As lições da Alemanha na reconstrução de museus destruídos pela guerra
'Prédios emblemáticos são importantes para a alma do povo', diz responsável por museus públicos de Berlim, que oferece ajuda ao Brasil no processo de restauração do Museu Nacional.
Após o incêndio de domingo passado ter destruído parte da sede do Museu Nacional e 90% de uma coleção de cerca de 20 milhões de itens, o governo brasileiro anunciou R$ 10 milhões para obras de emergência no prédio. A instituição, que completou 200 anos em 2018, terá disponível outros R$ 21,7 milhões, aprovados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social em junho, para restaurar o edifício. Mas como esse processo deve ser conduzido?
A experiência europeia na recuperação de museus e prédios históricos destruídos durante a 2ª Guerra Mundial pode ser útil para o futuro do Museu Nacional.
"Infelizmente por causa da guerra adquirimos conhecimento sobre (como restaurar) prédios culturais destruídos", diz à BBC News Brasil Hermann Parzinger, presidente da Fundação de Herança Cultural Prussiana, instituição cultural responsável pelos museus estatais de Berlim.
"É uma decisão dos brasileiros, mas creio que a comunidade internacional está pronta para ajudar e fornecer conselhos desde que sejamos acionados."
A capital alemã abriga, entre outros, dois relevantes exemplos de recuperação de edifícios destruídos: o Museu Novo (Neues Museum, em alemão) e o Palácio da Cidade (Stadtschloss), um prédio demolido nos anos 1950 e que está sendo completamente reconstruído no coração da antiga Berlim Oriental.
Em ruínas por 60 anos
Projetado com base nos planos de Friedrich August Stüler, o Neues Museum foi inaugurado em 1859 na Ilha dos Museus, que reúne os cinco museus mais importantes de Berlim. Muito danificado e parcialmente destruído durante a Segunda Guerra Mundial, ele ficou na parte Oriental da cidade, sob influência soviética durante a Guerra Fria.
Enquanto os outros quatro prédios da Ilha foram restaurados, a Alemanha Oriental planejou demolir o Neues Museum diversas vezes, deixando o edifício em ruínas por mais de 60 anos. Apenas em 1985 sua recuperação foi aprovada.
Em 1997, já após a reunificação da Alemanha, um concurso escolheu o arquiteto David Chipperfield para restaurar o prédio. As obras, que duraram entre 2003 e 2009, adotaram um conceito de "restauração complementar". Ou seja, preservaram o que restava do museu e incluíram elementos novos perceptíveis, mas harmônicos em relação às partes originais.
Os arquitetos buscaram soluções individuais para reparar os danos de cada um dos ambientes, priorizando a preservação de elementos históricos. "Foi um projeto de pesquisa porque cada galeria, cada ambiente e cada parede foi documentada precisamente sobre o que havia sido preservado e o que estava faltando", explica Parzinger.
O processo contou com arquitetos, restauradores, conservadores, historiadores de arte, arqueólogos e especialistas nos objetos que seriam exibidos quando o museu fosse reaberto. "Eles pensaram em como lidar com cada espaço. Creio que o Museu Nacional também precisará reunir enorme expertise", diz.
Desafios e custos
O presidente da Fundação de Herança Cultural Prussiana alerta que reconstruir edifícios seriamente danificados mantendo peças "sobreviventes" é um projeto custoso. Além disso, pode haver dissenso sobre a forma de recuperar o prédio, como ocorreu com o Neues Museum.
"Um movimento em Berlim queria que o museu fosse reconstruído exatamente como antes da guerra, incluindo todo o design interior. Isso é uma loucura porque pode-se reconstruir o prédio, mas não as pinturas que foram perdidas."
Integrantes do movimento tentaram mobilizar a população em favor dessa abordagem, mas os responsáveis pelo projeto defenderam sua posição. "Tivemos uma grande briga para convencer o público. Mas quando reabrimos o museu foi um sucesso. As pessoas entenderam a mensagem da reconstrução. Foi um desafio para o arquiteto manter o design, combinar e criar uma harmonia entre o velho e novo e convencer o público sobre isso."
Palácio ressuscitado a partir das fotos
No início do século 18, o Stadtschloss era o prédio secular barroco mais importante ao norte dos Alpes. Originalmente construído em 1441, foi expandido em estilos renascentistas e depois barroco - este último sob a guarda de Andreas Schlüter.
O palácio, uma das residências da dinastia real prussiana, também ficou severamente danificado após a Segunda Guerra e acabou demolido pela Alemanha Oriental. Em seu lugar, foi construído o modernista Palácio da República, sede do parlamento daquele país.
Com a reunificação alemã em 1990, o debate sobre a reconstrução do Stadtschloss se arrastou por cerca de 20 anos. Houve pressão popular a favor da obra, assim como críticas sobre o seu elevado custo e a importância de se preservar o Palácio da República, além de questionamentos a respeito de o Stadtschloss representar um passado alemão imperialista.
Em 2002, o Parlamento alemão aprovou a reconstrução do palácio com o orçamento superior a 500 milhões de euros, divididos entre o setor público (que bancou a maior parte dos custos) e a iniciativa privada, que coletou doações para três fachadas no estilo barroco original (a outra frente tem estilo moderno). Em seu interior, contudo, trata-se de um prédio novo.
O edifício, que deve ser inaugurado em 2019, será usado pelo Humboldt Forum para atividades culturais focadas em arte não europeia e cultura mundial nos moldes do Museu Britânico, no Reino Unido.
"Para reconstruir completamente um edifício, é preciso ter bom planejamento e fontes sobre como ele costumava ser", conta Bernhard Wolter, chefe de Comunicação de Construção e Angariação de Fundos do Humboldt Forum.
"Tivemos sorte porque, no final do século 19, o órgão (responsável pela) construção tirou fotografias bem exatas de todos os edifícios públicos. Também havia muitas fotografias detalhadas tiradas quando a autoridade comunista já tinha encomendado a demolição do edifício. Então podemos reconstruir o que foi fotografado."
Herança cultural
Como se trata de uma réplica, o Stadtschloss teria o mesmo valor histórico do original? Parzinger e Wolter acreditam que sim.
"Um ótimo exemplo é a reconstrução do Campanile di San Marco em Veneza, concluída em 1912. O prédio entrou em colapso, então as autoridades italianas tiveram que tomar a decisão de reconstruí-lo ou não. Eles o reconstruíram e agora ninguém sabe disso", argumenta Wolter.
"Creio que em 100, 150 anos ninguém vai saber que o Palácio de Berlim é uma reconstrução porque o lugar tem mais significado que o próprio prédio. Os japoneses reconstroem a cada 25 anos o Palácio do Imperador em Kyoto porque é feito de madeira, que apodrece, mas o significado do edifício é igual", completa.
Parzinger acredita ser importante considerar como a população se sente a respeito do edifício a ser restaurado. "(A igreja) Frauenkirche, em Dresden, foi completamente destruída na guerra e reconstruída nos anos 1990. Agora o horizonte da cidade está completo, as pessoas estão de novo se identificando com Dresden e os turistas vão ao prédio. Prédios emblemáticos são importantes para a alma do povo."
O arquiteto italiano Franco Stella, vencedor do concurso para projetar o Stadtschloss em 2008, esclarece ser necessário separar a reconstrução da "forma" de um edifício do seu conteúdo. "O Palácio da Cidade reproduz de forma fiel os volumes e as fachadas barrocas destruídas, mas o seu conteúdo é completamente novo", explica.
"Ao longo de cinco séculos de sua história, o Palácio foi a residência de reis prussianos e imperadores alemães, enquanto o conteúdo do novo prédio é o Humboldt Forum. O Parlamento alemão decidiu reconstruí-lo em virtude de sua importância histórica e para a identidade urbana e arquitetônica do centro de Berlim. A sua reconstrução repara uma ferida aberta no coração da cidade", afirma.
'Desastre é parte da história': conselhos ao Museu Nacional
Segundo Parzinger, após as autoridades brasileiras realizarem uma avaliação detalhada do estado da sede do Museu Nacional, um plano de restauração deveria manter a estrutura original visível. "Mas não reconstruir de uma forma como se nada tivesse acontecido, porque o desastre é parte da história também. Isso tem que ser documentado em um novo museu. É o que fizemos no Neues Museu."
Stella destaca que para reconstruir o museu, é necessário "a existência de uma documentação adequada e exaustiva do que foi perdido". "Partindo dessa documentação, as técnicas disponíveis hoje permitem uma reprodução muito semelhante ao original."
Para Wolter, o mais importante agora é ter calma. "É uma questão de oferecer tempo o bastante para que os arquitetos e engenheiros possam pensar sobre os problemas e desenvolverem um bom plano."