Ricardo Ivanov / Redação TerraVeja Chat Show com o cantor
Marcelo Nova conseguiu transformar sua rabugice em um dom para o bom-humor ácido, circense, quase histriônico. Logo que entrou no estúdio do Terra, em que fez um Chat Show nesta segunda-feira, foi logo dizendo sobre o lanche para a banda: "Não alimenta a rapaziada que eles não estão acostumados a bons tratos". Com seu inseparável óculos escuros e uma surrada malha vinho, quase não conseguiu chegar em tempo para a apresentação, devido ao trânsito de São Paulo. Mandou outra engraçada pouco depois: "Tá vendo? Tá uma 'dor de dente' aqui, ó?", disse, tocando um acorde e definindo uma desafinação das cordas dessa maneira. É dele também a frase "Papai Noel e retorno de voz para cantores em palco são duas coisas que não existem".
Divertiu o pessoal e respondeu com o mesmo bom humor às perguntas dos internautas. Após o Chat Show, bateu um papo mais específico com a reportagem do Terra, na cozinha da redação. "Que é isso, bicho? Na cozinha? Tem algo a ver com o tempo em que queria pegar a empregada?", brincou, segurando um copo de guaraná, que para os distraídos poderia parecer de uísque. Para os com menos de trinta e pouca rodagem na história musical brasileira, Marcelo Nova foi o cantor da banda Camisa de Vênus, uma das que se sobressaíram no cenário nacional na década de 80. Cravou hits como Eu não Matei Joana D'Arc, Sinca Chambord e Bete Morreu, sempre com uma pegada beirando a atitude punk. Depois da dissolução da banda, formou a Envergadura Moral e seguiu em carreira solo, que teve a parceria de Raul Seixas em 1989, com o disco Panela do Diabo e turnê correspondente. Foi o último trabalho de Raul e Marcelo vive tendo de falar sobre o assunto, até mesmo quando é levemente agredido por comentários como o de Samuel Rosa, do Skank, que disse que o maluco beleza andou em más-companhias no final de sua vida.
Marcelo é um dos últimos roqueiros de verdade de plantão na rodoviária musical brasileira. "Rock'n'roll não significa que é bom. A maioria que se faz no Brasil é uma porcaria", diz, sempre usando a expressão "rock'n'roll" para acentuar ainda mais a entonação clássica e fiel do antigo gênero, que sobrevive com dificuldade pelo mundo, graças à popização e industrialização da música. O cantor está lançando agora, somente pela internet, uma caixa de três CDs com o melhor dos Camisa de Vênus, clássicos mundiais do rock e novas músicas. Se chama Tijolo na Vidraça e vem em uma embalagem que copia um tijolo de baiano. Aliás, a tijolada é de um baiano mesmo, nascido em Salvador em 1951.
Confira a entrevista, na cozinha, com o cantor.
Você se sente o último dos moicanos do rock?
Inventaram essa expressão e eu achei divertida, respeitosa e não tem ego que resista a esses elogios. Me diverte e não vem gratuitamente. O fato de eu estar há 20 anos fazendo rock'n'roll e tão somente rock de alguma forma me conecta a essa expressão. Hoje o lance é o cara ser um pouquinho moicano, um pouco apache, comanche, tupi-guarani (risos). Então sobrou para mim, que eu posso fazer? (risos)
Se fala muito no lado "passadista", nostálgico do rock. Mas qual é o lado positivo do gênero, quais suas qualidades?
Se você olhar de 1950 para cá, quando ele era um negócio chamado rhythm'n'blues, vamos ter aí 50 anos de história. De lá para cá mudou muita coisa. Se pegarmos os discos de Elvis Presley, Gene Vincent, Chuck Berry, Little Richard e chegarmos em 1987, em um álbum chamado Time Out of Mind, de Bob Dylan, muita coisa mudou. Nesse álbum, Dylan, perto dos 60, fez um disco contemplando o pouco resto de vida que lhe restava, pois quem já viveu 60 sabe que não tem mais o mesmo "gato" que já teve antes. Ele fez um disco que falava sobre a iminência da morte, sobre as contradições da existência, os caminhos errados que ele tomou no passado, os prováveis acertos que teve, desilusões. É um disco que expande aquele conceito que o rock tinha nos anos 50, em que a temática era carrão, pegar as menininhas no banco traseiro, dançar, uma certa rebeldia com os pais. Então, acho que nem nos sonhos mais selvagens de Elvis ele imaginou que aquele gênero ia servir para descrever sinais de envelhecimento (risos).
Pegando o gancho de Dylan, dos erros e acertos da vida dele no álbum, quais foram os seus erros, na carreira?
Na minha carreira, errado? (pensativo). Deixa me ver,... Sempre me faltou paciência para lidar com o jogo de poder. De estar na mídia a qualquer preço, de me inserir na última moda, de estar em evidência no televisivo, radiofônico, moda, enfim. Sempre tive uma maneira muito peculiar de lidar com minha carreira. Sempre fui vira-lata. Nunca corri atrás de pedigrees de poodles. Do ponto de vista do profissionalismo, no relacionamento de músico com empresário e gravadora, que formam essa santíssima trindade, eu talvez tenha deixado de corresponder a várias expectativas. Me aborreci várias vezes em consequência das consequências da minha atitude, pois geraram problemas.
Mas não se arrependeu.
É onde queria chegar. Mas quando olho para trás e vejo o que conquistei, respeito, um público que me acompanha há 20 anos - quem gosta de rock sabe quem eu sou -. Eu não tenho evidentemente o maior púiblico do Brasil, mas tenho um que me acompanha onde quer que eu vá. É a isso que eu me propus, embora do ponto de vista da correção profissional eu talvez tenha muitas vezes deixado meu coração de amador, daquele que sua a camisa, joga para ganhar, esse coração de amador se sobrepôs ao coração do profissional que assina o contrato, põe a canela no seguro, que não vai na dividida. Acho que é mais ou menos isso.
O que você acha das modernizações do estilo?. É um risco?
Rapaz, acho o seguinte. O lance do rock'n'roll na verdade não está ligado em novos instrumentos, não é isso. Rock é uma múica de 3, 4 acordes. Então o lance não é inventar instrumentos, é ser original com os instrumentos que você já tem. Se você pega esses 3, 4 acordes e tenta ficar inventando, pode até fazer uma música interessante, mas vai deixar de ser rock. Passa a ser fusion, jazz, mambo, sei lá o quê. Penso que o grande lance do rock seja você soar de forma original dentro de um estilo que existe há 50 anos, esse é o grande desafio. É muito mais difícil você ser original dentro dessas limitações musicais, de ritmos, compassos, do que inventar um botão novo para apertar, para sair um som qualquer. Botão eu só aperto o da descarga do meu vaso e tapo o nariz ainda quando acabo (risos).
Você acha que nessas mudanças todas, os ingleses ou americanos estão mais fiéis ao rock'n'roll?
Um inventou e o outro de uma certa forma expandiu, né? Mas é difícil generalizar, pois existem grandes bandas inglesas e americanas. E é bom não esquecer o seguinte: os irmãos Young, do ACDC, são australianos; Neil Young é canadense, John kay, do Steppenwolf, é alemão; Fred Mercury era africano; Raul seixas era brasileiro. Então você tem uma gama de artistas e nacionalidades em que o que importa não é ser inglês ou americano, o que importa é ser bom e original. Penso que seja uma divisão mais qualitativa do que uma divisão de bandeiras ou origens.
Você não costuma ser covarde em suas declarações, então vou aproveitar. Você, que é baiano, já ouviu falar na expressão "Máfia do Dendê"? (n.e.: designação dada pelo jornalista Cláudio Tognolli para uma suposta união de artistas baianos que dominariam a imprensa com favores e retaliações no intuito de manter uma hegemonia na mídia da música produzida na região)
Várias vezes. Ela existe, evidentemente. É que a palavra "máfia do dendê" é uma maneira de tornar a coisa mais "engraçadinha", quando ela não tem nada de engraçadinha. É a força do poder econômico, de todos esses blocos emergentes da Bahia nesses últimos 10 anos, que se uniram, fortaleceram e tentaram implantar um regime ditatorial musical. É o poder econômico, não tem nada a ver com qualidade. É o poder da grana. Por exemplo, para mim é muito mais fácil tocar em Xanxerê, em Santa Catarina, uma cidadezinha pequenininha, do que tocar em Salvador que é a terra em que nasci. Isso me envaidece, pois significa que meu discurso continua incomodando. Se fosse indiferente, eu estaria lá, indo e vindo facilmente. Ofato de não ser aceito e existir uma corrente que tenta impedir minha presença em Salvador de uma forma acentuada, do ponto de vista artístico, é um elogio tremendo. Não quero ser aceito por coisa nenhuma, por esse lance de clube dos baianos, não me interessa isso. É um domínio da coisa obtusa regional. A idéia é "vamos dar as mãos para que não surja nada que nos impeça de continuar sendo os donos da bola". Eu não odeio o axé, apenas o desprezo.
E o lance com o Samuel Rosa, do Skank? Ele já respondeu seus comentários no programa do João Gordo? (n.e.: Samuel teria dito que Raul Seixas andou com más companhias no final da vida)
Não tenho a menor idéia. O comentário não foi meu, foi ele, sem ter nem para quê, quer dizer, sem ter, "vírgula"! O assunto era Roberto Carlos, ele achou uma maneira de encaixar Raul Seixas no papo e ficou "Roberto Carlos era gênio, Raul também, mas pena que no fim da vida dele ele deu para andar com más companhias tipo Marcelo Nova". Quer dizer, citar Raul dá ibope. Ele virou um mito. Queria saber onde esse fedelho estava 15 anos atrás quando Raul tava pesando 55 kg, não tinha gravadora, ninguém queria saber dele, era um sujeito a ser evitado. Pois era um cara que falava mal, esculhambava com o rock brasileiro todo. Se sou boa ou má companhia? O que interessa isso para ele? Ele não vai andar comigo mesmo, não é verdade? Eu não ando com bundão. Isso é para gerar notícia, vou falar em Raul, provocar um lance. Mexeu com a pessoa errada. Ele é poodle! Concorre ao melhor corte de cabelo, melhor pom-pom. Eu sou vira-lata, meu irmão. E vira-lata morde é na canela! (risos)
Falando em Raul, o que achou do CD que o Zé Ramalho fez em homenagem a ele?
Não ouvi, vi a capa várias vezes. Independente de eu gostar ou não gostar, sei que Zé teve uma relação anterior a essa corja de abutres que estão voanando por aí sobre o cadáver de Raul. E foi um cara que cantava músicas de Raul, declarava que gostava, era fã. É perigoso generalizar, então Zé é uma boa exceção.
Aproveitando sua bagagem no rock, quero perguntar sua opinião sobre alguns nomes brasileiros no gênero. O que acha do Barão Vermelho
Já gostei mais. Achava que o Barão tinha uma coisa visceral, de rhtyhtm'n'blues, centrada na guitarra de Frejat, na batera de Guto. Nos últimos discos, não gostei muito.
E do tempo com o Cazuza?
Não sei. Acho até que Cazuza, como compositor, se tornou melhor depois que contraiu o vírus da AIDS. O fato da dor, da iminência da morte, faz com que a pessoa esqueça o superficial e vá direto no osso. E arte é isso, cara. É ir na fratura exposta. Parece uma contradição, né? O cara soube que vai morrer em pouco tempo e se torna melhor. Mas é isso o que acontece com a arte.
Erasmo Carlos?
Erasmo não me cabe comentar. Às vezes fico sabendo de coisas pessoais da vida dele que não me cabem comentar. Mas é uma figura pela qual tenho um respeito muito grande. Gostaria de ver ele fazendo um disco de rock'n'roll, do jeito quando fazia quando cantava É Proibido Fumar, e aquelas coisas. Um disco de rock'n'roll de verdade. Ele era o cara mesmo, o grandão, não tava nem aí para porra nenhuma. Ele era o cara para fazer isso.
Rita Lee?
Os mutantes eram uma banda que independente de minha opinião, deixou uma marca indelével. O que me impressionou no Mutantes era a idade em que estavam quando faziam aquelas coisas. Eles eram muito, muito, muito jovens, cara! E eram muito, muito, muito bons! Evidentemente me atraia mais a coisa experimental, o órgão de Arnaldo. Até mesmo depois da saída Rita eles continuaram bem, quer dizer, até virar rock progressivo, achava uma banda fabulosa. Eu vi um show dos Mutantes com Arnaldo e Sérgio, já sem a Rita, na Bahia, no teatro Castro Alves. Eles literalmente quebraram o palco inteiro, que era uma coisa tão interessante de se ver naquela época, que era tão novo, chutar instrumento, chutar tudo. Para um garoto que tinha 17 anos era o máximo ver aquilo. Eu nunca quebrei uma guitarra no palco. Depois de um certo tempo eu achei que tinha passado da idade, entendeu (risos)? Mas eu juro para você, um dia vou me permitir fazer uma pequena regressão e quebrar uma porra de uma guitarra! Depois eu volto para os meus 50 anos e digo, "sim, claro, boa noite. Muito obrigado" (risos).
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