o teor político do projeto acaba impactando na captação de recursos. “Já conseguimos editais, o próprio livro do Slam Interescolar foi feito por meio de um, mas na edição deste ano [2021] tivemos que fazer vaquinha para comprar os prêmios que foram entregues aos vencedores”, argumenta. “Mexer com o poder incomoda e eu espero que, com o Jabuti, mais portas possam se abrir”.