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A dançarina que foi enterrada viva quando criança

Gulabo Sapera e sua família desafiaram as tradições e regras de sua comunidade nômade no Rajastão, no norte da Índia, em uma trajetória que a transformaria em uma embaixadora cultural e líder do povo

15 jan 2018 - 18h51
(atualizado às 19h13)
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A indiana Gulabo Sapera não deveria estar viva, muito menos ser dançarina ou ter ficado famosa. Mas, contrariando as tradições, ela e seus pais desafiaram sua própria comunidade no Estado do Rajastão, no norte do país, em uma trajetória que a transformaria na líder do povo que um dia a rejeitou e em uma celebridade global. Gulabo conversou com Sumiran Preet Kaur, da BBC Hindi, e conta a seguir sua história.

"Nasci em uma comunidade nômade. Nós viajávamos de um lugar para outro e acampávamos nos arredores de vilarejos, mas éramos mantidos separados. Os moradores nunca deixavam a gente entrar na cidade, a não ser que tivessem algum trabalho para nós.

Dançarina hoje é líder da comunidade nômade que a rejeitou quando era criança | Foto: Arquivo Pessoal
Dançarina hoje é líder da comunidade nômade que a rejeitou quando era criança | Foto: Arquivo Pessoal
Foto: BBC News Brasil

Somos conhecidos como os sapera, ou os encatadores de serpente, já que fazemos cobras dançarem. Nos festivais, nos deixavam entrar nos vilarejos para entretê-los com as cobras, e, se alguém era picado, nos chamavam para tratar a pessoa com nossos medicamentos tradicionais.

Levávamos uma vida dura viajando em meio à natureza. As famílias eram pobres e não podiam pagar os dotes e casamentos para suas filhas. O costume era ter apenas uma menina por família. Quando uma segunda menina nascia, era simplesmente enterrada viva.

Minha família era incomum: tinha três meninas e três meninos. Fui a sétima criança a nascer. Quando isso aconteceu, meu pai estava fora, em um mercado. Minha mãe ficou inconsciente no parto, e algumas mulheres me levaram para longe dela. Cavaram uma cova rasa, colocaram grama sobre mim e me cobriram.

Pouco depois, minha mãe acordou e perguntou por mim. Quando soube o que tinha acontecido, ela chorou e disse que meu pai ficaria bravo. Ele tinha outras três meninas e não acreditava neste costume. Uma mulher da comunidade perguntou: 'Como você vai cuidar de três garotas?'.

No meio da noite, minha mãe saiu escondida com minha tia, que a levou até onde eu estava. Elas me desenterraram e me encontraram com vida. No dia seguinte, toda a comunidade se reuniu, e alguns perguntaram: 'Como vocês a trouxeram de volta? Talvez ela seja uma bruxa. Como ela pode ter sobrevivido enterrada? Vocês devem matá-la, ou vamos fazer isso'.

Mesmo sendo repreendido, meu pai apenas cruzou os braços e disse que sua filha era especial, que tinha conseguido sobreviver e era filha da terra. Ele temia pela minha vida e me levava ao seu lado mesmo quando estava trabalhando. Ele era um encantador de serpentes. Foi como comecei a dançar com cobras quando tinha só 2 anos.

Não cresci junto a meus irmãos, mas com as serpentes. Dançava com elas enroladas no pescoço. Alguns na minha comunidade diziam que meninas não deviam dançar de forma alguma. Eles me deixavam fazer isso em festivais e nas feiras para conseguir dinheiro e comida, mas, em outras situações, me proibiam.

Insatisfeita com minha dança, minha comunidade pressionou meu pai para que eu ficasse noiva quando tinha 5 anos. Meu pretendente era 30 anos mais velho. Mas eu tive um acidente de bicicleta e quebrei a perna. Os pais do meu noivo souberam disso e disseram: 'Como ela vai trabalhar com uma perna ruim?'.

Então, eles acabaram com o noivado. Disse à minha mãe: 'Nunca mais me deixe ficar noiva, apenas me deixe dançar'.

Quando tinha 7 anos, eu me apresentei em uma feira, e um funcionário da secretaria de turismo me viu. Conforme eu dançava, as pessoas me davam muito dinheiro. Ficavam impressionadas com minha flexibilidade, diziam que era como se eu não tivesse nenhum osso no corpo.

Fui chamada para dançar para convidados internacionais. Foi tão legal, o palco parecia um templo, e o público, Deus. Sinto isso ainda hoje."

Mas Gulabo pagaria um preço por isso. Algumas pessoas de sua comunidade ficaram furiosas por ela ter dançado em público para estrangeiros, e sua família foi banida e teve de se mudar. Ela continuou a dançar e a trabalhar para a secretaria de turismo, que planejava uma visita aos Estados Unidos. Ela havia acabado de entrar na adolescência na época.

Na fronteira com o Paquistão, o Rajastão é o maior Estado da Índia
Na fronteira com o Paquistão, o Rajastão é o maior Estado da Índia
Foto: Reuters / BBC News Brasil

"Meu pai morreu um dia antes de eu ir para a América, mas, ainda assim, eu fui e dancei. Fiz isso por ele.

Fui a primeira menina de minha comunidade a viajar de avião. Foi como um sonho. Até mesmo viajar de ônibus e de trem parecia um sonho.

Quando fui à América, as pessoas me perguntaram: 'Qual é o nome de sua dança? Se você deu início à ela, deveria ter seu nome'. Respondi: 'Quero batizá-la em homenagem à minha comunidade, já que não somos reconhecidos em casa, somos considerados ultrapassados, então, a batizei como dança sapera'".

Gulabo tinha parado de dançar com serpentes a essa altura. Ainda assim, deixou muitos espectadores impressionados em Washington, tornando-se uma espécie de embaixadora cultural do Rajastão e da Índia.

"Quando fui à América, minha comunidade ficou impressionada ao ver meu nome nos jornais e por eu ter batizado a dança em sua homenagem. Eu trouxe fama e reconhecimento ao meu povo.

Depois de algumas performances, tinha dinheiro suficiente para me casar. Quando minha primeira filha nasceu, ainda não tinha um teto para viver. Morava em uma tenda.

Minha bebê tinha apenas 3 meses quando choveu tanto que a tenda se rompeu, então, eu e minha mãe ficamos sob uma enorme caixa para proteger minha menina."

O departamento de turismo socorreu Gulabo, organizando mais performances internacionais para ela. "Fui a Londres em 1986 com outro artista para nos apresentar. O público disse que queria mais. Dancei por uma hora sem parar. Depois disso, fui ao Reino Unido várias vezes.

Ganhei prêmios por minha dança em Jaipur (capital do Rajastão), na Dinamarca e na França. Também canto um pouco, então, já gravei dez álbuns. Também dei aulas de dança ao redor do mundo.

Hoje, tenho cinco filhos e sou a líder da minha comunidade. Depois das minhas performances, quando voltei da América, minha comunidade deixou de matar meninas. Essa foi minha maior conquista.

Mas ainda há muitas coisas que tenho de fazer, pela sociedade, pelas novas gerações, meus filhos, minha família. Ainda tenho muitos grilhões que preciso romper.

Dançar é minha vida. Quando danço, eu me torno outra pessoa. Perco a noção de tempo e me transporto para outro mundo.

Rezo para que, quando eu morrer, seja dançando. Pedi a Deus para, quando ele me chamar, que faça isso enquanto eu estiver no palco, para que, na próxima vida, eu seja uma dançarina de novo."

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