Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir: a lendária história de amor dos intelectuais segundo uma amiga do casal
Claudine Monteil conheceu o par nos anos 70, de quem se tornou amiga pessoal, e contou à BBC um pouco do cotidiano e das trocas afetivas e intelectuais deles.
A escritora Claudine Monteil é testemunha próxima de uma história de amor do século passado que move a imaginação das pessoas até hoje.
Trata-se da relação entre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, dois dos maiores intelectuais daquele tempo.
Fundadora de importantes movimentos feministas da França, Monteil conheceu o casal nos anos 1970, quando tinha 20 anos. Mais tarde, escreveu diversos livros sobre seus amigos.
Em entrevista ao programa Witness, da BBC, a escritora contou detalhes do cotidiano e das trocas intelectuais e afetivas deste par pouco convencional à época - além de nunca terem se casado, algo então escandaloso, eles tinham um relacionamento aberto, o que era ainda mais inesperado.
"Hoje em dia, tendemos a esquecer quão glamurosos e famosos eram, tal qual estrelas do cinema", diz Monteil.
Na França dos anos 1970, "um escritor era um astro": "Eram recebidos pelo mundo como líderes de Estado".
BBC - A senhora conheceu Sartre em um protesto em Paris e teve um episódio envolvendo histórias em quadrinhos. O que aconteceu?
Claudine Monteil - Foi extraordinário porque eu havia sonhado conhecer Sartre e ter uma reunião muito intelectual e séria com ele. Você sabe, coisas que você pensa quando é uma estudante de 20 anos, que vai conhecer um grande filósofo como ele.
Sartre me perguntou quais livros eu tinha comigo. Estava tão envergonhada de trazer aquelas leituras não intelectuais...Fiquei vermelha e quase chorei, mas tive que mostrar a ele.
Então, de repente, Sartre abre um enorme sorriso e diz: "Você gosta de quadrinhos? Eu também!". Começamos a falar sobre isso, o quanto gostávamos dessas histórias, e no final ele declarou: "Você é uma jovem estudante muito interessante".
BBC - Com base nessa conversa, ele se ofereceu para apresentá-la a Simone de Beauvoir, que era sua heroína. E a senhora foi encontrá-la acompanhada de uma delegação de mulheres que faziam campanha para legalizar o aborto na França.
Monteil - Fui à casa deles e éramos cerca de oito mulheres, todas pelo menos 10, 20 ou 30 anos mais velhas do que eu. Quando cheguei e sentei em frente a ela, estava esperando ouvi-la, mas ela me olhou e disse: "Qual é o seu ponto de vista e o que você sugere como uma estratégia para a campanha de legalização do aborto?"
Tive que responder logo e Hélène de Beauvoir, sua irmã, me disse depois: "Você fez a coisa certa respondendo. Caso não o fizesse, não existiria mais para ela (Simone de Beauvoir)".
BBC - Como eram Sartre e Beauvoir?
Monteil - Ao conhecer Sartre, a primeira coisa que chamava a atenção era o quanto ele era mais feio pessoalmente do que nas fotos. Ele não era um homem atraente, por assim dizer. Mas tinha a voz mais extraordinária e quente que já ouvi. Quando ele falava, te fazia sentir como se fosse a única pessoa que interessava no mundo.
Simone de Beauvoir me tratou com dignidade quando eu era jovem... Eu diria que ela era uma pessoa muito direta.
E, para mim, eles eram o melhor casal do mundo: estavam unidos pela maneira de ver o mundo e pela escrita.
"Quando a conheci, tive a sensação de ter o melhor relacionamento que poderia ter com alguém", disse-me Sartre.
Era um relacionamento completo que implicava uma igualdade total.
BBC - Ela se tornou sua amiga e a Sra a visitava uma ou duas vezes por semana. Com base nessa proximidade, a Sra diz ter percebido que era difícil para ela dividir Sartre com as muitas outras mulheres de sua vida.
Monteil - Ela aceitara o pacto segundo o qual eles compartilhavam o amor mais essencial de suas vidas, mas, ao mesmo tempo, tinham amantes.
Ela também teve amantes de que gostava muito, como o escritor americano Nelson Algren e o escritor francês Claude Lanzmann.
Mas, quando os conheci nos anos 1970, foi um choque porque Sartre tinha uma agenda de uma hora para essa mulher, uma hora para esta, e depois ele destinava refeições e noites para Simone de Beauvoir.
Esse não era meu ideal de relacionamento e pude ver que, na realidade, Simone de Beauvoir estava sofrendo.
BBC - Ele tentou te seduzir?
Monteil - Ele nunca tentou me seduzir, mas uma vez ele me convidou para almoçarmos sozinhos. Então, alguém próximo a mim recomendou que eu não fosse, porque todos pensariam que eu estaria tentando seduzi-lo.
Assim, cancelei o almoço e Sartre entendeu muito bem. E, desde então, Simone de Beauvoir sabia que eu nunca tentaria seduzir Sartre. Isso criou um laço muito especial entre nós.
BBC - O casal compartilhava a paixão pelas ideias e pela escrita, mas ela podia ser uma crítica muito difícil, certo?
Monteil - Quando Simone de Beauvoir lia um dos textos (de Sartre), era como uma professora rígida, mas ele adorava isso.
Sartre nunca publicou nada sem que Simone de Beauvoir lesse palavra por palavra. Uma vez, ele pediu que ela voltasse mais cedo dos Estados Unidos apenas para revisar um manuscrito.
Hélène de Beauvoir me contou que, certa tarde, Simone disse a Sartre: "Esse texto é muito pobre, você não pode publicá-lo". Ela rasgou os papéis. Ele estava acostumado com suas críticas, mas a essa altura estava perdendo a visão e escrever era muito difícil.
Ele retrucou: "Te odeio, castor" (como Sartre chamava-a, brincando com a semelhança entre o sobrenome dela e a palavra que remete ao animal em inglês, beaver).
Então, ela respondeu: "Sim, você me odeia hoje, mas amanhã de manhã você voltará ao seu manuscrito".
E tudo estava bem. Era amor.
BBC - Como eles eram juntos?
Monteil - Simone de Beauvoir era mais alta do que Sartre e colocava a mão no ombro dele o tempo todo, era um gesto muito terno. E ele sempre olhava para ela, embora não conseguisse enxergar muito bem no final. Às vezes, também terminavam as frases um do outro.
Sartre contou-me que, na primeira vez que falou com ela, ficou fascinado por sua beleza e inteligência.
"Sempre achei que era bonita", ele me disse, "mesmo quando a conheci... e estava usando um chapéu muito feio!"
"A coisa maravilhosa sobre Simone de Beauvoir - afirmou ele - é que ela tem a inteligência de um homem (...) e a sensibilidade de uma mulher".
BBC - Sartre morreu em 15 de abril de 1980, quando tinha 74 anos de idade. Como foi a perda para ela?
Monteil - Ele morreu logo depois que ela saiu do hospital. Isso partiu seu coração (de Beauvoir). Outra coisa que partiu o coração dela foi ter que organizar o funeral.
O governo francês ofereceu um cordão policial para acompanhar todo do trajeto do hospital ao cemitério, mas Simone de Beauvoir rejeitou tudo isso.
Ela disse: "Não, Sartre não queria reconhecimento oficial, só queria que as pessoas estivessem lá". E eu disse a ela: "Mas você não vai ter ninguém te protegendo e haverá milhares de pessoas".
E foi o que aconteceu: acho que o número oficial de comparecimento ao funeral foi de 50 mil pessoas.
Havia mais de 2 km de pessoas, ao longo de três avenidas (se dirigindo à homenagem).
Quando chegamos ao cemitério, não havia proteção ao redor do túmulo. Os jornalistas, especialmente os de televisão, começaram a me empurrar com as câmeras, buscando uma melhor imagem de Simone de Beauvoir.
Ela começou a perder a cor e depois desmaiou em casa. Ficou hospitalizada em estado de emergência por duas semanas.
Foi terrível. Chorava o tempo todo, mas o que salvou sua vida foi escrever: ela decidiu escrever a história dos últimos anos de Sartre.
Nesse mesmo livro, publicou 100 páginas de entrevistas com Sartre sobre assuntos que ele não pôde publicar. São discussões entre eles sobre a escrita, a vida e a noção de liberdade de Sartre, que são extremamente emocionantes e belas.
Sartre e Beauvoir se conheceram em Paris, no ano de 1929. Eram dois jovens e brilhantes estudantes de filosofia.
Durante seus anos juntos, Sartre escreveu sobre filosofia, criou peças de teatro, romances e tratados.
Ele também ganhou o Nobel de Literatura em 1964, mas o rejeitou porque "consistentemente rechaçou todas as honras oficiais", segundo diz o próprio site do prêmio.
De Beauvoir escreveu sobre ética, filosofia e o lugar das mulheres no mundo, obras que inspiraram uma geração pós-guerra dominada pela cena intelectual francesa.
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