Do parapapa ao mandrake, funk proibidão segue influenciando
Nascido nas favelas do Rio, funk com temática criminal foi proibido por anos, mas subiu a serra para SP, e se reinventou como 'consciente'
No final dos anos 1990, quando o principal mercado de música do Brasil se cristalizava em torno da pirataria de CDs, uma série de discos extra-oficiais começava a ganhar tração entre os camelôs do Rio de Janeiro. Com capas montadas no Paint, às vezes com o nome escrito à mão em caneta marca-texto na parte fosca das bolachinhas prateadas, estava lá: “Proibidão do rap”. Essas coletâneas foram as primeiras obras físicas de um subgênero do funk que teria vida longa século XXI adentro, tomando emprestado o nome desses CDs, o “funk proibidão”.
Segundo Silvio Essinger, em seu livro Batidão: uma história do funk, de 2005, o primeiro “proibidão” a ganhar atenção no Rio de Janeiro foi uma versão para “Carro velho”, canção do álbum de 1998 da Banda Eva, Eva, Você e Eu, último disco do grupo com Ivete Sangalo como vocalista. A versão, que já rodou por aí nas vozes de Mister Catra e da dupla Cidinho e Doca, entre outras, começa direto no refrão, mas ou menos assim:
“Cheiro de pneu queimado
Carburador furado
O X-9 foi torrado
Eu quero contenção do lado
Tem tira no miolo e meu fuzil tá destravado”
Estava ali, registrado em canção, uma prática nefasta das facções criminosas fluminenses: o “microondas”, castigo reservado aos delatores, que eram envoltos em pneus velhos, banhados com gasolina e imolados vivos - em junho de 2002 esse foi o destino do jornalista da Rede Globo Tim Lopes, capturado pelo bando do traficante Elias Maluco enquanto fazia gravações escondidas em um baile funk na Vila Cruzeiro, zona norte da capital carioca.
Carlos Palombini, professor de musicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do tema, diz que as origens desse subgênero do funk são mais antigas, remontando ao “Funk do Parapapa”, em 1994.
“Segundo o que o MC Mascote me disse em uma convenção, primeiro veio a versão de Cidinho e Doca, e só depois que o MC Leonardo fez o ‘Rap das Armas’”, conta, em referência à faixa incluída na trilha sonora de “Tropa de Elite” e um dos funks cariocas mais conhecidos no mundo, aquele que começa com “o Morro do Dendê é ruim de invadir/ Nós com os alemão vamo se divertir”.
É chamado de “proibidão” o funk que aborda tematicamente a criminalidade a partir de uma perspectiva "neutra", sem julgamentos do criminoso em questão - às vezes cantado em primeira pessoa, assume um aspecto de “crônica” na vida à margem do Estado.
A temática do crime não é novidade na música popular: há canções italianas celebrando a Máfia, no México existem os narcorridos, subgênero do tradicional corrido que exaltam as facções de narcotraficantes locais, os fora-da-lei do faroeste do country norte-americano influenciaram a figura do “rude boy” da música jamaicana.
Mesmo no Brasil a tradição não é nova, e vai de sambas de Noel Rosa, como “Século do Progresso”, do valente “muito sério” que ensinava aos “pacatos o rumo do cemitério” e acaba morrendo de tiro certo (afinal, no "século do progresso” o revólver veio acabar com a valentia), ao “Charles Anjo 45”, de Jorge Ben, um “Robin Hood dos morros” que comanda a criminalidade mas também traz assistência à comunidade, e, claro, a fauna de malandros de Bezerra da Silva - o “defunto caguete”, a “reunião de bacanas” (onde “se gritar pega ladrão não sobra um”) e o maconheiro bem humorado que responde ao delegado que “se Leonardo da vinte, por que é que eu não posso dar dois?”.
Palombini aponta que o nome “proibidão” se cristalizou a partir da Lei 3.410 de 2000, aprovada pela Assembleia Estadual do Rio de Janeiro (Alerj), que, entre outros, proibia “a execução de músicas e procedimentos de apologia ao crime” em bailes. A lei foi revogada em 2008, mas o nome permaneceu.
“Na prática, a proibição vale ou não a depender de acordos firmados entre as unidades policiais e lideranças locais do comércio de substâncias tornadas ilícitas. Por fim, tais acordos, bem como a legislação, dependem dos interesses da política partidária, majoritariamente, na defesa dos interesses do grande capital, tornados consensuais através dos oligopólios de comunicação”, diz o professor.
A lei também criou uma confusão entre os subgêneros temáticos do funk carioca, que persiste até hoje em setores da imprensa, que usam a expressão “proibidão” para se referir ao funk “pornográfico” ou “putaria” - temas também vetados na referida lei. Para Palombini, quem usa “proibidão” como sinônimo para o funk com letras de sexualidade explícita o faz por “pudor”: “No círculo interno do funk, digamos [DJs, produtores, letristas, compositores, etc], ninguém faz esse tipo de confusão”, comenta.
Ostentação fora do normal
O proibidão também é o estilo responsável pela produção do funk brasileiro deixar de ser exclusividade carioca. O processo de consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) como facção hegemônica no estado de São Paulo trouxe a reboque uma nova trilha sonora: o funk da Baixada Santista.
Como em outras praças (por exemplo, Belo Horizonte), o funk produzido na região começou com letras de duplo sentido sexualizadas de duplas como Renatinho e Alemão e Jorginho e Daniel, mas foi com o proibidão que o funk paulista se consolidou. Nomes como MC Primo, Bó da Catarina, Neguinho do Kaxeta, Amaral e Boy do Charmes começaram a cantar suas crônicas da criminalidade, numa chave um pouco diferente da usada pelo rap nacional, e colocaram o funk do litoral paulista no mapa.
Para o professor Palombini, essa migração se deu durante um processo de perseguição do proibidão pelas forças de segurança do Rio de Janeiro. “É um momento em que o funk carioca está sob ataque tanto pelo projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), cuja primeira unidade é instalada no morro Santa Marta, em 2008, e que atinge os Complexos da Penha e do Alemão em 2010 com a prisão dos cinco MCs: Frank, Max, Smith, Didô e Tikão”, lembra.
GG Albuquerque, jornalista e pesquisador, considera que existem algumas características que diferenciam o proibidão carioca de sua contraparte paulista. “No Rio de Janeiro o proibidão nomeia mais as facções, vai falar do Comando Vermelho (CV), enquanto em São Paulo, na Baixada, é mais generalista”, falando de assaltos a banco sem necessariamente celebrar as organizações criminosas.
Tocando em bailes e carros, o som da Baixada subiu a Serra do Mar e fez sua primeira parada na zona leste da capital paulista, onde MCs como Dede e Daleste começaram a soltar suas rimas. E foi na capital que esse tipo de funk iria se transmutar e mudar para sempre a cara do gênero, quando no início dos anos 2010 nasceria o “funk ostentação”, com em parte pioneiros vindos do proibidão, como o Mc Zói de Gato.
Sem, inicialmente, uma mudança muito drástica na musicalidade, o funk ostentação foi uma escolha temática que permitiu aos funkeiros paulistas acessarem outros mercados incluindo rádio e mesmo a televisão.
Felipe Maia, jornalista e etnomusicólogo (da École des hautes études en sciences sociales e da Universidade Paris-Nanterre), aponta que essa mudança ocorreu ao mesmo tempo em que São Paulo passou a profissionalizar funk.
“O funk ostentação é uma questão de sobrevivência, uma questão de acesso, uma inteligência de mercado, uma inteligência musical. É a primeira via com a qual os funkeiros vão acessar certos lugares. Mas também é uma resposta a esse novo modelo de produção. Se na Baixada a produção de funk não era profissional, você teria essa relação mais direta com a criminalidade, eventualmente você vai ver os caras cantando uma música sobre o ‘Primeiro’ [Comando da Capital]. Na capital é muito rápida essa passagem. Você pega o MC Dede, que começou a cantar em 2009, em 2011 ele já tinha 4 perfil no Orkut, todos estourados. Não era ‘só’ um MC da Cidade Tiradentes, já era de São Paulo inteira”.
Para Palombini, o funk ostentação é uma espécie de “sobrevida” do proibidão. “Já haviam temáticas de ostentação no proibidão - aliás, no funk em geral, é só pegar ‘Camisa da Osklen’ do MC Praga, por exemplo”.
A violência no entorno do proibidão, com os assassinatos de nomes importantes como Felipe Boladão, MC Primo e Daleste, também é um ponto levantado por Albuquerque para a migração temática de muitos MCs. “Você teve casos de vários MCs que sofreram atentados, morreram. E, claro, a ampliação de público que um MC pode atingir, vários MCs falam isso, como o Neguinho do Kaxeta”.
Literalmente um sobrevivente, Neguinho do Kaxeta, que sofreu um atentado e foi baleado com 11 tiros em junho de 2012, é um exemplo da transição bem sucedida entre o proibidão e o funk ostentação: hoje é agenciado pela GR6, uma das maiores produtoras de funk de São Paulo, e acumula centenas de milhões de views em funks como “Sou vitorioso”, parceria com Lele JP.
Além de paulistas como Dede, MCs cariocas também transitaram do proibidão para outros subgêneros. “O Didô foi para o gospel, e o MC Smith tentou uma carreira mais para o pop”, aponta Palombini.
É proibido proibir
O professor da UFMG acredita que o que se chamava de proibidão não existe mais, e costuma se referir ao gênero no passado. “O proibidão foi uma escola, que vai dos anos 1990 até 2014, no máximo 2016. No proibidão, o MC é uma espécie de mediador entre a comunidade e o ‘movimento’. O proibidão recupera a humanidade do fora da lei. Isso eu já acho em si uma justificativa para o proibidão”, explica Palombini.
O MC Poze, principal nome vindo recentemente do proibidão, é para ele um “revival”: “era um proibidão intempestivo, um proibidão que não apresentava inovação, um proibidão meio que congelado, que não retratava a fluência, a vida, a evolução do subgênero. Tanto que ele agora passou maravilhosamente bem do proibidão ao trap, onde ele se dá muito bem”.
Já Albuquerque acha que o proibidão segue com sobrevida, ganhando até novos atores. “Hoje, você tem até proibidão de miliciano no Rio de Janeiro, mas o CV segue sendo o principal, porque criou uma cultura do narcotráfico, não tem o domínio só do território, mas também da cultura. Hoje você vê crianças fazendo o símbolo do CV com as mãos, sem nem saber a dimensão disso, isso mostra que o CV virou uma entidade sociocultural”.
Para o etnomusicólogo Felipe Maia, o legado do proibidão segue em São Paulo na nova geração do funk dito “consciente”, de nomes como Paulin da Capital e Salvador da Rima, que vêm ganhando destaque nos últimos dois anos.
“O Paulin da Capital vai retomar essa ideia de crônica, que era também muito presente no rap nacional. Esse tipo de funk começou a ser gestado há uns três anos, mas ganhou força agora. E num momento onde as pessoas estão trancadas em casa, convivendo com seus familiares, sua avó vai escutar a música que você está ouvindo. E qual música você vai escutar? Vai escutar uma música que pega mal com a sua veia?”, brinca.
Com centenas de milhões de views no YouTube em suas faixas, Paulin da Capital, autor de hits como “Quintal dos robôs” e “Acredita”, ficou preso por quatro anos e compôs 100 músicas quando ainda estava na cadeia. Salvador da Rima, autor dos imortais versos “tem que colocar o cuzão do Datena no ar / E falar que os mandrake deu perdido na polícia” (de “Vergonha pra Mídia”), se aproxima de meio bilhão de visualizações também no YouTube, entre participações e faixas solo, e foi agredido por PMs no início deste ano em São Paulo.
“Aí vai entrar a figura do ‘mandrake’. Quem é o mandrake? É o malandro. Se tiver que fazer um corre errado [cometer crime], ele vai, ele pega uma moto pra dar um pião no baile. Mas ele corre por ele, faz aquilo pela comunidade dele. Essa figura atualiza um pouco essa ideia de criminalidade, mas de uma maneira bem diluída. Sempre colocando a questão do anti-herói, de alguém que vai se opor à polícia. Você encontra esse discurso contra as forças da ordem no Paulin da Capital, o Salvador da Rima, de ‘Vergonha Pra Mídia’ sempre vai fazer esse contraponto contra a polícia também”, explica Maia.
Felipe ainda aponta para um discurso menos explícito nos filhos do proibidão: “acho que o que mais define São Paulo é essa questão da discrição: quem é, não fala, não se aparece. E isso tá um pouco na música, a figura do mandrake é essa: quem ‘é’, não fala gíria, mora em outro pico”. Mas isso também se aplica até ao que é produzido no Rio de Janeiro hoje: “o proibidão que tentam colocar na conta do Poze nem de longe é agressivo como eram outros proibidões. Pega ‘Tipo Colômbia’, do MC Frank, dos anos 2010, é um ‘horrorcore’ explícito, não fala de facção, mas é muito mais agressivo”, finaliza.