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'A Grande Onda de Kanagawa': o curioso percurso da gravura até virar um ícone

É uma das imagens mais reproduzidas e conhecidas da história, mas o quanto você sabe sobre ela?

27 nov 2021 - 12h03
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'A Grande Onda de Kanagawa', produzida por Katsushika Hokusai
'A Grande Onda de Kanagawa', produzida por Katsushika Hokusai
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Ela foi criada há 190 anos e continua sendo replicada por toda a parte.

Em murais e tatuagens, em selos e roupas, em desenhos animados e até emojis: A Grande Onda de Kanagawa, do artista japonês Katsushika Hokusai, não parece perder o encanto.

Em um espaço de apenas 25,7 por 37,8 centímetros, Hokusai conseguiu criar uma cena épica, um drama oceânico com uma composição simples, mas tremendamente poderoso.

Uma cena que você provavelmente já viu, mas sabia que...

1. O assunto não era a onda

A Grande Onda é, na verdade, uma vista do Monte Fuji, uma de uma série de gravuras coloridas desenhadas por Hokusai por volta de 1830 que, apesar de ter 46 xilogravuras ao todo, é chamada de "Trinta e seis Vistas do Monte Fuji".

Naquela época, o Monte Fuji era visto como uma divindade protegida, espetacularmente visível de Edo, a Tóquio moderna.

Causava certo medo, pela possibilidade de erupção do vulcão, mas também adoração, já que a neve em seu topo era sua fonte de água. Alguns pensavam que ela guardava o segredo da imortalidade.

Na verdade, embora a série inteira tenha sido elogiada quando foi lançada, a gravura Fuji Vermelha foi muito mais popular do que A Grande Onda no Japão de 1800, devido à reverência espiritual pela montanha sagrada.

"Fuji Vermelho", também conhecida como "Vento Sul, Céu Claro", da série "Trinta e seis Vistas do Monte Fuji"
"Fuji Vermelho", também conhecida como "Vento Sul, Céu Claro", da série "Trinta e seis Vistas do Monte Fuji"
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Com o tempo, essa reverência se tornou um culto com elementos do budismo e do xintoísmo. O fato de não ter sido a favorita não significa que A Grande Onda, com os barcos de pesca que se perdem nas ondas, enquanto a grande parede de água coroada por gavinhas em forma de dedo ameaça engolfá-los e a pequena montanha. Fuji à distância, passará despercebida.

Logo após sua publicação, outras gravuras começaram a aparecer, nas quais sua influência era palpável.

"Nas ondas de Kakuda, a caminho da Ilha do Sado", de Utagawa Kuniyoshi (1836)
"Nas ondas de Kakuda, a caminho da Ilha do Sado", de Utagawa Kuniyoshi (1836)
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

2. Hokusai pintou o quadro quando tinha 70 anos de idade

E, como ele mesmo disse, ainda estava aprendendo. Além do mais, ele estava convencido de que seu melhor trabalho ainda estava por vir.

Em um livro de memórias comovente que escreveu aos 76 anos, ele abriu seu coração.

"Desde os 6 (anos), eu tive uma queda por copiar a forma das coisas. A partir dos 50, as minhas imagens foram publicadas...", referindo-se a dez volumes de desenhos, cada um com 60 páginas cobertas por imagens de todos os temas imagináveis: figuras e animais reais e imaginários, plantas, paisagens marinhas, dragões, poetas e divindades.

Eles eram chamados de "mangás", uma espécie de protótipo do mangá moderno, embora o significado fosse um pouco diferente na época.

Depois de uma pausa, ele foi contratado para fazer mais dez volumes de seu mangá e pediu para que fossem feitos com papel mais barato para que suas ideias pudessem ser divulgadas mais amplamente.

Auto-retrato de Hokusai, aos 83 anos de idade, em 1842
Auto-retrato de Hokusai, aos 83 anos de idade, em 1842
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Talvez sua experiência anterior na produção de estampas de celebridades a preços acessíveis e que mudaram a moda o tenha alertado sobre o poder de atingir um público amplo.

"Mas até os 70 anos, nada do que desenhei era digno de menção", continuou ele em suas memórias.

Aos "73 anos, fui capaz de desvendar o crescimento de plantas e árvores, e a estrutura de aves, animais, insetos e peixes. Portanto, quando eu completar 80 anos, espero ter progredido cada vez mais, e nos 90, me aprofundar no princípio subjacente das coisas, de modo que aos 100 anos eu tenha alcançado um estado divino em minha arte. Assim, aos 110, cada ponto e cada linha serão como se estivessem vivos."

Ele termina dizendo: "Aqueles que vivem o suficiente dão testemunho de que essas palavras não são falsas." E a seguir assina, com o seu nome, seguido da descrição "Velho louco pela pintura".

Aquele "velho louco pela pintura" estava extremamente apto e ativo. Aos 80 anos, ele aceitou o convite para pintar ondas em Obuse, 240 km ao norte de Edo. Ele caminhou toda a distância.

Mas não pôde realizar seu desejo de continuar pintando até os 110 anos. Morreu em 1849, aos 89, sem suspeitar quão grande era o destino que aguardava sua grande onda.

3. Mais do que japonesa

A Grande Onda de Hokusai só alcançou praias estrangeiras 18 anos após a morte do autor, e mais de 35 depois de sua criação, já que o Japão ficou isolado por dois séculos.

Desde 1640, o país estava praticamente fechado para o mundo, e apenas uma interação limitada com a China e a Holanda era permitida.

Embora estrangeiros não pudessem entrar no Japão, coisas estrangeiras podiam, algo que é visto claramente em A Grande Onda.

Está impressa em papel tradicional de amora japonesa em tons sutis de amarelo, cinza e rosa. Mas a cor dominante é um azul intenso e profundo... um azul que não era japonês.

É azul da Prússia, inventado a meio mundo de distância, na Alemanha, 130 anos antes da quebra da onda de Hokusai.

O azul da Prússia foi o primeiro pigmento sintético moderno muito menos sujeito a desbotamento do que outros azuis tradicionais
O azul da Prússia foi o primeiro pigmento sintético moderno muito menos sujeito a desbotamento do que outros azuis tradicionais
Foto: BBC News Brasil

Essa cor nos mostra que o Japão tirou da Europa o que queria com absoluta confiança.

E mais: a série da qual A Grande Onda fazia parte foi divulgada ao público em parte com base naquele azul exótico e lindo, apreciado por sua estranheza.

E essa não foi a única importação da qual Hokusai se aproveitou.

Com a perspectiva matemática que aprendeu com as gravuras europeias trazidas por mercadores holandeses, ele empurrou o Monte Fuji para o fundo da cena.

Portanto, A Grande Onda, aponta o historiador e ex-diretor do Museu Britânico Neil MacGregor na reportagem da BBC "A História do Mundo em 100 Objetos", está longe de ser essencialmente japonesa, como costumamos pensar.

É uma obra híbrida, uma fusão de materiais e tecnologia europeus com uma sensibilidade japonesa.

"Não é de se estranhar que tenham gostado tanto dela quando veio para a Europa. Não era um estranho, mas um parente exótico."

O Monte Fuji é como uma âncora quase no fundo, com as ondas se aproximando cada vez mais de nós
O Monte Fuji é como uma âncora quase no fundo, com as ondas se aproximando cada vez mais de nós
Foto: BBC News Brasil

4. Inspirou grandes artistas

Na década de 1850, com o avanço da Revolução Industrial, as grandes potências manufatureiras buscavam agressivamente novas fontes de matérias-primas e novos mercados para seus produtos.

A dura atitude do Japão parecia incompreensível, na verdade intolerável. No final, os americanos concluíram que o livre comércio teria de ser imposto pela força. E eles conseguiram.

Quando as fronteiras foram abertas, houve uma avalanche da cultura visual japonesa no Ocidente, e sua influência nas artes ocidentais foi tanta que até ganhou um nome: Japonismo.

A apresentação para a sociedade ocidental de A Grande Onda ocorreu na Feira Mundial de 1867, em Paris, e seu impacto foi revolucionário.

O contraste entre a simplicidade com que ele expressou tal drama e as grandes pinturas a óleo europeias foi abismal.

Na extraordinária "A Balsa da Medusa" de Théodore Géricault (1819), uma grande onda também está prestes a cair sobre a frágil humanidade
Na extraordinária "A Balsa da Medusa" de Théodore Géricault (1819), uma grande onda também está prestes a cair sobre a frágil humanidade
Foto: BBC News Brasil

A Grande Onda de Hokusai foi uma das obras japonesas que motivaram profundamente o movimento impressionista francês, que por sua vez moldou o curso do modernismo europeu, o movimento artístico e filosófico que definiria o início do século 20.

Pintores como James McNeill Whistler (1834-1903) e Gustave Courbet (1819-1877) perceberam que a representação das ondas era uma oportunidade para se libertar das limitações do realismo.

Os impressionistas aceitaram o desafio e, no final do século 19, conforme o movimento evoluiu para o pós-impressionismo, a icônica paisagem marinha de Hokusai serviu ainda mais como um guia estilístico para artistas como Vincent van Gogh.

Em uma carta para seu irmão de 1888, Van Gogh comenta: "(A Grande Onda) de Hokusai faz você gritar ('Eu não sabia que algo poderia ser tão assustador com azul e verde'), mas no caso dele com suas linhas, seu desenho... você diz a si mesmo: essas ondas são garras, o navio está preso nelas, dá para sentir".

Há quem cite a Noite Estrelada de Van Gogh, com o azul prussiano e as formas da onda Hokusai no céu, como o exemplo mais vivo da marca que deixou nos fundadores modernistas europeus, do artista japonês.

Obra "Noite estrelada", de Van Gogh
Obra "Noite estrelada", de Van Gogh
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Vários outros absorveram 'A Grande Onda' e a filtraram em suas criações, não apenas na pintura.

No final do século 19, o francês Camille Claudel criou La Vague (1897), uma escultura em que os navios da Grande Onda foram substituídos por ninfas do mar.

O compositor Claude Debussy, que estava trabalhando com uma impressão de A Grande Onda na parede de seu estúdio, escolheu uma reprodução dessa obra de Hokusai para a capa da primeira edição da partitura publicada da peça orquestral La Mer, de A. Durand & Fils, em 1905.

5. Era muito barata

Sabemos que em 1842 o preço de cada impressão de A Grande Onda foi oficialmente fixado em 16 mons, o equivalente a dois pacotes de macarrão.

Hoje, custa vários milhões de pacotes de macarrão
Hoje, custa vários milhões de pacotes de macarrão
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Era uma arte barata, mas quando impressa em grandes quantidades de acordo com padrões técnicos requintados, podia ser muito lucrativa: as pessoas ficavam fascinadas em usá-la para decorar suas casas.

No entanto, no Japão, as xilogravuras não eram vistas como arte, como disse Christine Guth, da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, à BBC. De modo que a elite instruída e os funcionários do governo não ficavam felizes por serem símbolos japoneses culturais no exterior, em vez de outras coisas menos plebeus.

"Garota se Afogando" por Roy Lichtenstein, 1963
"Garota se Afogando" por Roy Lichtenstein, 1963
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

De certa forma, seus desejos foram realizados porque, com as guerras do século 20, as expressões artísticas japonesas perderam destaque.

Mas, inesperadamente, na década de 1960, uma nova geração de jovens artistas ficou entusiasmada com a cultura popular e uma das fontes populares de inspiração foram as antigas xilogravuras japonesas, produzidas em grande número, com baixo custo e lindamente executadas com uma grande economia.

Andy Warhol, David Hockney e particularmente Roy Fox Lichtenstein pegaram ideias de artistas como Hokusai e reinterpretaram sua visão: 'A Grande Onda' tinha um significado especial para eles.

No Japão, a arte popular retornou por meio de pôster, de acordo com o espírito de Hokusai.

Em 1966, por exemplo, Tadanori Yoko, um dos artistas japoneses de maior sucesso, usou A Grande Onda e combinou-a com ícones contemporâneos como o trem-bala.

Fez isso novamente em outro pôster de 1969, em que a crista da onda vira um cavalo, como na obra Cavalos de Netuno, de 1910, do britânico Walter Crane, que era fascinado pela arte japonesa, retratando nos cartazes a viagem de ida e volta do trabalho.

"A grande onda" na fachada do complexo residencial Etalon City em Moscou...
"A grande onda" na fachada do complexo residencial Etalon City em Moscou...
Foto: Getty Images / BBC News Brasil
... reproduzida com diferentes tipos de plantas de arroz nas plantações de Goyda, no Japão ...
... reproduzida com diferentes tipos de plantas de arroz nas plantações de Goyda, no Japão ...
Foto: Getty Images / BBC News Brasil
...em um mural em Bristol, Inglaterra
...em um mural em Bristol, Inglaterra
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Aos poucos, A grande Onda voltou a conquistar o mundo.

Ah! E o que a princípio custava o mesmo que um pacote de macarrão, hoje custa muito mais: em março de 2021, uma gravura de A Grande Onda feita por volta de 1831 foi vendida por US$ 1,6 milhão (quase R$ 9 milhões na cotação atual) em um leilão de arte japonesa e coreana de Christie's Asia, em Nova York.

6. Não é um tsunami

Muitas pessoas presumem que A Grande Onda representa um tsunami.

"Podemos ter certeza de que não é um tsunami", disse o especialista em hidrodinâmica Chris Swan, do Imperial College London, à BBC.

"Tsunamis são ondas geradas por eventos sísmicos, muitas vezes em águas profundas. Quando isso acontece, a onda tem uma crista muito longa, o que não é o caso da imagem."

Produto da sua imaginação?

Não exatamente: os marinheiros há muito relatam esses fenômenos, mas foi recentemente que começaram a ter crédito, graças à pesquisa científica.

"É a imagem de uma onda gigante ou monstro, uma onda piramidal. São ondas geradas por sobreposição: a soma de muitas ondas existentes, cristas sobre cristas."

Assim, o que Hokusai desenhou é um fenômeno natural, infundindo à imagem um drama e escala extraordinários, criando uma das melhores representações do poder do mar na história da arte.

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