Nine Perfect Strangers é a vingança dos hippies
Série disponível na Amazon Prime Video retoma o sonho americano, via microdosagem de psicodélicos.
Estou assistindo a Nine Perfect Strangers, série sobre um spa terapêutico na Califórnia. Dizendo assim, parece besteira new age. Mas espere aí. A série reflete bem certo zeitgeist dos anos 2020:
Super-heróis anti-heróis. Gira em torno de uma líder carismática (Nicole Kidman), que se converte de capitalista selvagem para guru selvagem.
Militarização da sexualidade. Existe uma liberdade de identidades sexuais. Porém, é uma sexualidade usada como arma de manipulação entre personagens.
Frankensteins metodológicos. As terapias do spa são misturas de diversos métodos, como bioenergética, yoga e interpretações convenientes de xamanismo.
A redenção da redenção. Em vez da desconfiança fatalista de séries como Twin Peaks (“ah, essa natureza humana violenta e incorrigível”), vemos que os personagens estão sempre a um passo de revelarem suas naturezas bondosas. O impedimento aqui é, de novo, a repressão. Mas não exatamente a sexual.
Os elementos repressores são múltiplos e paralelos: vindos da sociedade de consumo, das tragédias familiares, das rotinas etc. É uma migração do sonho americano para o reino psicológico: se eu me esforçar no autoconhecimento, finalmente, serei feliz.
Substâncias liberadoras. Aqui, microdosagens de psicodélicos. Não por acaso, escondidas em vitaminas de frutas e vegetais. É que ainda acreditamos em saídas um tanto rápidas e externas: tome essa pílula e dê um passo além. Porém, desconfiamos da medicalização e despersonalização dessas substâncias. Queremos um quentinho.
Os hippies usavam metáforas naturais para nomear suas drogas (sol, lua). Os yuppies, nomes técnicos e siglas. Hoje, mantivemos a validação científica, mas preferimos substâncias “naturais” misturadas em poções vegetais. Ou nerdeamos a coisa toda. Por exemplo, MDMA, vira MD, que vira Michael Douglas.
Hippie gótico. Ok, eu quero espiar o terreno dos hippies, quero falar sobre spa. Mas preciso incutir na série algum elemento de mistério, pelo menos uma ameaça de morte. Só para garantir que a atenção não se dissipe para alguma rede social.
Marvelização dos diálogos. Como nos filmes da Marvel, os personagens falam por meio de piadas, com referências à história da cultura pop recente. Como se os roteiristas fossem todos discípulos de Nick Hornby.
Ainda estou no episódio 5 de 8 de Nine Perfect Strangers. Também não li o livro de Liane Moriarty, no qual a série foi baseada. Mas, até agora, a coisa toda me sugere que o cadáver dos hippies está bem longe de ser sepultado. Ou melhor: deve ter sido enterrado no Cemitério Maldito — só para marvelizar o final do texto.
(*) Eduf é cientista social, publica na internet desde 1996. Escreve, produz podcasts e desenvolve websites.