Caipora, o pai-do-mato
(Brasil)
Toda a manhã, bem cedinho, dois compadres iam juntos para a mata, cortar lenha.
A mata era uma beleza. Clara-escura, com tudo quanto é tipo de planta. E mais o canto dos pássaros e um mundaréu de borboletas amarelas!
Com seus machados os lenhadores iam cortando a madeira. Compadre Tonho procurava cortar sempre os galhos mais baixos, pra não ferir muito as árvores. E vivia chamando a atenção do Compadre Chico, que cortava troncos, quebrava galhos sem necessidade e às vezes até matava um bicho, só pra treinar a pontaria.
Um dia, o Compadre Chico não foi. Tonho entrou sozinho na mata, e parecia que estava tudo diferente. Uns barulhos esquisitos, uns sussuros, estalos de folhas secas, o riacho no meio das pedras mais barulhento do que nunca...Aqui e ali, a corrida de um gato-do-mato ou o bater das asas de um pássaro. Um vento frio de doer, e um silêncio estranho entre um som e outro.
Compadre Tonho apertou o cabo do machado, as juntas doendo de frio. Forçou a vista: era difÃcil enxergar na escuridão cinzenta da mata.
De repente, apertou mais os olhos: não era possÃvel! Devia estar vendo coisas...Mas não: lá adiante, aquele vulto escuro, aquela imagem...Esfregou os olhos, olhou de novo: a visagem continuava lá. Atrás dela, parecia que vinham todos os bichos do mundo, grandes e pequenos, de penas e de pelos, comedores de carne e de ervas.
O coração do lenhador disparou. Era o Caipora, o pai-do-mato!
O lenhador, paralisado de medo, viu a figura vindo, chegando mais perto, bem devagar. Era enorme, verde da cabeça aos pés, parecendo uma planta semovente.
Os membros grossos, grandes, o corpo coberto de pêlos grossos como cerdas. Os braços, compridos, quase tocavam o chão. Focinho de cachorro-do-mato, orelhas em pé, curtas, de pontas viradas pra fora.
Imóvel, sem fala, o lenhador se lembrava das histórias sobre o Caipora: que dá risada como quaquer pessoa. Que fuma cigarro de palha e pito de barro. Que persegue quem estraga as plantas e mata bichos sem necessidade... Que é castanho, de pêlos se arratando no chão - mas este era verde, bem verde...
O coisa parou. Tinha os pés virados: Dedos pra trás, calcanhares pra frente. O homem tremeu. Então, de repente, o Caipora perguntou, com voz rouca:
-Tem fumo aÃ, siô?
- E...e...eu? Fumo?
O lenhador, estatelado, olhava para figura à sua frente.
- Tem fumo? - Repetiu o bicho num ronco surdo, estendendo a mão peluda.
O lenhador parou de tremer. Mesmo assim, não conseguia falar. Acenou que sim, abriu a capanga, retirou um naco de fumo e estendeu.
Mais que depressa o Caipora agarrou o fumo e saiu trotando, com a bicharada atrás. Compadre Tonho saltou de lado para dar passagem e ficou olhando. O rastro do Caipora se imprimia ao contrário no chão: as pegadas viradas pra cá, enquanto o dono delas corria pra lá...
Atrás, a bicharada: cachorros-do-mato, pacas, caititus, antas, capivaras, jaburus...No ar, acima da cabeça dele, a suave revoada das rolas.
O lenhador enxugou o suor da testa:
- Ufa! Vom'trabalhar! - resmungou. - Arre, que não ganhei pro susto!
Nesse dia ele voltou tarde, com o carrinho pesado de lenha boa, madeira de lei, que tinha encontrado não sabia como. A alma, essa estava leve. Uma estranha alegria tomou conta do coração dele. Pôs-se a cantar, um pouco desafinado pela falta de hábito...
No outro dia, ascendeu o forno para fabricar o carvão que ia vender na cidade. Os troncos eram tão lisos e bonitos, tão agradáveis à vista que seu coração se aqueceu de novo. A lenha crepitava, nunca acabava de queimar. Quando Compadre Tonho apagou com água as brasas vermelhas, o carvão continuou cintilando seu negro brilho. Ele ficou sabendo então que, nesse dia, a mão de um deus carinhoso o havia ajudado.
Na vila, os carvões brilhantes do Compadre Tonho causaram alvoroço.
- Isso é de muito valor, moço!
- Quer comprar?
- Eu não! Sei lá se foram roubados!
- Que é isso? Eu sou lenhador! Fazer carvão é o meu ofÃcio! Então eu lá preciso roubar carvão?
- Onde achou isso?
- Pra falar a verdade, não achei. Queimei a lenha, e sobrou esse carvão no meio.
E o lenhador contou a viagem daquele dia, o encontro com o bicho dos pés virados.
- Ah! - disse o outro. - É o pai-do-mato!
- Acho que era. Mas eu lá tenho alguma coisa com o Caipora? Diz que o bicho enfeitiça e persegue quem anda no mato...
- Nem sempre. Você deu fumo pro pitinho dele, ganhou uma fortuna. Sorte sua!
Pelo sim, pelo não, Compadre Tonho não foi mais à floresta. Compadre Chico, seu companheiro, ouviu falar de sua sorte. Invejoso, foi atrás dele, pra arrancar o segredo de sua riqueza. Mas só ouviu uns grunidos e umas desculpas:
Sei não...Penso que a minha sorte foi por causa do encontro, mas não tenho certeza...
E ficou nisso.
Um belo dia, Compadre Chico anadava pela mata quando escutou um tropel. E viu: passou correndo uma criatura esquisita, de pés virados. Atrás dela um mundaréu de bichos fazendo um barulhão. O caipora!
O homem correu atrás, oferecido, gritando, até que o pai-do-mato parou. O lenhador tremia de cobiça. E foi logo perguntando:
- Pode me dar daquele carvão? Eu tenho fumo aqui, no embornal. Tenho muito!
A cara do bicho escureceu. Dos seus olhos saÃram chispas verdes de ódio. Em volta, tudo virou um silêncio só. Nem uma folhinha se mexia. Com um ronco surdo, o bicho avançou sobre o homem e o agarrou...
E daquele dia em diante, surgiu uma nova assombração nas matas: um homem que fica vagando para baixo e para cima, que nem alma penada, virado pelo avesso...
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