'Nomadland': como é a vida de milhares de pessoas que vivem e viajam em trailers nos EUA
O filme vencedor do Oscar, estrelado por Frances McDormand, reflete um fenômeno marcante: o crescente número de pessoas que optam pela vida nômade em busca de empregos temporários em todo o país.
"Não sou uma sem-teto. Não tenho casa, mas isso não é a mesma coisa."
É assim que Fern, uma ex-professora de uma pequena cidade do meio-oeste americano, reage ao encontrar um de seus ex-alunos em um supermercado.
A cena se passa no filme Nomadland, que foi o grande vencedor do Oscar 2021 neste domingo (25/4), com três prêmios.
Além de o longa ter sido eleito o melhor filme, a cineasta chinesa Chloé Zhao também fez história ao ser a primeira mulher de origem asiática na categoria de melhor direção. E a atriz americana Frances McDormand conquistou, por sua atuação em Nomadland, sua terceira estatueta.
McDormand interpreta com delicadeza e sobriedade uma mulher que, após ficar viúva e enfrentar a destruição econômica e social de sua cidade, se muda para um trailer com o qual embarca em uma jornada sem destino definido.
O filme é uma adaptação de Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century (Nomadland: Sobrevivendo aos EUA no século 21), um livro de 2017 da jornalista americana Jessica Bruder sobre o fenômeno das pessoas mais velhas que, no contexto da Grande Recessão de 2008, adotaram um estilo de vida nômade em busca de empregos sazonais em todo o país.
Junto com McDormand e o ator David Strathaim aparecem no filme - interpretando a si mesmos - Linda May, Charlene Swankie e Bob Wells, os três nômades que protagonizam o livro.
Em entrevista à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, Wells diz não estar surpreso com o sucesso do filme.
"A história em que se baseia é muito boa, McDormand é sensacional e eu estava muito confiante", diz este homem de 65 anos e de barba branca. Aos risos, ele brinca que "tolera" a repentina atenção da mídia.
"Tenho estado muito ocupado, mas sou grato pelo que estão fazendo. O filme é maravilhoso e acho que é bom para a minha comunidade."
Uma vida sobre rodas
A comunidade de "nômades" dos EUA é composta por pelo menos 1 milhão de pessoas que vivem em casas sobre quatro rodas em tempo integral, segundo dados da Associação da Indústria de Veículos Recreativos (conhecidos como RV na sigla em inglês e de todos os tipos de formas e tamanhos).
"Cerca de 25 anos atrás, decidi me mudar para um trailer porque me divorciei e não podia mais sustentar meu estilo de vida", diz Bob Wells, uma figura central na vida nômade moderna nos Estados Unidos e presidente da Homes On Wheels Alliance (Aliança das Casas Sobre Rodas).
"Um dos motivos pelos quais tentei tanto divulgar o conhecimento da vida nômade é que meu filho se suicidou e eu precisava de um motivo para viver, para acordar todas as manhãs".
"Sempre foi meu objetivo fazer com que as pessoas soubessem que elas têm opções, que existe uma outra maneira de viver, e me entreguei a esse propósito após a morte do meu filho", conta.
Como Wells em seus primeiros dias, muitas pessoas que entram nesta vida o fazem por necessidade.
Mas existe outro grupo, cada vez mais numeroso, que decide lançar-se nessa empreitada por apostar em sua própria liberdade.
Apostando na liberdade
É o caso de Amber Baldwin, uma americana de 49 anos que, há quatro, vendeu sua casa e quase todos os seus pertences em Seattle para morar em um trailer com o qual viajou grande parte do país.
"Já fazia algum tempo que vinha pensando em viajar de trailer, mas me envolvi com o trabalho e com o estilo de vida da 'América corporativa'", explica ela, falando da idílica Key West, no extremo sul da Flórida.
"De repente vi que não podia mais, estava em um emprego muito estressante, tinha problemas de saúde e disse a mim mesma que não poderia continuar".
"Sempre tive paixão por viagens na estrada e achei que seria bom levar minha casa comigo, acompanhada do meu cachorro. Comecei a procurar nos canais do YouTube e finalmente me decidi, comprei um trailer, vendi a casa e comecei a viajar, trabalhando remotamente".
"Seis meses depois decidi que queria mais liberdade. Saí da empresa onde trabalhava e abri minha própria empresa online, um canal no YouTube, em que, além de compartilhar minhas viagens, ofereço conselhos práticos sobre a vida nômade e até sobre finanças pessoais."
Baldwin relata sua jornada e publica uma variedade de cursos gratuitos em storychasing.com.
Desafio: Estacionar
Nos Estados Unidos, há uma grande quantidade de terrenos públicos nas quais os nômades podem estacionar seus RVs gratuitamente.
Eles são administrados por quatro órgãos: o Escritório de Gestão de Terras, o Serviço Nacional de Parques, o Serviço Federal de Pesca e Vida Silvestre e o Serviço Florestal dos EUA.
"Você pode morar com seu trailer em uma cidade, mas sempre corre o risco de alguém bater à sua porta e dizer que você tem que sair", explica Bob Wells.
"Ou você pode viver em terrenos públicos. Existem terrenos nos Estados Unidos onde você pode viver de graça, você só precisa se mudar a cada duas semanas. E isso não é ruim. Mudar a cada duas semanas não é um fardo."
A maioria dessas propriedades fica no centro e oeste do país, portanto, na Flórida e em outras áreas da costa leste, você deve estar disposto a pagar para passar a noite em um acampamento ou recorrer à criatividade.
"Existem estabelecimentos como (a rede de restaurantes) Cracker Barrel ou lojas do Walmart que permitem que você use o estacionamento", diz Amber Baldwin.
"Existem aplicativos como o campendium e o ioverlander que fornecem informações sobre os tipos de terreno, sejam públicos ou não. Se não consigo encontrar o que procuro, abro a visualização de satélite do Google Maps e busco esses locais".
"Às vezes, estaciono em áreas residenciais, mas gosto menos porque posso assustar os vizinhos. Não paro na frente de uma casa e saio muito cedo."
Nômades modernos
Não existe um único termo para definir esse estilo de vida.
Eles são "usuários de RV em tempo integral", "nômades digitais" (um conceito cada vez mais usado pelo surgimento do trabalho remoto que a pandemia trouxe) ou workampers (trocadilho entre trabalho e campistas).
Muitos deles têm mais de 60 anos, embora a pandemia tenha aumentado as vendas de trailers ou casas sobre rodas a adultos entre os 20 e os 35 anos.
Em sua jornada contínua, esses nômades modernos intercalam o tempo de lazer com empregos temporários, seja limpando acampamentos, ajudando na colheita, substituindo funcionários ou como equipe adicional nas campanhas de Natal de gigantes como Amazon ou JC Penney.
No caso da Amazon, cujo exemplo é retratado em Nomadland, a empresa organiza o programa CamperForce de setembro a dezembro, voltado especificamente para pessoas que moram em casas móveis. Como recompensa por seu trabalho, elas têm as despesas pagas no acampamento por três meses.
Camaradagem e solidariedade
Sem cair na idealização romântica das circunstâncias que levam seus protagonistas a uma vida sem endereço fixo, o filme dirigido pela cineasta Chloé Zhao oferece um retrato muito humano das relações que se formam nos acampamentos onde os nômades se encontram.
"Tendemos a ser introvertidos, gostamos de aposentadoria ou isolamento, mas também precisamos de companhia, comunidade, precisamos de pessoas para nos conectarmos", diz Bob Wells, esclarecendo que também existem nômades extrovertidos.
"Nesse estilo de vida, fazemos conexões mais profundas e rápidas. Tendemos a não ter amigos ou conexões superficiais. E acho que é predominantemente assim porque, quando nos encontramos, estamos nos mudando para outro lugar. Se eu te conheço, gosto de você e temos essa vida em comum, mas só vou te ver por alguns dias ou uma semana e depois vou embora... não temos tempo a perder. Nos conectamos um nível mais profundo por causa disso", explica.
Para Amber Baldwin, essa camaradagem foi uma agradável surpresa.
"Foi inesperado para mim ver o número de pessoas que você conhece e quão rápido você se torna amigo, especialmente se são nômades em tempo integral", diz ela.
"Existe uma espécie de conhecimento mútuo. Quem faz isso busca a liberdade, você constrói essa camaradagem porque tem esse denominador comum. Somos iguais em muitos aspectos".
"Vivemos de um lugar para o outro e às vezes precisamos de ajuda. São pessoas que estão muito dispostas a dar uma mão e não pedem nada em troca. É uma das melhores comunidades para se viver, nunca me senti assim protegido", enfatiza.
Os efeitos das crises
A crise financeira global de 2008 teve sua origem no colapso da bolha imobiliária nos Estados Unidos.
Agora, com a crise de saúde, econômica e social provocada pela pandemia covid-19, teme-se mais pessoas acabem por perder suas casas.
Wells compartilha desse temor, embora ressalte que com o dinheiro que o governo Joe Biden injetou na economia e com a moratória dos despejos, o verdadeiro impacto ainda não está sendo sentido.
"A ajuda do governo mantém as pessoas à tona, mas os alicerces são ruins, há rachaduras", diz ele.
"Em 2008, quando ocorreu a recessão global, os alicerces foram quebrados e desde então os ricos ficaram ricos e os pobres ficaram mais pobres e isso vai piorar agora".
"Em 5 ou 10 anos, a menos que mudemos nosso jeito de ser ou nosso curso, as coisas vão ficar muito ruins. Os ricos serão incompreensivelmente ricos e os pobres serão incrivelmente pobres", lamenta.
Os comentários de Wells, em parte refletidos em Nomadland, tornaram-se uma fonte de inspiração para aqueles que desejam abraçar o estilo de vida nômade.
"Não há dúvida de que você pode viver sem tanta dependência do sistema", diz ele.
"Há muito trabalho lá fora, embora eles não paguem bem. O segredo é que, se você reduzir suas despesas ao mínimo absoluto, poderá sobreviver com uma renda mínima. Esse é o nosso objetivo."
Não se trata apenas de palavras ao vento. Wells luta para colocar em prática o que pensa e defende. A organização que preside, da qual Suanne Carlson é diretora, representa um importante suporte para a comunidade nômade.
"Temos dois focos: encorajar e construir uma comunidade que aceite os novos nômades e, por outro lado, ajudar aqueles que não têm condições de morar na estrada a ter acesso a uma casa móvel", explica Carlson à BBC News Mundo.
A "tirania" do sistema
No filme, a protagonista encontra nômades que expõem suas situações pessoais, algumas dramáticas, outras circunstanciais. A maioria, marcada pela rejeição de um sistema que lhes deu um pontapé.
"Existem dois tipos de tirania: a tirania do dólar e a tirania política. Por alguma razão, no mundo moderno temos medo da tirania política, mas somos escravos do dólar", denuncia Wells.
"A principal dificuldade é quebrar a tirania do dólar e você faz isso morando em um veículo e sem ter que pagar aluguel. Depois de tirar o locador da equação, você pode viver muito melhor".
"Imagine onde você estaria agora se não precisasse pagar aluguel ou no primeiro dia de cada mês não precisasse pagar uma hipoteca, como seria sua vida. Substancialmente melhor, eu diria."
Para Amber Baldwin, a precariedade financeira não foi a motivação que a fez se tornar uma nômade, mas ela entende a mensagem de Wells.
"Nunca me senti assim, como um hamster na rodinha. O 'sonho americano' é comprar uma casa, ter um bom emprego e ter filhos. Significa também contrair dívidas. Não acredito nesse sonho. Digo que o meu é o 'sonho americano 2.0'. E, para mim, ele significa liberdade".
"Sinto, e não sou a única, que cada dia é uma bênção, gosto tanto que não consigo imaginar fazendo outra coisa."
Esse texto foi inicialmente publicado em 05/04/2021 e atualizado em 26/04/2021.