As manobras que disfarçam a desigualdade salarial entre homens e mulheres
Todas as empresas do Reino Unido com 250 funcionários ou mais têm que publicar um relatório anual de remuneração por gênero. Mas alguns fatores podem mascarar a escala do desequilíbrio salarial.
Jornalista em Londres, Kate (nome fictício) já vinha pensando em deixar seu emprego em um jornal de circulação nacional no Reino Unido.
Em fevereiro, finalmente tomou a decisão depois de receber uma oferta de uma empresa muito maior que quase dobraria seu salário.
O aumento salarial foi, sem dúvida, um grande diferencial, mas a relutância de seus ex-empregadores em publicar as diferenças salariais entre homens e mulheres também era motivo de incômodo.
A disparidade salarial entre homens e mulheres é a diferença nos salários médios pagos a representantes do sexo masculino e feminino.
Ela é influenciada por múltiplos fatores: mulheres passando a trabalhar meio período para cuidar dos filhos, homens subindo mais rápido e tendo menos interrupções de carreira, bem como - em alguns casos - discriminação direta.
Desde 2017, todas as empresas do Reino Unido com 250 funcionários ou mais são obrigadas a publicar um relatório anual de diferenças salariais entre homens e mulheres, estabelecendo a média e a mediana de salário para cada gênero, bem como informações sobre bônus e discriminação de cada gênero em diferentes grupos salariais.
Diretrizes abarcam todos os setores, não deixando dúvidas sobre quais funcionários devem ser contados, mas algumas empresas parecem ter identificado maneiras de contornar a legislação.
Kate, que é natural da Irlanda, diz que, embora fosse pequena, sua antiga empresa empregava dezenas de freelancers e trabalhadores informais. Se todos os terceirizados fossem contratados, diz ela, o número de funcionários certamente atingiria os 250.
"Pessoalmente, senti como que, se não denunciasse, a empresa estaria se esquivando da lei e não me sentiria bem comigo mesmo", diz. "A mídia tem dado bastante cobertura ao assunto; por isso, ao não agir de acordo com o que dizem acreditar, eles estão realmente comprometendo sua própria integridade."
A BBC prometeu reduzir a zero a disparidade salarial entre homens e mulheres até 2020, mas informou que, em 2018, pagou às mulheres 8,4% menos do que aos homens, contra 10,7% no ano anterior. A diferença média de remuneração foi de 7,6%, frente a 9,3% em 2017.
Problema global
As novas diretrizes do Reino Unido seguem as medidas implementadas por outros países para coibir a desigualdade salarial entre gêneros.
As nações escandinavas foram pioneiras. Na Noruega, as declarações de impostos de renda (e, portanto, informações sobre salários) estão disponíveis ao público há anos, enquanto, em 2018, a Islândia se tornou o primeiro país do mundo a estabelecer regras para impor legalmente a igualdade salarial.
Na Austrália, o partido de oposição prometeu introduzir uma legislação semelhante à do Reino Unido. No Brasil, a legislação garante a igualdade salarial entre homens e mulheres na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) desde 1943.
Globalmente, o quadro continua sombrio: de acordo com o relatório global sobre a desigualdade de gênero do Fórum Econômico Mundial, publicado em dezembro de 2018, a diferença salarial entre homens e mulheres no ano passado era de 51%. No ritmo atual, seriam necessários 202 anos para que as mulheres ganhassem o mesmo que os homens e tivessem as mesmas oportunidades de emprego.
Quando foram divulgados no início de abril, os últimos dados sobre as disparidades salariais no Reino Unido não apresentaram melhora significativa na comparação anual - a diferença salarial média passou de 9,7% para 9,6%.
No entanto, o problema é muito mais profundo: empresas do Reino Unido estão fazendo suas próprias auditorias e há inúmeras brechas que podem ser exploradas para disfarçar a extensão do desequilíbrio salarial.
Heejung Chung, da Escola de Política Social da Universidade de Kent, no Reino Unido, diz que um dos grandes problemas está relacionado à terceirização. Grandes instituições, como universidades, tendem a ter contratos de terceirização para serviços como limpeza.
"Muitas vezes esses funcionários são mal pagos e frequentemente do sexo feminino", diz Chung. Se fossem incluídos como empregados, a disparidade salarial entre homens e mulheres certamente aumentaria, acrescenta ela.
Helene Reardon Bond, ex-diretora de igualdade de gênero do governo do Reino Unido, diz que ouviu consultorias aconselhando empregadores a criar novas entidades legais "para que as empresas possam acomodar seus negócios de acordo com seus interesses". Em outras palavras: departamentos onde os salários são menores são registrados como outras pessoas jurídicas.
Também não existem medidas para impedir que as empresas se dividam em várias entidades menores, com menos de 250 funcionários, isentando-as de precisar publicar quaisquer dados sobre diferenças salariais entre homens e mulheres.
Contracheques inadequados
No ano passado, consultorias e escritórios de advocacia foram criticados por argumentar que seus empregados com os salários mais altos, em sua maioria do sexo masculino, eram "proprietários" e não "funcionários", tirando-os, portanto, dos cálculos de diferenças salariais.
Posteriormente, as empresas cederam à pressão do governo e reatualizaram seus números, passando a incluir os salários dos sócios. Mas algumas ainda têm consultores altamente remunerados que não aparecem na folha de pagamento. O argumento é que eles são terceirizados.
Em um nível mais básico, mesmo depois de os dados terem sido registrados, os mecanismos para verificar sua autenticidade são muito limitados.
Uma investigação realizada pelo Financial Times em 2018 mostrou que um em cada 20 relatórios sobre diferenças salariais entre gêneros era estatisticamente improvável e, portanto, provavelmente impreciso.
Por exemplo, 16 empresas originalmente declararam pagar a homens e mulheres salários idênticos. Várias - incluindo a grife Hugo Boss - foram obrigadas a revisar seus números.
No Reino Unido, cabe à Comissão de Igualdade e Direitos Humanos a tarefa de fiscalizar a aplicação da legislação, mas Bond diz que os poderes da comissão são "bastante ultrapassados para este tipo de processo e exigências de publicação".
Charles Cotton, conselheiro sênior de remuneração e recompensas do Chartered Institute of Personnel and Development do Reino Unido, que assessora o governo sobre questões legais como salários, demissões e pensões, diz que ainda não viu evidências de empresas manipulando ativamente seus números. Apesar disso, diz estar preocupado com a veracidade das estatísticas.
É fácil cometer erros nos relatórios, diz ele, particularmente "se os dados forem divididos em folha de pagamento, pessoas e sistemas financeiros que não se comunicam entre si".
Mas alguns críticos dizem que as empresas podem estar apenas se comprometendo verbalmente com a lei. No ano passado, quando o governo britânico anunciou que não estenderia as exigências de relatórios de desigualdade salarial entre homens e mulheres para empresas menores, a deputada Rachel Reeves disse que continuaria "a pressionar as empresas (...) para garantir que os dados reportados sejam relevantes".
Soluções
É muito mais fácil implementar sanções se uma empresa não está fazendo nada para melhorar a diversidade - por exemplo, quando o corpo de executivos é formado apenas por homens. É aí que a mudança - embora a um ritmo bem devagar - parece estar acontecendo.
Dezenas de grandes investidores, particularmente gestores de ativos na França como Axa, Amundi e BNP Paribas Asset Management, se concentraram nos últimos anos em fundos socialmente responsáveis não investem em empresas que vendem álcool e tabaco, promovem jogos de azar, estão envolvidas indiretamente em conflitos armados ou contribuem para a degradação ambiental.
E a diversidade pode ser a próxima fronteira quando se trata dos parâmetros éticos para os investimentos.
Em fevereiro, a Hermes Investment Management, com sede no Reino Unido, que administra mais de 33 bilhões de libras (R$ 165 bilhões) em ativos, disse que seria mais rigorosa a investir em empresas que não se comprometam com a igualdade salarial entre os gêneros. Outros fundos de investimento poderiam seguir o exemplo.
Cotton, da CIPD, aponta para a Alemanha e a França como países que dão exemplos positivos quando se trata de melhorar a transparência e, assim, efetuar mudanças.
"Na Alemanha, todos os funcionários podem solicitar uma comparação salarial contra seis funcionários comparáveis do sexo oposto", explica ele. "As pessoas podem ir à Justiça se acreditarem que foram discriminadas. Até o momento, houve relativamente poucas solicitações de funcionários, mas é provável que isso mude à medida que mais pessoas se conscientizem desse dispositivo legal".
Como no Reino Unido e no Brasil, é ilegal na Alemanha pagar salários diferentes para homens e mulheres pelo mesmo trabalho. Mas discrepâncias facilitadas por uma cultura de sigilo de pagamento ainda existem e são um fator que contribui para a disparidade salarial entre homens e mulheres.
Enquanto isso, na França, empresas com mais de 1 mil funcionários recebem uma pontuação de zero a 100 com base em critérios que incluem diferença salarial e taxas de promoção. Os empregadores com pontuação abaixo de 75 recebem um prazo de três anos para melhorar seu status. Se não o fizerem, têm de pagar uma multa equivalente a 1% da sua folha de pagamento.
A França também anunciou que lançará um software especial para monitorar as folhas de pagamento corporativas por diferenças salariais entre homens e mulheres.
Bond diz que são os países escandinavos que "se destacam com auxílio-creche universal, excelentes pacotes de licença maternidade e paternidade". Isso importa, diz ela, porque a diferença salarial entre homens e mulheres se torna mais pronunciada quando o casal decide começar uma família. As políticas na Suécia incentivam os pais a também interromper a carreira para cuidar das crianças.