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Ainda faz sentido comemorar o Dia do Orgulho Nerd?

Comemoração do Dia do Orgulho Nerd surgiu como forma de valorizar uma cultura que agora está em evidência. Então o que realmente há para celebrar?

25 mai 2023 - 16h09
(atualizado às 18h36)
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Pode não parecer, mas houve um tempo em que ser nerd não era algo legal. Se hoje a gente comemora o Dia do Orgulho Nerd com camiseta dos nossos heróis favoritos ou expõe nossas coleções nas redes sociais, há não muito tempo, isso tudo era parte de uma cultura marginal em que quem gostava de quadrinhos e videogame era alvo de piada e até mesmo bullying nas escolas. No mundo adulto, então, impossível.

Basta lembrar da imagem clássica do nerd que os filmes dos anos 1980 e 1990 apresentaram: aquela pessoa sem muito traquejo social, se vestindo de forma caricata e que é tão inteligente quanto patética. Por isso mesmo, era comum o pessoal ter uma certa vergonha em admitir que gostava dessas coisas supostamente infantis.

Só que os tempos são outros e temos uma realidade bem diferente. Ser nerd não é mais motivo de chacota, mas algo que as pessoas ostentam com orgulho todos os dias. Mais do que isso, a própria cultura abraçou o geek e temos um mercado em que tudo gira em torno de conteúdos vindos desse mundo. O cinema é pautado pelo universo dos quadrinhos e os games são uma indústria gigantesca. Até mesmo o RPG deixou os quartos escuros para ganhar as telas e passou a ser visto como algo legal.

É uma realidade que parecia impossível de se imaginar pouco tempo atrás: os nerds ganharam o mundo. Mas com a cultura pop se tornando mainstream em uma escala quase industrial, ainda faz sentido pensar em um Dia do Orgulho Nerd? Afinal, o que realmente há para se orgulhar?

Virada recente

Como dito, ser nerd nem sempre foi legal. Digo isso até por experiência própria, pois não foram poucas as vezes em que tive vergonha de ir à banca comprar gibi ou dizer que eu ainda jogava videogame. Aliás, não consigo usar camiseta de herói até hoje por causa dessa época menos auspiciosa.

Isso porque a ideia do nerd como algo legal é bem recente. É a partir do início dos anos 2000 que vemos a cultura começar a virar sua atenção para esse mundo até então marginal e mostrar o quanto certas coisas que gostávamos eram realmente legais. O sucesso de O Senhor dos Anéis abriu as portas para histórias de fantasia e a retomada do cinema de super-heróis com X-Men e Homem-Aranha pavimentou o caminho para a guinada que viria em seguida.

Mas a chave vira de verdade somente na década seguinte. É a partir do fenômeno Marvel que o conteúdo nerd passa a ser encarado com mais seriedade e deixa de ser aquela coisa do qual as pessoas deveriam ter vergonha. De repente, todo mundo estava gostando de super-heróis e querendo saber mais dessas histórias — algo sobre o qual fã das antigas já tinha um conhecimento enciclopédico. O simples fato de a Marvel ser reconhecida e as produções não serem mais chamadas de "filme de gibi" já mostra a mudança de percepção.

Mais do que isso, a indústria passou a buscar novos conteúdos desse universo para explorar, trazendo também os livros de fantasia e aventura, os RPGs e os games para o centro do palco. Em outras palavras, estamos em um momento em que ser geek e nerd é a norma.

É legal conhecer todos os heróis da Marvel ou detalhes das décadas de cronologia da DC, assim como ser um vasto entendedor de games ou da mitologia tolkiana e sua influência em imaginários fantásticos. Sendo também um consumidor ávido de tudo aquilo que ele gosta, é fácil ver por que a indústria se voltou tanto para esse perfil.

Entender isso é essencial para compreender porque é questionável pensar em Dia do Orgulho Nerd no contexto atual. Afinal, qual o valor de ter um dia para se orgulhar de algo em que você já é o centro das atenções ao longo de todo o ano?

A celebração faz muito mais sentido quando pensamos naquela época em que essa cultura era realmente marginalizada. Quando você é alvo constante de chacota e precisa esconder seus hobbies para ter o mínimo de convívio social na escola ou no trabalho, ter um dia para se orgulhar daquilo tudo é algo bastante lógico. É quase como um grito de libertação.

Guardadas as devidas proporções — e, pelo amor de Deus, ênfase nisso —, é uma lógica semelhante àquela que temos com datas como o Dia da Consciência Negra e Dia do Orgulho LGBTQIA+. São datas em que esses grupos minoritários se empoderam e se reafirmam diante da sociedade.

É claro que há a diferença fundamental de que, nesses casos, há toda uma discussão e defesa de pautas que são bem mais amplas e de maior impacto, mas a lógica por trás da data é a mesma: uma dia para que grupos marginalizados tenham visibilidades em um contexto em que eles são constantemente apagados.

Assim, considerando que o nerd está no centro da cultura atual, a ideia de celebrar o que já é celebrado diariamente soa vazia.

Quando a festa vira uma lojinha

A maior prova disso é notar o quanto, nos últimos anos, o tal do Dia do Orgulho Nerd se tornou uma data muito mais comercial do que realmente comemorativa. Ao invés de ações feitas pela e para a comunidade, o que mais se vê são promoções vendendo bonecos, jogos e quadrinhos para esse público.

Claro que não há nada de errado com isso — e nossas coleções agradecem, sejamos sinceros —, mas chama a atenção como esse desequilíbrio se tornou aparente. Se a ideia é celebrar e comemorar, a comunidade não está fazendo muito bem o seu trabalho. Uma explicação para isso pode ser aquilo que comentamos há pouco: trata-se de um universo já em constante evidência o que torna a data um tanto quanto sem propósito.

Um episódio que ilustra bem esse esvaziamento é a própria mudança que o dia 25 de maio teve ao longo dos anos. Na verdade, as comemorações nerds começam no início dos anos 2000 como Dia da Toalha como uma homenagem ao escritor Douglas Adams e sua obra O Guia do Mochileiro das Galáxias.

Em 2001, pouco após a morte do autor, fãs decidiram prestar esse tributo saindo às ruas com uma toalha nos ombros. Era uma brincadeira com uma situação do livro e virou uma espécie de piada interna, aquela que somente os nerds que conheciam o texto iriam entender.

Percebe a diferença? A ideia inicial era justamente essa celebração da comunidade, ainda que silenciosa, em torno de um gosto em comum. A partir da morte de Adams, os fãs dessa ficção-científica se organizaram em um tipo de evento para que pudessem se reconhecer na rua, com a toalha sendo esse símbolo de pertencimento.

Pouco tempo depois, em 2006, um grupo de espanhóis expandiu a ideia com o Dia do Orgulho Nerd com a mesma proposta: empoderar quem sempre teve vergonha de gostar de coisas que o mainstream marginalizava. Mais uma vez, era uma forma de fortalecer a comunidade não só mostrando sua presença, mas nos próprios laços entre seus membros. Mas e agora?

É errado comemorar?

Claro que não! Não se trata de defender que o nerd deve voltar a sentir vergonha dos seus gostos ou coisa do tipo, mas de entender o que estamos comemorando — se é que algo está sendo celebrado ainda.

Na verdade, talvez o atual momento da cultura em que o universo geek segue em evidência demande uma evolução da data, uma ressignificação que justifique ainda falarmos em Dia do Orgulho Nerd. Da mesma forma que o Dia da Toalha se ampliou e ganhou novos sentidos, parece que é a hora de também tirarmos a mão do bolso e colocar na consciência para pensar o que esse orgulho significa de verdade.

Afinal, do que nos orgulhamos? De gostar de gibi, games e livros de fantasia? De ter um conhecimento enciclopédico sobre entretenimento? De ser uma comunidade engajada em seus gostos? Ou apenas de comprar bonequinhos e ter uma estante bonita em casa cheia de itens de colecionador?

Talvez um caminho seja justamente transformar o Dia do Orgulho Nerd em um dia de consciência. Aproveitar que estamos no centro da cultura para pensar e refletir sobre o que consumimos e como fazemos isso. Transformar o dia 25 de maio em uma data mais reflexiva do que apenas celebrativa — ou, como vimos nos últimos anos, consumista.

E um ponto de partida talvez seja a comunidade olhar para si mesma e ver o que ainda precisa melhorar. Não são poucos os relatos de comportamentos tóxicos nesse grupo, seja contra minorias diversas ou mesmo contra mulheres — e isso é algo que nem de perto deve ser motivo de orgulho. Então, repensar como nos apresentamos ao mundo é um bom começo para ressignificar a data.

Isso é algo que abre novos horizontes tanto em termos de grupo como para os próprios produtos. Ao mesmo tempo em que esse repensar comportamentos ajuda a tornar o meio mais amistoso para quem está chegando agora — quantos relatos você já não ouviu de machismo e racismo entre a comunidade nerd? —, esse novo olhar é também um caminho para que as próprias empresas vejam o potencial da diversidade.

Sucessos como Pantera Negra, Mulher-Maravilha e Homem-Aranha no Aranhaverso vieram após a própria comunidade nerd exigir mais representatividade, o que abriu os olhos das empresas para encarar o potencial existente nisso. O resultado foi positivo comercialmente, é claro, mas também entregou conteúdos muito bons para o público e abriu as portas para que mais pessoas sentassem com a gente no recreio.

E, depois de anos sendo excluídos, ter mais gente com quem conversar sobre nossos gostos é sempre ótimo. Então, que possamos estar sempre abertos a dar as boas vindas a quem quer que seja.

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