O dia em que um ex-Beatle tocou pela primeira vez no Brasil
Beatlemaníacos contam detalhes dos dois shows que Paul McCartney fez no Maracanã em abril de 1990
No dia 27 de setembro de 1989, o empresário carioca Luiz Oscar Niemeyer, de 33 anos, recebeu uma proposta irrecusável do agente britânico Gerald "Gerry" Stickells: encarar 17 horas de voo até a Suécia para conferir de perto a The Paul McCartney World Tour, a primeira turnê mundial que o ex-Beatle fazia desde 1976, quando ainda era o líder dos Wings.
"No dia seguinte, peguei um avião para Estocolmo e assisti, pela primeira vez, a um show do Paul. Voltei para o Brasil com o acordo fechado", recorda Niemeyer, que conhecia Stickells, empresário de pesos-pesados do rock, como Jimi Hendrix, Queen e Elton John, de outros festivais, como o Rock in Rio e o Hollywood Rock.
A turnê de Flowers in the Dirt (1989), o oitavo álbum de estúdio da carreira de Paul McCartney, começou no dia 26 de setembro de 1989, em Londres, na Inglaterra, e terminou no dia 29 de julho de 1990, em Chicago, nos EUA.
Ao todo, Paul e sua banda - os guitarristas Hamish Stuart e Robbie McIntosh, o tecladista Paul "Wix" Wickens e o baterista Chris Whitten - percorreram 13 países e fizeram 103 shows, dois deles no Rio de Janeiro.
"A ligação de Paul com o Brasil já tinha sido reforçada com uma canção do álbum dedicada ao líder sindicalista Chico Mendes", observa o jornalista Roberto Muggiati, autor do livro A Revolução dos Beatles (1997), referindo-se à músicaHow Many People. Curiosamente, a canção não foi tocada no Maracanã, nem incluída no set list da turnê.
Pela primeira vez, um dos quatro rapazes de Liverpool tocaria no Brasil. Não seria exatamente a primeira vez que um ex-Beatle visitaria o país. Fã de Fórmula 1, George Harrison, então com 36 anos, assistira ao Grande Prêmio de 1979, no autódromo de Interlagos, em São Paulo, a convite do piloto Émerson Fittipaldi. Mas não passou disso.
Show que é bom, diriam os fãs, o autor de Something, Here Comes the Sun e While My Guitar Gently Weeps não fez.
"O Paul é um 'workaholic'. Ele continua viajando, gravando e fazendo shows, tanto quanto na época dos Beatles. Por isso, acho que, hoje, é o beatle que faz mais sucesso", declarou Harrison, em entrevista ao Fantástico, da TV Globo.
'Eu me senti o próprio Pelé em campo'
Convencer Paul McCartney a tocar no Rio não foi difícil. Se Harrison era fanático por automobilismo, Paul era apaixonado por futebol. Bastou um argumento infalível: os shows seriam realizados no Maracanã, o maior estádio do mundo.
Provável torcedor do Everton, time da primeira divisão do campeonato inglês e um dos clubes de Liverpool, Paul não titubeou.
"Eu me senti o próprio Pelé em campo", comparou o cantor, em entrevista à edição do dia 3 de outubro de 1999 do jornal O Globo.
Para tocar no Brasil, Paul McCartney teria feito apenas duas exigências: "trazer todo o aparato de produção, que incluía som, luz e vídeos" e "não ter seu nome associado a marcas de cigarro, carne ou bebida alcoólica", revela Niemeyer.
Vegetarianos, Paul e Linda pediram, entre outros pratos, canelone com recheio de espinafre e nozes de pinho, pão de alho com salada de espinafre e abacate, lasanha recheada com queijo de soja e cenoura, curry de legumes com tofu e molho de amendoim, arroz de amêndoas com passas e espaguete ao molho de legumes e lentilhas.
O anúncio da vinda de Paul McCartney ao Rio deixou uma legião de fãs enlouquecidos. Muitos se viram obrigados a faltar a compromissos importantes. O produtor musical Marcelo Fróes, de 53 anos, foi um deles.
"Meu irmão, Fábio, ia se casar na quinta. Quando os shows foram anunciados, avisei que não iria. Ninguém se surpreendeu", conta.
Na noite de quarta-feira, depois do anúncio de que o show de quinta tinha sido adiado por causa do mau tempo, Fróes resolveu dar um pulinho no Rio Palace. Não havia uma vivalma na portaria, ele lembra. Tanto que fez menção de entrar e ninguém o impediu. Já no saguão, sentiu o coração disparar ao ver os músicos da banda.
"Não demorou muito e vi, sentado numa poltrona do bar do lobby, o próprio Paul. Fiquei muito nervoso. Não havia levado câmera, nem disco para autografar. Então, ficaram na memória a emoção e um aperto de mão. Trinta anos depois, nem lembro o que lhe falei", recorda o dono do Selo Discobertas e da Sonora Editora.
Em tempo: com o adiamento do show do dia 19, Marcelo pode, sem dor na consciência, ir ao casamento do irmão. Menos mal.
O escritor Ricardo Pugialli, de 59 anos, não tinha casamento ou aniversário marcado. Em compensação, sua filha, Camila, tinha apenas quatro meses. Se ele chegou a cogitar a hipótese de faltar ao show para ficar em casa? De jeito nenhum! Foi aos dois shows, com o coração apertado.
"Não perderia a chance de ver o Paul por nada neste mundo. Antes de o show começar, a galera nas arquibancadas começou a fazer a 'ola'. O pessoal no gramado viu e fez também. Os técnicos do Paul, que estavam na mesa de PA, começaram a tirar fotos. Quando o show começou, toda vez que o Paul tocava uma canção dos Beatles, o Maracanã vinha abaixo. Foi emocionante do começo ao fim", recorda o autor de Os Anos da Beatlemania (1992), em parceria com Marcelo Fróes; e The Beatles — 1970-1980 (2019), entre outros.
O maior público de um show pago de um único artista
Paul McCartney chegou ao Rio às 6h15 do dia 18 de abril, no voo 811 da Varig, vindo de Miami, nos EUA.
"Em todas as viagens posteriores, ele veio em seu jato particular", conta Fróes.
Paul veio acompanhado da mulher, Linda, tecladista de sua banda; de dois dos quatro filhos do casal, Stella e James, de 19 e 13 anos, e de uma trupe de 50 pessoas, entre músicos e técnicos. Do Galeão, ele e a família seguiram, de helicóptero, para o Rio Palace, em Copacabana, o mesmo hotel que, 10 anos antes, hospedara Frank Sinatra. Naquele mesma tarde, um Boeing 747 pousou na cidade, com 150 toneladas de luz e som.
Paul faria um show na quinta-feira, dia 19, e outro no sábado, dia 21. Mas o primeiro show teve de ser adiado para sexta-feira, dia 20, por causa do temporal que impediu a montagem dos sistemas de luz e som.
"Tivemos uma semana ininterrupta de chuva", relembra Niemeyer. "Paul teria que viajar no domingo, dia 22. Felizmente, conseguimos fazer o show na sexta, ainda com chuva. No sábado, São Pedro ajudou e foi uma noite histórica".
Tão histórica que entrou para o Guinness, o livro dos recordes, como o show pago de um único artista que registrou o maior público até então: naquela noite, 184.368 espectadores assistiram ao Paul in Rio, no Maracanã. Por ser o primeiro show de um ex-Beatle não só no Brasil, mas em toda a América do Sul, vieram fãs de outros países, como Chile, Argentina e Uruguai, entre outros.
Na tarde do dia 20, Paul concedeu uma coletiva de imprensa, às 18h. Chegou escoltado por três seguranças ao salão do Parque Aquático Júlio Delamare, no Maracanã. Durante o bate-papo, explicou por que voltara a tocar o contrabaixo Hoffner, contou ter passado três horas velejando debaixo de chuva na Baía de Guanabara e disse que considerou um erro não ter arrematado, em leilão, o catálogo das canções dos Beatles.
No dia 10 de agosto de 1985, quem desembolsou US$ 47,5 milhões (o equivalente hoje a R$ 247,9 milhões) foi seu parceiro nas músicas Say Say Say, The Girl is Mine e The Man.
"Volta e meia, o nome do Michael Jackson vinha à tona e era um assunto que o deixava bastante aborrecido", relata a antropóloga May Waddington que, durante a estada carioca do ex-Beatle, trabalhou como sua intérprete.
"Paul era gentil, educado, mas muito perfeccionista. Queria fazer o melhor show possível e, por essa razão, prestava atenção a tudo o que sua equipe estava fazendo".
'Yesterday, all my troubles seemed so far away...'
Ao término da entrevista, todos foram embora. Todos, menos Marco Antônio Mallagoli, de 68 anos. O presidente do fã-clube Revolution já tinha combinado com o empresário do cantor que gostaria de conhecê-lo pessoalmente. Dali a pouco, Mallagoli entrou no camarim de Paul.
Além de presenteá-lo com um contrabaixo da marca Dolphin, tirou fotos e, esbanjando corujice, falou dos filhos: Janaína, de quatro anos, que cantava Yesterday como ninguém, e João Paulo, de dois, que ganhou esse nome graças à dupla Lennon & McCartney.
Na hora da despedida, Paul pediu a Mallagoli que voltasse no dia seguinte e, se possível, levasse os filhos. No sábado, Mallagoli quase caiu para trás ao ouvir Paul entoar os primeiros versos de Yesterday para Janaína.
"Emocionante? Fantástico? Maravilhoso? Não tenho palavras para descrever o que senti ao ver meu ídolo brincando com meus filhos. Foi uma emoção sem igual", afirma.
Naquela noite, Paul realizou o primeiro de seus dois shows no Maracanã para um público estimado de 60 mil pessoas. A Polícia Militar montou um esquema de segurança com 1,3 mil homens. Além de cambistas e penetras, a PM deteve dois homens armados com pistolas automáticas.
"Nos arredores do Maracanã, havia uma quantidade enorme de produtos à venda por camelôs e ambulantes: fotos, camisas, bonés. Lá pelas tantas, passou um gaiato, gritando: 'Olha o biscoito do Paul!'. Biscoito do Paul? Que história é essa?", quis saber.
"É biscoito de 'Paulvilho', respondeu o sujeito", diverte-se o jornalista Leandro Souto Maior, de 47 anos, dono da Casa Beatles, um misto de bar e museu do quarteto de Liverpool em Visconde de Mauá, no município de Resende, a 164 quilômetros da capital.
A montagem do palco, de 600 metros quadrados e 12 metros de altura, mobilizou 400 homens, entre técnicos e operários. O gramado foi protegido por placas de madeira.
"Temiam que o espetáculo estragasse o futebol de seus craques. Não deve ter atrapalhado muito. O Brasil foi campeão do mundo quatro anos depois", brincou o cantor, em entrevista ao jornal O Globo, de 22 de maio de 2011.
Antes do início do show, um vídeo dirigido pelo cineasta Richard Lester, o mesmo de A Hard Day's Night (1964) e Help! (1965), compilou diversas fases da carreira do cantor.
"O momento mais marcante da apresentação foi a abertura. Eram três telões, de altíssima definição, contando a história da banda, desde o auge da Beatlemania até a carreira solo do Paul. Foi impactante", aponta Leandro Souto Maior.
Das 30 canções do set list, 18 eram dos Beatles
Ao longo de duas horas e meia, Paul e sua banda tocaram 30 canções. Havia músicas de todas as fases, desde os clássicos dos Beatles, como Yesterday, Let it Be e Hey Jude, até canções do mais recente álbum, como My Brave Face, Figure of Eight e We Got Married, passando por "hits" dos Wings, como Jet, Band on the Run e Live and Let Die.
Durante as apresentações, Paul dedicou The Fool on The Hill a John, George e Ringo, e My Love à mulher, fotógrafa e tecladista, Linda: "Minha gatinha linda!", arriscou, ao microfone.
Roqueiros de diferentes gerações, como Erasmo Carlos, Rita Lee e Evandro Mesquita, assistiram aos shows.
"O Paul não precisava mais fazer shows. Faz porque gosta. Ainda hoje, o cara faz shows de quase três horas, com uma pujança invejável", elogia o baterista João Barone, do grupo Os Paralamas do Sucesso, que cresceu ouvindo os LPs dos Beatles que os irmãos compravam.
Para o cantor Léo Jaime, o ponto alto da apresentação foi a canção I Saw Her Standing There, que abre o primeiro álbum dos Beatles, Please Please Me (1963).
"Nunca foi uma das minhas canções prediletas, mas quando ouvi ali, tocada ao vivo, senti uma energia mágica, que transcende melodia e letra, e contagia a todos. Foi quase uma epifania, difícil de explicar. Coisas do rock", arrisca o roqueiro.
Em quase 20 anos, oito turnês e 27 shows no Brasil
Entre um show e outro, Paul e a família ficaram hospedados na suíte presidencial do Rio Palace. Em uma das vezes em que apareceu na janela, o cantor vestia a camisa 10 da seleção brasileira. Segundo seu assessor de imprensa, Jeff Baker, Paul trouxera o uniforme de casa, na bagagem. Os integrantes da banda até que tentaram jogar uma pelada nas areias de Copacabana, mas a chuva, teimosa, não deixou.
No domingo, por volta das 18h30, Paul e sua trupe seguiram rumo ao Galeão. Desde então, voltaram oito vezes ao Brasil — a última delas em 2019, com a turnê Freshen Up. Ao todo, foram 27 shows em 11 Estados e no DF.
"Já assisti a mais de 130 shows do Paul e, se pudesse, assistiria a mais uns 300. Um é sempre melhor que o outro e o último é sempre o mais emocionante de todos. O mais curioso é que eu sempre prometo a mim mesmo que, dessa vez, não vou chorar e, logo aos primeiros acordes, já estou me debulhando em lágrimas", emociona-se Mallagoli.