Magia com pé na realidade: 'Wicked' adapta sucesso da Broadway à política brasileira
Remontagem do musical de sucesso da Broadway conta com mudanças no cenário, figurino e referências a política brasileira
Nas aulas de português aprendemos que fábulas são histórias curtas, que podem ser escritas em prosa ou verso, e nas quais os animais recebem características humanas. Geralmente, uma lição é aprendida no final.
Mas o conceito de "fábula" que é ensinado aqui na Terra é diferente daquele em Wicked, musical em cartaz no Teatro Santander, na cidade de São Paulo. A explosiva Elphaba (Myra Ruiz) questiona Fiyero (Tiago Barbosa) como seria viver em um mundo onde animais não falam, já que eles vivem no Mundo de Oz.
A peça em cartaz em São Paulo é uma remontagem de um sucesso da Broadway lançado em 2003, e expande não só a história fantástica do Mundo de Oz, mas também serve como veículo para atualizar as mensagens do texto original. Desta vez, o musical se propõe a explicar o que transformou Elphaba na Bruxa Má do Oeste, ou por que o povo ama Glinda (Fabi Bang, na montagem brasileira), Bruxa Boa do Sul.
Logo na primeira música, Glinda é questionada de onde vem a maldade, e responde com outra pergunta: "As pessoas nascem más? Ou será que a maldade é lançada sobre elas?".
Mesmo sendo uma boa fábula, a peça não se furta de trazer à cena temas espinhosos para os adultos. Elphaba e Glinda se conheceram na escola e se odiaram de cara, o que é um nítido exemplo da rivalidade feminina. Já Nessarose (Nayara Venancio), irmã mais nova de Elphaba, é uma garota cadeirante, além de o grande e poderoso Mágico de Oz (Marcelo Médici) ser um farsante e aproveitador.
Oz é uma fantástica alegoria ao nosso mundo.
"Para mim, tudo tem todo um peso maior. A pandemia, o governo que a gente viveu, e de toda uma onda mundial, que está acontecendo, de governantes que extrapolam para direita. Parece que o mundo perdeu a decência, que a gente normalizou a barbárie", avalia Myra Ruiz, que retornou ao papel principal da Bruxa Má, depois da montagem de 2016.
"Uma história como essa tem uma força ainda maior, porque a gente mostra os danos disso, os danos desses governantes, o perigo que é você ser conivente com qualquer tipo de discriminação", explica.
A interprete da Elphaba não é a única que defende esse ponto de vista. “Esse texto é atemporal e cai como uma luva para o universo em que a gente traz o lúdico, trabalhando com a realidade, com o contexto de vida do brasileiro”, afirma Fabi, que vive a contraparte rosa e positiva, a Bruxa Boa.
Mundo mágico, colorido e polêmico
Essa terra fantástica onde animais falam e lecionam, enquanto pessoas podem nascer verdes, foi criada pelo escritor L. Frank Baum, no primeiro de uma série de livros que começou a ser lançada em 1900. Mas o mundo conheceu a estrada de tijolos amarelos através do clássico O Mágico de Oz, filme lançado em 1939. No longa, a estrela Judy Garland deixa um Kansas sem vida e é transportada para um mundo mágico e colorido.
Mesmo destinado para crianças, a história da garota levada por um ciclone até uma terra fantástica, e vira uma heroína sem querer, já foi lida de diferentes maneiras. Em 1964, por exemplo, um educador americano afirmou que o texto original era uma sátira política ao movimento populista nos Estados Unidos.
O filme de 1939, gravado em plena ascensão do fascismo na Europa, criou novos personagens para dar corpo ao fato que de mágico o Mágico de Oz não tem nada. Ele não passa de um farsante que se aproveita de tecnologias da nossa terra para governar, através do medo, o inocente povo de Oz. Sim, isso foi um spoiler do final de um filme lançado há 84 anos, mas que parece atual.
Mesmo assim, Wicked salpicou ainda mais "tempero" de realidade à brasileira na história milenar. Em um momento, o Mágico canta uma música admitindo que engana a população de Oz com as mentiras que o povo gosta de ouvir, e questiona se é um líder fascista ou populista - com o sotaque semelhante ao do ex-presidente Jair Bolsonaro.
A peça também fala sobre se posicionar contra os valentões da vida real. E é nessa abordagem que Elphaba acaba tendo uma conexão forte com mulheres e com a população LGBTQIAP+.
"Nem todo mundo é a Elphaba, consegue se erguer contra as pessoas e desafiar a gravidade. Esse voo é uma metáfora para tantas coisas... Sobre encontrar a força interna para desafiar o que te incomoda. Também é um convite para os jovens que ainda não voaram, que ainda não desafiaram a gravidade. Assistir à peça e se inspirar com ela, ganhar a força e saber que são muito fortes. É muito legal de ser a porta-voz desse momento", afirma Myra.
Uma das produtoras da peça, Maria Pia Calixto, explica que essa versão é possível, pois o musical não é uma réplica da montagem original. Assim, algumas mudanças acontecem, mas a história e, principalmente, as músicas são mantidas.
As novidades mais marcantes estão nos cenários, que são mais dinâmicos, nos figurinos e no momento catártico da peça, quando Elphaba voa pela primeira vez. Mudanças que são muito bem-vindas e acrescentam a história.
Todos os atores brilham em seus papéis, mas é preciso destacar o trabalho da dupla de protagonistas, que defendem as personagens tecnicamente difíceis de executar, com a leveza de alguém que pode realmente sair voando por aí em uma bolha - ou em uma vassoura.