Carnaval 2020: quando tocar samba dava cadeia no Brasil
O ritmo foi tratado como sinônimo de vadiagem até o governo de Getúlio Vargas. Na época, andar com um pandeiro ou outro instrumento de percussão podia dar até 30 dias de cadeia.
Tocar samba já foi motivo para ser preso no Brasil. Ou seja, ser sambista era sinônimo de ser "vadio" e, por associação, "bandido".
O pioneiro sambista João da Baiana (1887-1974), por exemplo, enfrentou frequentes problemas com a polícia quando andava com seu pandeiro pelas ruas do Rio de Janeiro.
No início do século 20, ele foi parado por policiais porque estava com o instrumento musical na mão.
Em uma das ocasiões, um agente resolveu apreender o pandeiro, visto como uma prova da "vadiagem" do compositor, segundo narrou o biógrafo Lira Neto em seu livro Uma História do Samba (Cia. das Letras).
Naquele dia, sem o pandeiro, João decidiu faltar a uma roda de samba da qual fazia parte. O senador José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915), fã do ritmo e um dos políticos mais importantes da época, ficou sabendo da história e pediu que João fosse a seu gabinete.
Membro do então Partido Republicano Conservador, Pinheiro Machado escreveu uma dedicatória assinada no novo pandeiro de João: "A minha admiração, João da Baiana — Senador Pinheiro Machado".
A partir de então, quando era parado por policiais, o músico mostrava o instrumento com a assinatura do parlamentar. Funcionava como um salvo-conduto contra a repressão.
O caso do compositor é ilustrativo de como o samba — hoje um dos ritmos mais ouvidos do país — foi um dos movimentos culturais da comunidade negra a sofrer perseguição da lei e de autoridades racistas. Ocorreu o mesmo com a capoeira e, décadas depois, com o rap e com o funk.
Em 1890, dois anos depois da promulgação da Lei Áurea, foi estabelecida por legislação a definição do crime de "vadiagem". Ou seja, se uma pessoa andasse na rua e não comprovasse estar trabalhando, podia ser levada à delegacia. O "crime" rendia até 30 dias de prisão.
O samba acabou sendo enquadrado como um dos símbolos da criminalidade. "A simples posse de um instrumento de percussão podia ser interpretada como indício de vagabundagem", diz Lira Neto.
Perseguição e 'embranquecimento'
Mas, antes de o ritmo surgir oficialmente em 1916 — com a gravação da música Pelo Telefone, de Donga —, as autoridades do Rio de Janeiro já vinham trabalhando em um processo de "embranquecimento" da cidade e de repressão à população negra e pobre.
"Já no final do século 19, buscou-se acabar com os cortiços que existiam na cidade, em especial os do centro, pois já se havia percebido que não era esse o tipo de habitação que condizia com o novo tipo de organização social que o Rio de Janeiro deveria apresentar", escreveram os pesquisadores em Direito Rafaela Cardoso Bezerra Cunha e Ricardo Augusto de Araújo Teixeira, da Universidade Federal de Lavras (UFLA), em um ensaio sobre o tema.
Na época, a prefeitura implantou a chamada Reforma Pereira Passos, cujo objetivo era melhorar o saneamento básico e as condições sanitárias do Rio. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) resumiu o plano em um artigo publicado em seu site.
"Em poucos anos, uma nova metrópole nasceria [...] Edifícios suntuosos e de arquitetura variada surgiram para ornamentar as novas avenidas; hábitos considerados incompatíveis com os preceitos da higiene pública foram proibidos; novas redes de esgoto e de abastecimento de água foram construídas, assim como novas linhas de bonde, agora eletrificadas; a iluminação pública, antes fornecida pelos lampiões a gás, começou a ser substituída por postes de eletricidade", diz o texto.
Por outro lado, o projeto teve uma consequência ruim para a população mais pobre — e esses efeitos são sentidos até hoje. "Com as demolições, a população que tinha alguma fonte de renda deslocou-se do centro para o subúrbio, enquanto que os mais pobres foram habitar as encostas dos morros, engrossando o contingente populacional das favelas que começavam a surgir", resume a Fiocruz.
Além de intervenções urbanísticas, a reforma buscou modificar também a cultura carioca, fomentando elementos europeus em contraponto às manifestações negras. "A intenção de Pereira Passos era 'civilizar' a cidade, e o que fez para isso foi um aburguesamento do Rio de Janeiro em detrimento de uma imensa população pobre", escrevem os pesquisadores da UFLA.
A repressão à cultura negra se intensificou, então. "Dessa forma, muitos cidadãos mais pobres do Rio de Janeiro tiveram tanto suas moradias quanto seus hábitos e seus meios de sobrevivência tolhidos pelo ideal europeu de 'civilização' que se tentou implantar no Brasil naquela época", escreveram.
Em entrevista recente à BBC News Brasil, Reinaldo Santos de Almeida, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirmou ser "indissociável" a relação entre a perseguição ao samba e o racismo.
"A perseguição no início do século passada é tão racista quanto o sistema de justiça criminal brasileiro, cujo critério determinante é a posição de classe do autor, ao lado da cor de pele e outros indicadores sociais negativos, tais como pobreza, desemprego, falta de moradia", disse ele, cujo doutorado abordou a criminalização do samba.
Segundo Almeida, sambistas não eram enquadrados apenas quando portavam instrumentos, mas também quando tinham calos nos dedos ou fossem flagrados em rodas de capoeira.
Essa criminalização durou até a Presidência de Getúlio Vargas, que passou a valorizar elementos da cultura brasileira para reforçar o nacionalismo, uma de suas bandeiras. Porém, alguns sambistas ainda sofreram com a censura estatal. Músicas que ironizavam o trabalhismo, um dos pilares do Estado Novo, sofreram intervenção.
A letra de Bonde de São Januário, de Ataulfo Alves e Wilson Batista, por exemplo, teve um trecho alterado por ordem do governo. A letra ironizava: "O bonde São Januário/ leva mais um otário/ só eu não vou trabalhar". A palavra "otário" foi trocada por "operário" e o trecho seguinte, substituído por "sou eu que vou trabalhar".
"Com o surgimento das escolas de samba, o Estado adotou uma postura paternalista de controle, com regras e regulamentos para o desfile em cortejo na Avenida, a fim de conter as classes perigosas e as massas populares nas ruas da cidade", afirmou Almeida.
'Ordem na desordem'
Essa tentativa de controlar manifestações populares é mais antiga que o samba. A festa conhecida como Entrudo, que ocupava as ruas já no século 17, era muito mal vista entre elite brasileira por sua característica "baderneira".
"As classes mais ricas queriam disciplinar e confinar a festa em salões ou carros alegóricos, à moda europeia", explica Danilo Cymrot, doutor em criminologia pela USP.
Séculos depois, ocorreu o mesmo com o Carnaval. Até 1967, blocos de rua eram reprimidos pela polícia paulistana — imagem que se repetiria no início dessa década, com a PM dispersando o público carnavalesco com bombas de efeito moral.
Em 1967, o então prefeito de São Paulo, José Vicente Faria Lima, decidiu "disciplinar" a festa, editando um decreto que confinava os desfiles na avenida São João, no centro da cidade. Já em 1991, a prefeita Luiza Erundina (então no PT) inaugurou o Sambódromo do Anhembi, dedicado às escolas de samba.
"Muitas vezes, a repressão vem com a cooptação. A ideia é colocar ordem na desordem. O poder público passou a injetar dinheiro nas escolas de samba se elas fizessem o que a prefeitura queria. Ou seja, desfilar em locais fechados com horário determinado", explica Cymrot, que pesquisa a criminalização de manifestações culturais.
Para ele, o mesmo vem ocorrendo com chamados fluxos ou pancadões. Os eventos reúnem milhares de jovens em ruas de bairos periféricos, produzindo música alta e bagunça, o que incomoda moradores e comerciantes.
Alguns pancadões são frequentemente encerrados com bombas lançadas pela polícia — em dezembro do ano passado, por exemplo, nove jovens morreram durante uma operação da Polícia Militar em um baile funk em Paraisópolis, maior favela paulistana.
Em São Paulo, vereadores e deputados apresentaram projetos que propunham "disciplinar" os pancadões, ou até confiná-los em áreas fechadas, como o Autódromo de Interlagos.
"Como essas festas jovens são informais e improvisadas, o poder público não criminaliza diretamente por meio de leis. Mas ele cria uma série de regras e exigências que as pessoas não conseguem cumprir. Então, a repressão policial é justificada porque alguma norma não foi cumprida", diz Cymrot.
Perseguição a outros ritmos
Assim como o samba, a capoeira é hoje um dos símbolos da cultura brasileira, mas, nos séculos 19 e 20, ela também era considerada crime. Antes da Lei Áurea, de 1888, o medo dos governantes era de que a dança, misturada à luta, pudesse levar a uma revolta de escravizados.
"Dessa forma, as autoridades, buscando conter a evolução da prática da capoeira, pelo medo de uma rebelião escravista e visando punir os praticantes, entenderam, de forma implícita, que a prática da capoeira podia ser tratada como vadiagem", escreveram as pesquisadoras Janine de Carvalho Ferreira Braga e Bianca de Souza Saldanha em estudo sobre a criminalização da modalidade.
Mesmo depois da Lei Áurea, a luta continuou proibida. O Código Penal de 1890 avisava da possível punição: "Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação de capoeiragem: pena de prisão celular por dois a seis meses".
A capoeira só deixou de ser crime também durante o governo Vargas, que enxergou na modalidade uma forma de valorizar a cultura brasileira.
Mais tarde, e em menor proporção, o rap também teve problemas com a Justiça. Em novembro de 1997, os integrantes da banda Planet Hemp foram presos em Brasília por "apologia às drogas", em virtude de suas letras sobre consumo de maconha.
No ano 2000, a polícia do Rio "investigou" o clipe Soldado do Morro, do rapper MV Bill, antes mesmo de ele ser lançado comercialmente. Segundo a polícia, o vídeo fazia "apologia ao crime".