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Análise: a voz de Annie Ernaux nos faz pensar sobre nossas mazelas sociais

Obra da ganhadora do Nobel de Literatura reflete sobre temas cruciais que hoje se pretendem resolver apenas com orações

6 out 2022 - 11h18
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A francesa Annie Ernaux, ganhadora do Nobel de Literatura de 2022, pode representar muito para o Brasil neste momento: Ernaux é mulher, veio de uma família pobre, tornou-se professora de literatura e, como escritora, dedicou-se ao gênero que denominou "autossociobiografia", em que se vale de suas experiências pessoais para tratar de temas relevantes, tais como o aborto, a violência contra a mulher e a violência e o preconceito contra as classes sociais inferiores. São temas que já foram desenvolvidos em obras de outras tantas escritoras feministas, como Simone de Beauvoir.

Vale destacar ainda que, em matéria de linguagem, Ernaux tampouco apresenta inovações. Sua linguagem é clara e direta, talvez porque queira escrever para ser "entendida" e para que o seu "recado" chegue a um número maior de pessoas. Ainda assim, como ela revela em O Lugar, foi difícil escrever, "porque não era nada fácil lançar luz sobre fatos esquecidos, talvez fosse mais simples inventar".

Nesse mesmo livro, a escritora se debruça sobre a vida de seus pais e a sua própria na região em que viviam, apartados de livros e cultura. Seu avô, como ela conta, não sabia ler nem escrever, já seu pai teria dado um passo à frente, contudo, o único livro de que se lembrava ter lido era um didático, cheio de ensinamentos morais como: "aprender a estar feliz sempre com o destino que temos" ou "uma família unida pelo afeto possui a maior das riquezas". Na prática, esses ensinamentos eram postos de lado. Em A Vergonha, a escritora conta, por exemplo, como o seu pai tentou matar sua mãe.

Nos livros de Ernaux, percebe-se que ela se sente incomodada com esses preceitos morais. Em uma de suas narrativas, ela recorda a sua passagem por uma escola católica, na qual regras absurdas deveriam ser seguidas à risca e a religião estava acima do saber: "A oração é o ato essencial da vida, o remédio individual e universal. É preciso rezar para se tornar uma pessoa melhor, afastar a tentação, passar em matemática, curar doenças (...)".

Em O Acontecimento, o tema é o aborto, que para a mulher vem acompanhado de culpa e solidão. A autora reflete: "Na impossibilidade absoluta de imaginar que um dia as mulheres pudessem decidir abortar livremente. E, como de costume, era impossível determinar se o aborto era proibido porque era ruim, ou se era ruim porque proibido. Julgava-se de acordo com a lei; não se julgava a lei".

A obra de Annie Ernaux, que vem sendo publicada pela editora Fósforo, mereceria de todos nós uma leitura cuidadosa, pois, ouvindo a voz de uma estrangeira, talvez consigamos pensar sobre nossas próprias mazelas sociais e em temas cruciais que nos dias de hoje se pretendem resolver apenas com orações.

A propósito do termo "autossociobiografia", cunhado por Ernaux, lembro que, por aqui, Conceição Evaristo propôs o termo "escrevivência", remetendo a uma prática que gera relatos sobre questões tão emergenciais quanto as da escritora francesa agora laureada. A diferença é que Evaristo inova na escrita, tornando-a mais oral. Outra diferença é que a escritora brasileira ainda não teve o reconhecimento que de fato merece.

Estadão
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