Sentado em seu ateliê, na cobertura 1.001 da avenida Atlântica, em Copacabana, Oscar Niemeyer, aos 95 anos, fala com entusiasmo dos projetos que desenhou e estão tomando forma na vizinha Niterói. O Caminho Niemeyer, que vai serpentear por 3,5 km pela orla da cidade, reunirá o maior número de obras do arquiteto no país, só perdendo para a capital, Brasília, a "cidade dos homens iguais", sonhada por Niemeyer durante sua construção e que, segundo disse a este jornal em abril de 2000, deixou de existir quando os políticos desembarcaram na nova capital, "carregando as diferenças, as roupas e os hábitos da antiga capital (Rio)".Minimizando a importância do ângulo reto e racionalista, Niemeyer dá curvas e outras formas ao concreto armado do Caminho, formado por oito construções que irão se juntar ao Museu de Arte Contemporânea (MAC), no alto da praia de Boa Viagem, também de sua autoria, uma referência mundial e fonte de polêmica: não há paredes retas para pendurar os quadros.
Debruçado há cinco anos sobre pranchetas, buscando soluções harmônicas para o projeto, Niemeyer se diz muito satisfeito com as obras de seu Caminho. Com simplicidade, afirma que "queremos fazer as coisas bem feitas", referindo-se ao tempo em que está com a sua equipe, empenhado no projeto, carregado de curvas e vãos livres.
O Caminho Niemeyer, cujas obras começaram no começo deste ano e que devem estar concluídas em até dois anos, é formado por um conjunto de prédios distribuídos numa área de 82 mil metros quadrados. O teatro popular, que já está sendo construído, terá uma capacidade para 700 pessoas e 1,2 mil vagas de estacionamento, além de incorpora mais uma idéia inovadora de Niemeyer: o palco se abre para fora, para uma grande praça, com capacidade para reunir até 20 mil pessoas. "É uma idéia nova, esta do palco abrindo assim para o exterior, que acho que vai funcionar", diz, prevendo uma grande participação popular em shows e eventos que serão promovidos no local. "Será uma praça muito festiva."
A Fundação Oscar Niemeyer, que deverá reunir toda a obra do arquiteto, tem uma estrutura futurista. De forma arredondada, é "abraçada" por duas alças longilíneas que irão funcionar como portas de entrada e saída da Fundação. As obras já começaram.
"A Fundação não é comigo. É com a minha neta. Ela que dirige a Fundação", desconversa, ao ser perguntado se a Fundação será um centro de referência de sua obra. Mas dá algumas pistas. "A idéia é fazer um centro de estudos, de artes, com aulas de pintura, de escultura, desenhos, palestras, enfim. Como ela é junto à praça, haverá uma harmonia com a paisagem, com os alunos usando a praça como um ponto de encontro, de desenho."
Sempre buscando a perfeita harmonia entre a privilegiada paisagem do Rio, com sua silhueta recortada por montanhas e banhada pelo mar, e os prédios do Caminho, "diferentes, mas que se harmonizam plasticamente", Niemeyer pensa a praça como um centro irradiador de arte e cultura. Nela vai colocar três de suas esculturas diante do mar, onde começa o seu Caminho.
"Haverá outras, de outros escultores. Voltarei a ter minhas esculturas defronte ao mar. As que tinha no Leme (bairro do Rio), o César Maia (prefeito) tirou. Não podemos querer que todos tenham a mesma sensibilidade. Mas a vida é assim mesmo."
A simplicidade dos acabamentos é outro traço do Caminho. "A idéia é que todos os prédios sejam brancos, simples, sem a exibição de novos materiais. Mas terão pinturas, esculturas, obras de arte. Nós queremos nesse conjunto tentar uma reintegração das artes plásticas com a arquitetura", explica Niemeyer.
E continua: "Não sei se você viu, estou desenhando ali (na entrada do ateliê) uma parede de azulejos. Fiz três figuras de mulher. É uma fachada do teatro. Vai ser uma parede de azulejos. Os mesmos azulejos vão ser usados em outros prédios. É isto que se chama integração das artes. É como o que se tem na Igreja da Pampulha, com os painéis de Portinari."
O Caminho Niemeyer, que começa no centro da cidade, está saindo do papel graças a uma engenhosa parceria montada pela prefeitura de Niterói com empresas e instituições religiosas. A prefeitura está cedendo o terreno e as empresas e instituições entram com a construção, ganhando o direito de uso por prazo indeterminado.
"Com isso, já conseguimos investimentos da ordem de R$ 70 milhões, o que tem possibilitado a execução das obras. Sem essas parcerias, seria quase impossível tocar o projeto", diz Selmo D. Treiger, presidente do Grupo Executivo Caminho de Niemeyer. No mês que vem, será apreciado pelo Ministério da Cultura o pedido de inclusão do Caminho Niemeyer na Lei Rouanet, que concede isenções tributárias às empresas que investem em ações culturais. Segundo Treiger, há grande simpatia pelo projeto dentro do Ministério.
Além da Fundação, que está sendo erguida com recursos da Barcas S.A., uma das empresas que fazem a travessia de passageiros pela Baía da Guanabara - a outra é a Aerobarcos do Brasil -, e do teatro popular, que está sendo erguido com recursos da prefeitura, o projeto prevê a construção de uma catedral, financiada com recursos do Vaticano. A Faculdade Salgado Filho está construindo o prédio que irá abrigar o Centro de Memória de Niterói, onde estarão reunidas informações sobre a cidade e o estado do Rio, em forma digitalizada e em arquivos fotográficos e em papel. Um templo Batista, com o maior vão livre de laje da América Latina, com 60m de extensão, terá suas obras financiadas pelos próprios batistas. Também será construída uma nova estação de barcas, integrando-a ao terminal de ônibus de Niterói.
Fora da área dos 82 mil metros quadrados, o Caminho continua. Passa pela praça Juscelino Kubitschek (JK), já em construção e que terá um estacionamento subterrâneo para 400 veículos, seguindo até o Museu do Cinema Brasileiro, prédio semelhante a um imenso rolo de filme, que está sendo construído com recursos da BR Distribuidora, com seis salas de projeção, lojas voltadas para a cultura, como livrarias e videolocadoras, e um auditório.
"A intenção é usar o espaço para valorizar o cinema nacional. Vamos criar um prêmio anual, semelhante ao do Festival de Gramado, para premiar as principais produções artísticas do país", explica Trieger. Haverá, também, um banco de dados sobre o cinema nacional. O ator José Lewgoy já se dispôs, diz Trieger, a doar seu acervo, um dos maiores do país, para o Museu.
As obras do Caminho parecem seguir um ciclo. Há pouco mais de cinco anos, Niemeyer construiu o MAC, convidado pelo então prefeito, Jorge Roberto Silveira, hoje candidato a governador do Rio pelo PDT, de Leonel Brizola. Já naquela época, surgiu a idéia que hoje começa a se materializar. Começava uma forte ligação do arquiteto com a cidade, que agora se perpetua através do Caminho.
"Niterói me interessa muito porque as obras estão muito próximas. Não são obras grandes e isso é um problema que surge na arquitetura de forma diferente. Quando há muitos edifícios em um espaço pequeno, as obras devem corresponder a um denominador plástico comum e de unidade necessária. Assim, você vai ver uma curva no teatro, você vai ver um pouco diferente em outro prédio. É uma forma de harmonizar as coisas."
A obra de Niemeyer é extensa e polêmica. O complexo arquitetônico da Pampulha, criado em 1940, deu início ao projeto de Juscelino Kubtischek de "civilizar o interior do Brasil" que teve sua seqüência com a construção de Brasília a partir de 1960. O Memorial da América Latina, em São Paulo, gerou polêmica pelo seu aspecto desértico. No livro "As Curvas do Tempo", uma coletânea com relatos sobre história de família, amizade e trabalho, Niemeyer respondeu aos críticos: "Quem deseja ver árvores que vá ao Jardim Botânico. No Memorial só há arquitetura." Exiliado em 1964 com o golpe militar pela sua extensa militância no Partido Comunista Brasileiro, Niemeyer acredita, no entanto, que lá fora estão as suas melhores obras, como a sede do Partido Comunista Francês; a Bolsa de Trabalho, em Bobigny; o Espaço Oscar Niemeyer, no Havre; as universidades de Constantine e Argel, na Argélia; a sede da Organização das Nações Unidades (ONU), ao lado do renomado arquiteto francês Le Corbusier, entre outras.
Apesar de dedicar toda a sua vida à arquitetura, Niemeyer escreveu em uma das paredes de seu ateliê, junto aos desenhos dos prédios de Brasília, do Caminho e da Pampulha: "O mais importante não é a arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar."
InvestNews/Gazeta Mercantil
volta