MC Kauan foi condenado apenas com base na palavra de policiais
Assim como em 70% dos casos envolvendo acusação de tráfico de drogas, única prova contra cantor é depoimento dos PMs que o prenderam em 2014
Assim como em 70% dos casos, Kauan Mariz de Oliveira, conhecido como Koringa ou MC Kauan, foi condenado por tráfico de drogas apenas com base na palavra dos policiais que o prenderam. Ele está preso desde 23 de agosto deste ano. A narrativa comum das prisões que se convertem em condenações por esse tipo de crime também aparece no processo que o funkeiro de 31 anos está respondendo. A história costuma ser essa: PMs em patrulhamento veem uma pessoa em “atitude suspeita”, geralmente de pele negra, que teria jogado alguma sacola na rua. Essa pessoa é abordada por pelo menos uma dupla de policiais: enquanto um faz a revista na pessoa, o outro identifica que a tal sacola contém drogas. Ali, a pessoa é presa em flagrante por tráfico sem nenhuma outra testemunha que não sejam os policiais.
O dado é de um estudo do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), que apontou que em 74% das prisões por tráfico, a palavra dos PMs era a única prova apresentada e em 91% desses casos houve condenação. Foram analisados autos de prisão feitos entre novembro de 2010 e janeiro de 2011. Outra pesquisa mais recente e que mostra resultado parecido foi realizada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro em conjunto com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad): 71% das sentenças de tráfico proferidas entre agosto de 2014 e janeiro de 2016, na região metropolitana e na capital fluminense, tinham apenas policiais como testemunhas.
Kauan está cumprindo uma pena de 4 anos e 2 meses de prisão em regime semiaberto (quando o preso deveria poder sair para trabalhar ou estudar e retorna à unidade prisional para dormir) desde setembro de 2022. Há quatro anos, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) reverteu a sentença de absolvição pelo crime e acolheu um recurso do Ministério Público (MPSP) para condená-lo.
A prisão aconteceu em agosto deste ano, quando tinha sido expedido um mandado depois que o processo transitou em julgado, ou seja, não havia mais possibilidade de recorrer da condenação. Inicialmente, ele cumpriria a pena em regime fechado, o mais rigoroso, mas os advogados do cantor conseguiram um recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para progredir ao semiaberto. De acordo com documentos da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) aos quais a Ponte teve acesso, Kauan trabalha como ajudante geral dentro do Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de Bauru II, no interior paulista. Com isso, ele não deixa a unidade prisional, já que trabalha e dorme no mesmo local.
Na época em que foi detido, a assessoria do jovem publicou uma nota pelo Instagram apontando que ele estava sendo vítima de uma “injustiça”. “Como é de conhecimento de todos, MC Kauan sempre trabalhou, sempre se dedicou à música, nunca se envolveu em nenhuma atividade criminosa”, dizia o texto. Amigos e produtores musicais próximos ao artista contaram ao Terra que ele é “um menino bom, de família”. Outros funkeiros, como MC Daniel, também passaram a usar a expressão “PJL Kauan”, uma abreviação para “paz, justiça e liberdade”.
A dedicação à música permanece mesmo atrás das grades. Em outubro, a esposa do MC, Sabrinna Rosa, publicou também no Instagram que o companheiro estava compondo durante o semiaberto. “O Kauan está bem! Tá seguindo seus dias trabalhando e compondo músicas, que em breve vocês vão ouvir. Ele sabe que seus advogados estão correndo por ele e nós também! Temos 3 recursos para serem julgados em breve, então temos fé”, disse a empresária em um post.
Como o Terra mostrou, o artista também escreveu uma carta tranquilizando os fãs sobre a situação, e se mostrando esperançoso para deixar o presídio. "Breve estou de volta para sacudir os bailes por esse Brasil afora. E quero dizer que esse lugar jamais vai fazer eu deixar de ser um cara da paz, do bem, honesto e sincero", disse.
As redes sociais dele continuam a ser atualizadas com frases motivacionais em que aparece o personagem que o consagrou desde 2014 como um dos principais nomes do funk ostentação na Baixada Santista: o Coringa. O arqui-inimigo de Batman, com o rosto pintado de palhaço e terno colorido, foi apropriado pelo cantor e se tornou uma das principais marcas de suas letras e clipes.
Contando só Facebook e Instagram, seus perfis somam quase 8 milhões de seguidores. No canal do YouTube da produtora KondZilla, seus videoclipes também superam a marca dos milhões de visualizações: o maior deles foi para a música “O Terror Tem Nome” (2017), com mais de 30 milhões de views.
“Por ser cantor de funk, talvez os policiais não gostem”
Tudo começou na madrugada do dia 20 de janeiro de 2014, em São Vicente, no litoral paulista. Na delegacia, os depoimentos prestados pelo então soldado Weslley Aparecido de Souza Ossuna e o cabo Rogério Teixeira Pereira, do 39º Batalhão da Polícia Militar do Interior (BPM/I), que prenderam Kauan, são idênticos. Mas é na fase de juízo, ou seja, quando são ouvidos na presença de um juiz e de um promotor, é que são apontadas contradições nas declarações dos policiais sobre a dinâmica dos fatos.
À delegada Karla Cristina Martins Pereira, os PMs disseram que por volta da 1h50 estavam em uma base fixa localizada na Avenida Embaixador Pedro de Toledo, na altura do número 397, quando avistaram Kauan “pegando uma sacola branca na grade de um edifício próximo e, em seguida, indo para a areia da praia com a referida sacola”.
A dupla disse que foi iniciar a abordagem, mas o jovem teria fugido a pé ao perceber a aproximação da polícia e dispensou a sacola e um celular.Os policiais afirmam que conseguiram abordá-lo no entroncamento da avenida com a Rua Gaspar e que o revistaram. Com Kauan, haveria R$ 327 em dinheiro.
Os PMs disseram que voltaram à areia da praia, “onde Kauan fora visto logo antes pelo mesmo percurso da fuga”, e encontraram um celular Motorola / Nextel e a tal sacola que tinha 19 tubos plásticos de pó branco semelhante à cocaína, 22 frascos plásticos com líquido parecido com loló (lança-perfume) e “objetos que Kauan tinha dispensado na fuga” que não são mencionados que tipo de objetos eram, além da chave do carro do cantor.
O veículo estava em um estacionamento particular na Rua José Bonifácio. Lá, os policiais também fizeram revista e informaram que encontraram R$ 479,10 em espécie. Os PMs relataram que Kauan foi questionado sobre a droga e, segundo eles, teria dito que era usuário. Ele foi levado à delegacia seccional de São Vicente, onde foi autuado em flagrante por tráfico de drogas com base na versão dos PMs e porque foi comprovado que as substâncias eram de fato entorpecentes.
A pedido da Polícia Civil, com aval do Ministério Público, a então juíza Débora Faitarone, da 1ª Vara Criminal de São Vicente, converteu a prisão em flagrante em preventiva (por tempo indeterminado) no mesmo dia. Contudo, voltou atrás no dia seguinte e determinou que respondesse à investigação em liberdade após a defesa do cantor demonstrar que ele não tinha antecedentes criminais, possuía residência fixa e comprovou que trabalha.
Cinco meses depois, em junho de 2014, o promotor Marcio Perez Locatelli acusou Kauan por tráfico de drogas. A denúncia foi acatada por Faitarone e, a partir daí, começou oficialmente a fase de juízo, que é demorado: apresentação de provas, policiais e acusado ouvidos, além de testemunhas, para que ao final o tribunal decida se condena ou absolve.
Houve uma troca de magistradas durante esse período e, em fevereiro de 2018, quem deu esse veredito na 1ª instância foi a juíza Fernanda Menna Pinto Peres. Ela decidiu absolver Kauan por falta de provas. Isso porque, nessa fase de juízo, o soldado Weslley Ossuna e o cabo Rogerio Pereira deram versões “contraditórias” sobre o que aconteceu. Ao mesmo tempo, o funkeiro conseguiu duas testemunhas que falassem a seu favor: um amigo que viu a abordagem e uma mulher que já contratou os shows do MC, para demonstrar que o dinheiro que tinha consigo era fruto do seu trabalho.
De acordo com a sentença, enquanto o soldado relatou que Kauan teria pegado uma sacola da grade de um edifício sem ser entregue por ninguém e que tanto ele quanto o colega fizeram a abordagem e que chamaram uma equipe de apoio depois, o cabo Rogério já disse que o funkeiro recebeu a sacola de uma pessoa nesse prédio que não soube identificar e que outros PMs fizeram a abordagem, mas não compareceram à delegacia.
Também não se dirigiram ao suposto edifício, não foram atrás de testemunhas nem imagens de câmera de segurança, assim como também não fez a Polícia Civil. O único ponto de concordância dos dois PMs é de que Kauan teria dito a eles que era cantor. Os policiais também não souberam precisar o local exato em que pararam o artista para revistá-lo e também não ficou claro se o celular apreendido estava dentro ou fora da sacola.
Um amigo de Kauan relatou no processo que o conhecia “há mais de cinco anos da praia da Biquinha, que ele morou ali perto, são amigos de anos” e que viu a abordagem. Ele disse que estava voltando do bairro de Itararé para casa quando viu Kauan atravessando a rua e viu que ele seria abordado. Com isso, decidiu esperar e observar. Segundo ele, Kauan foi “abordado no calçadão em frente a padaria, na [praia da] Biquinha”.
A testemunha disse que esperou de 20 a 30 minutos quando mais dois policiais chegaram. Como não conseguia ver direito o que estava acontecendo, decidiu se aproximar e perguntou a um dos PMs “se estava tudo bem e se não tinha problema”. Segundo ele, “o policial, de uma forma grosseira, perguntou se ele era advogado do réu [Kauan] e se queria ir junto com ele e mandou ele ‘sair fora’”.
Com isso, decidiu atravessar a rua e continuar observando até que “chegou mais uma viatura e foi então que levaram o Kauan preso”. Como não sabia para onde o cantor tinha sido levado, disse que decidiu avisar a família dele. A testemunha relatou que não viu sacola com Kauan, que ele só tinha um copo na mão, e que sabia que ele costumava ir à praia e aos quiosques durante a folga beber e encontrar amigos.
O rapaz também enfatizou que o local tinha bastante gente nas imediações por ser um período de alta temporada de férias, contrariando os depoimentos dos policiais de que não havia muitas pessoas no local. Ele também foi categórico em dizer que Kauan não tem envolvimento com o tráfico e nem fugiu da abordagem, tendo sido parado quando atravessou a rua.
Em depoimento, Kauan também confirmou a versão do amigo, de que estava bebendo num dia de folga e, na ocasião, estava “atravessando o bar e indo à outra padaria comprar uma bebida que não tinha no bar, momento em que foi abordado pelos policiais”. Disse que os PMs não deram voz de parada e que quando percebeu que estava sendo seguido, “a reação que teve na hora foi apressar o passo para que eles o abordassem pelo menos perto de outras pessoas para que outras pessoas vissem tudo o que aconteceu”. O jovem relatou que “os policiais falavam a todo o momento de música ‘você que é o MC e tal’, ‘você canta funk e tal’” e que depois o colocaram na viatura, foram até o seu carro para fazer vistoria e afirmou que o dinheiro encontrado era fruto do seu trabalho.
O funkeiro apontou que não entendeu o que estava acontecendo, já que estava apenas com dinheiro e documentos e só soube da sacola na delegacia. À juíza e ao promotor, sustentou que “está sendo acusado por algo que não cometeu, talvez por sua profissão, por ser cantor de funk e talvez os policiais não gostem” porque já foi alvo de outras abordagens e que sofre preconceito por conta do estilo musical que canta.
Outra testemunha a favor de Kauan, mas que não presenciou a abordagem, disse que já havia contratado shows do MC outras vezes e que no mês em que a prisão aconteceu a mãe do cantor ligou cancelando a apresentação por conta disso. O evento seria para o filho dela, que pediu de aniversário, e informou que o valor dos cachês variava de R$ 6 mil a R$ 8 mil. Também acrescentou que a relação com o cantor e a família dele era “estritamente profissional” e que “achou estranha toda essa situação, pois ele sempre foi um menino do bem e que ele não tem necessidade disso”.
A juíza Fernanda Menna Pinto Peres entendeu que existia um crime de tráfico, mas não ficou comprovado que o culpado era Kauan porque os policiais teriam demorado a retornar à areia de praia e que “havendo diversas pessoas no local e sendo – como de fato é notório
nessas paragens – o local ponto conhecido de tráfico de drogas, não se teria sequer como afirmar que aquela droga encontrada na areia seria mesmo do réu, porque com ele nada de ilícito foi encontrado, e o réu não foi visto em nenhum ato típico de traficância”.
A magistrada também considerou o conjunto de provas “frágil” e aplicou o entendimento in dubio pro reo, que significa “na dúvida, a favor do réu” e o inocentou. “Os depoimentos policiais são prestigiados pela doutrina e pela jurisprudência, mas não podem ser analisados de forma isolada. Mormente quando apresentam sensíveis contradições. São necessárias outras provas nos autos para fundamentar uma condenação. O fato de serem policiais não garante serem infalíveis em suas ações, principalmente por exercerem função em situação de extremo estresse e atuarem em muitos casos, o que dificulta a lembrança pormenorizada de todos eles”, argumentou.
Na sentença, ela ainda determinou que o caso fosse levado à Corregedoria da PM e à Justiça Militar para apurar suposto crime de falso testemunho. A Ponte procurou as assessorias da Secretaria da Segurança Pública e da Polícia Militar para saber se o soldado Weslley e o cabo Rogerio foram submetidos a essa investigação, mas não houve resposta.
Por outro lado, o Ministério Público não concordou com o resultado e recorreu à 2ª instância. Por 2 votos a 1, a 3ª Câmara de Direito Criminal do TJSP acatou o pedido e decidiu condenar o cantor a 4 anos e 2 meses de prisão, além de pagamento de 416 dias-multa.
O relator Cesár Augusto Andrade de Castro justificou que os policiais não conheciam Kauan e não teriam motivo para mentir. “A jurisprudência tem pacificado o entendimento de que a palavra dos policiais e de outros agentes do serviço público não pode ser infirmada sem motivo comprovado. O simples fato de exercerem a função policial não lhes tira a possibilidade de prestar depoimento em juízo, nem afasta automaticamente a credibilidade de suas narrativas, de sorte que não estão impedidos de depor, nem se pode lançar suspeição sobre suas declarações se para tanto não existirem razões plausíveis”, escreveu.
O desembargador também apontou que o tráfico estava comprovado e que, na visão dele, o funkeiro não tinha demonstrado que fazia “atividade lícita, tornando improvável a obtenção de tal quantidade de entorpecente de outra forma que não o comércio ilegal, ou até mesmo por conta do envolvimento com outros indivíduos versados na mesma criminalidade”. O desembargador Álvaro Castello seguiu o entendimento do colega e determinaram também a prisão preventiva.
A defesa de Kauan tentou recorrer às instâncias superiores, como Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF), mas não conseguiu reverter a condenação. Nesse período, o funkeiro estava recorrendo em liberdade. O acórdão (a decisão colegiada dos desembargadores) transitou em julgado em 9 de agosto de 2022, ou seja, não não havia mais possibilidade de recurso, e, com isso, o mandado de prisão foi expedido.
Agora, os advogados do cantor entraram com um pedido de revisão criminal no tribunal paulista, que é a última alternativa para contestar a condenação no Poder Judiciário após esgotados todos os recursos. Essa solicitação ainda está em análise.
Mais recentemente, por conta das festividades de fim de ano, a advogada Mariaurea Guedes Aniceto entrou com um pedido para que Kauan seja beneficiado com a saída temporária de Natal e Ano Novo. A direção do CPP Bauru II já se manifestou de forma contrária ao apontar que ele ainda não havia completado o cumprimento de um sexto da pena para ter o direito, o que só seria alcançado em abril de 2023, apesar de ter bom comportamento na unidade (ambos são requisitos). A juíza Elaine Cristina Storino Leoni, do Departamento de Execução Criminal (Deecrim) de Bauru, ainda não analisou o pedido até a publicação desta reportagem.
A Ponte tentou entrevistar familiares e localizar a defesa do funkeiro, mas não conseguiu até a publicação.