Pesquisador elabora enciclopédia sobre a MPB
Sexta, 14 de setembro de 2001, 15h36
Chico Buarque tinha estúdio marcado para a gravação de seu primeiro LP, para o selo RGE, de São Paulo. Mas o jovem astro não aparecia. Um executivo da gravadora lhe telefonou, sem sucesso. Correu para a casa do artista. Encontrou-o jogando botão com o amigo, o violonista Toquinho. Havia se esquecido do compromisso.
Adoniran Barbosa saiu acompanhado do parceiro de uma churrascaria na avenida Rio Branco, São Paulo, e topou com um vira-lata faminto. Sem pestanejar, o autor de 'Saudosa maloca' disse para o amigo esperar. Foi até a cozinha do restaurante para sair de lá com uma bisteca assada. O cão, assustado, bateu em retirada. Mas Adoniran o perseguiu até que aceitasse a carne.
Tom Jobim compôs a primeira versão da canção 'Esse seu olhar'. O funcionário da editora Fermata recebeu a partitura para editá-la, mas percebeu que se tratava de plágio de um famoso sucesso americano. Ligou para Tom e o convenceu a escrever uma nova melodia.
O executivo, o amigo e o funcionário atendem pelo mesmo nome: Juvenal Fernandes, um advogado paulistano de 75 anos que participou de tantos episódios em seis décadas de atividade que resolveu colocá-los em uma enciclopédia. Não um livro qualquer, mas a obra de referência que contivesse todos os nomes, episódios pitorescos, discos, todas as músicas e referências sobre o tema. A enciclopédia total soava como projeto lunático quando Fernandes a iniciou, em 1979, época em que ainda não existia computador pessoal, muito menos consultas pela internet. Usando o pouco tempo livre que tinha como sócio da Fermata-RGE, ele produziu verbetes munido de sua velha máquina de escrever, solitariamente, com a ajuda da memória e do esforço próprio. Passados 22 anos, o resultado é uma pilha de 2,60 metros de folhas tamanho ofício, cuidadosamente datilografadas, corrigidas e emendadas a mão. As folhas compreendem mais de 40 mil verbetes que formam aquela que deverá ser a mais completa obra de referência de música brasileira jamais realizada. Pelos cálculos de Fernandes, a obra 'Música Brasileira: Enciclopédia Geral' (título provisório) deverá abarcar 14 volumes de 500 páginas cada, algo como um parente brasileiro do dicionário inglês 'Grove' - a mais completa fonte da música ocidental disponível do mercado. 'É um trabalho utópico e estúpido', ironiza o autor, em seu escritório, na editora de música Arlequim, na avenida Rebouças, onde trabalha pela manhã. 'Sempre aparecem autores de músicas e tenho de conferir nas listagens que as gravadoras me mandam.'
Fernandes vai lançar a enciclopédia antes em CD-ROM e na Internet. Ainda não há data porque o autor ainda busca patrocínio. Para tanto, associou-se ao empresário Wanderley Pereira, que se apaixonou pela aventura da enciclopédia e agora tenta captar recursos. Segundo ele, o custo total do projeto é de R$ 860 mil. O montante pagaria a produção de um CD-ROM ou DVD com a obra, incluindo uma equipe de 15 pesquisadores para atualização constante, revisores, digitadores e técnicos em informática. 'Ainda não pensamos no orçamento da publicação em papel', diz Pereira. 'O material que possuímos ainda está em papel e precisa ser digitado.'
Ele já procurou institutos culturais de bancos e empresas. Até agora, porém, não obteve resultados. 'Reina a total indiferença em relação a produtos de cultura brasileira', afirma Pereira. 'Este é o mais importante compêndio da música brasileira. Só que os custos desencorajam os patrocinadores. Eles preferem produtos mais simples e, em certa medida, superficiais.'
A afirmação tem fundamento. Pereira cita projetos semelhantes, como o 'Dicionário Albim da MPB' (leia reportagem à pág. 2 do caderno), que deverá ser lançado em novembro, com apoio do governo federal, e a pioneira 'Enciclopédia da Música Brasileira' (Art Editora, 1977, reeditada em 1998 pelo Itaú Cultural). Nesta última, escrita por uma equipe de especialistas e editada por Marco Antônio Marcondes, Pereira se encarregou de redigir biografias de músicos caipiras. Ambos os projetos custaram cada um cerca de R$ 200 mil. 'Só que a enciclopédia de Juvenal é mais abrangente, além de ter sido um heróico trabalho solitário.' Argumenta que só uma letra dela, como a 'c', atinge 5 mil verbetes. Isto corresponde ao volme de entradas do 'Dicionário Albim'; este, por sua vez, promete duplicar os verbetes da 'Enciclopédia' do Itaú.
A obra de Fernandes se reveste da megalomania típica das idéias solitárias. Abrange tudo, dá conta das produções erudita, popular e folclórica em 500 anos de história do Brasil, do padre Maffei - maestro italiano que ensaiou o coro de marujos da caravela de Cabral para pasmo dos índios na Primeira Missa - ao sambista eletrônico Max de Castro, passando pelo nascimento do samba e a ascensão do operista Carlos Gomes, sem ignorar uma plêiade de célebres desconhecidos, autores que desapareceram e cuja música só permanece na memória do enciclopedista. É o caso do parisiense radicado no Brasil Michel Butinariu, 'um extraordinário autor de clássicos da música caipira', diz Fernandes, como a canção 'Catira'. No setor famosos, o verbete a respeito do compositor Villa-Lobos possui 42 páginas. Não faltaram nem mesmo autores bissextos, como o radialista Moraes Sarmento, autor de diversos sambas, o cronista Osvaldo Moles, criador dos personagens cômicos interpretados por Adoniran na rádio Record no fim dos anos 40, e o cangaceiro Lampião. Sim, porque Virgulino possui uma produção de 17 opus, maior que a obra completa de muito compositor consagrado. Dentre eles, destaca-se o famoso baião 'Mulher rendeira', feito em homenagem a sua avó, a rendeira de bilro cearense Tia Jeruza. De acordo com o enciclopedista, o Rei do Cangaço lançou a música em 13 de junho de 1927, durante o ataque que fez à cidade de Mossoró (RN). Lampião cantou-a, tendo como backing vocals seu bando de 50 cangaceiros. Êxito pré-punk instantâneo. 'Apesar de talentoso, Lampião era um artista bastante modesto', conta Fernandes. 'Não quis que seu nome constasse das músicas, mesmo porque as autoridades não permitiriam. Ordenou que um comparsa ficasse com a autoria das música, o Volta Seca.' O mais curioso é que o cangaceiro coadjuvante chegou ao estrelato e gravou um LP para o selo Copabacana, em 1960.
Para o pesquisador, não importa quem tenha composto, basta que tenha composto algo em determinado momento. 'Se o compositor existe, por que não vou colocá-lo?'
Os verbetes são divididos nas seguintes categorias: biografias (autores de música e letra, intérpretes, instrumentistas, editores, cronistas, críticos e empresários), entradas sobre história do Brasil, formas, danças, cantos, ritos, gêneros, instrumentos e conceitos.
Há espaço para verbetes curiosos, como o que aborda o plágio. Fernandes acha que este foi um recurso disseminado entre os compositores. 'Tecnicamente, ele consiste em cópia de oito compassos de uma composição. Mas penso diferente: pode-se considerar plágio a citação de um número menor de compasso; um certo tema, por exemplo, que define a música em um motivo curto, pode ser plágio. Na MPB, há desde o plágio sem-vergonha, calcado no original, até o inocente. Eu próprio cheguei a copiar a canção ‘Feuilles mortes’ na terceira parte do o dobrado ‘Paulistinha do 4º Centenário’, que fiz em parceria com o Osvaldo Rielli. No meu caso, copiei sem querer.' Entre os que considera sem-vergonhas, lembra a valsa 'A pequenina cruz do teu rosário', que o compositor paulistano Paraguaçu (1894-1970) gravou em 1926 como de sua autoria, mas que pertencia aos nordestinos Fetinga e Fernando Weyne. Cita outro plágio flagrante, o do samba 'Águas de março', assinado por Tom Jobim, baseado num ponto-de-macumba de J.B. de Carvalho (1901-1979). Apesar de verificar o movimento infinito das cópias, Fernandes defende um dos compositores mais atacados a tal respeito: Adoniran Barbosa. 'Não posso garantir a autoria de todas as suas músicas. Não me meti nos negócios dele. Só que há muita intriga de invejosos. Conheci bem Adoniran, fui parceiro dele. Ele aparecia na Fermata, na avenida Ipiranga, para tirar uma sesta. Eu desligava as luzes, fechava as janelas e deixava o Adoniran descansar. Nessas tardes, ele me dava um monte de letras de música, em guarnapos, papeletes de cigarro, etc. Ele sonhava em transformar aquilo em sambas de sucesso. Fui copiando e guardando numa pasta. É hoje um tesouro.' Abre a pasta, com 92 letras assinadas por Adoniran. Distribuiu-as a diversos compositores e obteve 47 canções. Destas, 14 foram recentemente gravadas pelo cantor Passoca. As restantes continuam inéditas. Uma delas é 'Coríntia, meu amor é o timão', com música do próprio Fernandes. O verbete que preparou para Adoniran corrige erros e acrescenta composições na obra do sambista.
Um de seus verbetes favoritos se refere aos erros cometidos por intérpretes ao gravar certas canções. 'É o caso das asneiras cometidas pela cantora Gal Costa ao longo de sua carreira.'
O pesquisador não se exime da crítica, e classifica muitas das versões, que fez no calor da hora, no dia das gravações, como 'drogas'.
Análise impiedosa é um dos elementos de seu heterodoxo método de trabalho. 'Basicamente, uso tudo o que cai na minha mão', diz. 'Periódicos, anotações pessoais, conversas diretas com os compositores. Tudo concorre para formar um verbete.'
Por curiosidade, o próprio enciclopedista se converteu em verbete da história da MPB. 'Fernandes, Juvenal' merece uma longa entrada na 'Enciclopédia' do Itaú. Lá, consta como compositor, cantor e instrumentista nascido no bairro do Brás, em São Paulo, em 19 de outubro de 1924. Estudou violino e teoria musical e tocou em orquestras sinfônicas. O que o verbete não conta é que, em 1941, ele atuou como Cristo na peça 'O Mártir do Calvário', de Eduardo Garrido, no Teatro Colombo. 'Foi a peça mais representada no Brasil na época, e a que ensejava o maior número de anedotas.' Lembra que, certa ocasião, quando o crucificaram, recebeu vaias porque estava usando relógio de pulso. Mas teatro constituiu uma atividade esparsa. Procurou se dedicar à literatura e à música, ao mesmo tempo em que cursava Direito na faculdade do Largo São Francisco. 'Três autores que figuravam nos arcos da faculdade me inspiraram: Castro Alves, Álvares de Azevedo e Fagundes Varela.' Desde adolescente, trabalhou em editoras de música. A primeira foi a Irmãos Realti, no Brás. 'Na época, São Paulo tinha mais de 20 lojas de música', recorda. 'Hoje, não passam de sete.' Partituras eram mais importantes que discos. Fernandes recebia o músico, ouvia as composições, copiava-as e depois as editava. Ao todo, diz ter preparado cinco mil edições de partituras. Nos anos 60, tornou-se sócio da editora Fermata, e preparou o lançamento brasileiro das partituras dos Beatles. Quando a editora lançou o selo RGE, ele se devotou a produzir versões de músicas estrangeiras. Escreveu a da canção 'Dreaming', cantada por Elis Regina em seu primeiro LP, 'Viva a Brotolândia' (Continental, 1961).
À frente da gravadora, lançou os primeiros discos de Chico Buarque, Paulinho Nogueira, Os Mutantes, Tom Zé e Novos Baianos. Foi Fernandes quem alugou a primeira casa em São Paulo para o grupo de Moraes Moreira e Falcão.
Como compositor, ele teve sua primeira música gravada em 1946, pelo cantor Gilberto Canavarro, na Continental: a canção 'Destinos iguais'. Sua produção chega a 730 composições editadas, em todos os gêneros. Um de seus maiores sucessos foi a canção 'Voltarás', gravada em 1972 por Aracy Balabanian na trilha da novela de TV 'A Fábrica'. Compôs e gravou com a cantora Maria Bonita pontos-de-macumba 'Caboclo de tara' e 'Coroa de Oxóssi' (selo Tropicana, 1974).
Encontrou tempo ainda de publicar livros. São onze títulos, entre coletâneas de poemas ('Para Você, Mamãe', que está em quinta edição), contos, poesias e até um romance, de cujo título ou não se lembra ou procura se esquecer. Seu livro mais celebrado se intitula 'Do Sonho à Conquista: Carlos Gomes' (Imprensa Oficial do Estado, 1984), biografia do compositor que chegou à terceira edição. Ao finalizar o livro, deu-se conta de que era uma enciclopédia ambulante e foi tomado pela febre de redigir verbetes. 'Com a convivência com autores durante durante todos esses anos, vi que eles passavam pela vida sem que ninguém lembrasse de suas obras', justifica. 'Ninguém o faria, então resolvi me encarregar de uma enciclopédia. Do contrário, tudo se perderia nas próximas gerações.'
Um infarto em 1984 fez com que decidisse se aposentar e trabalhar apenas meio turno em editora. Devota quase todo o dia às pesquisas. Declara-se frustrado com a falta de interesse dos próprios músicos, que não se empenham em lhe enviar informções. 'Mandei 1.632 cartas para músicos, maestros, editores, herdeiros e intérpretes em todo o país, solicitando currículos e informações. Sabe quantos me responderam? Três! Isto é Brasil. Vou atrás de tudo sozinho, sem apoio ou interesse de ninguém.'
Espera que a posteridade o reconheça e que seu 'opus magnum' não vire entulho para seus herdeiros liquidarem. O enciclopedista insiste em prosseguir, sem recorrer nem mesmo à tecnologia. Não se acostuma com computador e se orgulha de ser um dos últimos usuários da máquina Olivetti. Produz montanhas de papel que obstruem sua sala de trabalho. Recentemente, mudou-se de sua casa para um apartamento e já não sabe como lidar com tantos papéis e documentos acumulados.
Sabe que, ao contrário de suas memórias, o trabalho de catalogação não tem fim. Mas não parece esmorecer. 'Meu sonho é um sonho brasileiro', define. 'É a vontade de mapear tudo, de não deixar escapar um nome sequer em minha obra.'Veja também:
Verbetes de enciclopédia varrem produção de 500 anos
Luís Antônio Giron/Gazeta Mercantil
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