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Por que Albânia quer criar microestado menor do que o Vaticano em sua capital

O primeiro-ministro albanês, Edi Rama, diz que a sua proposta busca 'moderação e tolerância', mas há quem considere que o projeto é uma forma de desviar a atenção de problemas como a corrupção.

13 out 2024 - 12h13
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Uma parte da capital da Albânia, Tirana, passará a ser uma espécie de Vaticano islâmico, segundo o anúncio do primeiro-ministro albanês, Edi Rama
Uma parte da capital da Albânia, Tirana, passará a ser uma espécie de Vaticano islâmico, segundo o anúncio do primeiro-ministro albanês, Edi Rama
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O número de países no mundo está prestes a aumentar.

Se tudo correr conforme o anunciado, a Europa verá o nascimento de um novo Estado, encravado em outro já existente: a República da Albânia, na região dos Bálcãs, no sudeste do Velho Continente.

O nascimento da nova nação será diferente dos ocorridos nos últimos anos, em diversas partes do mundo. Não será resultado de conflito político, religioso, étnico ou militar.

Quem está promovendo a criação do novo Estado é o próprio governante do país que sofrerá a cisão: o primeiro-ministro albanês, Edi Rama.

Durante sua intervenção na 79ª Assembleia Geral das Nações Unidas, no fim de setembro, o mandatário surpreendeu ao declarar que está disposto a ceder parte do território da Albânia para um grupo muçulmano minoritário. O propósito é criar um Estado que seja "um centro de moderação, tolerância e coexistência pacífica".

A oposição conservadora e os analistas criticaram o anúncio do governante. Eles consideram que se trata de uma cortina de fumaça para tentar distrair a atenção dos problemas que afetam a Albânia, como a corrupção e o despovoamento causado pela emigração em massa.

O primeiro-ministro da Albânia, Edi Rama, surpreendeu com o anúncio de sua intenção de entregar parte do território do país para uma minoria muçulmana
O primeiro-ministro da Albânia, Edi Rama, surpreendeu com o anúncio de sua intenção de entregar parte do território do país para uma minoria muçulmana
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O menor dos menores

O "Estado Soberano da Ordem Bektashi", como é chamado no momento o que será o novo país, ocupará cerca de 11 hectares a leste da capital albanesa, Tirana, segundo Rama.

Caso sua fundação seja concretizada, o território vai retirar do Vaticano o título de menor Estado do planeta. O quartel-general da Igreja Católica e local de residência dos papas tem uma superfície de apenas 44 hectares dentro de Roma, na Itália.

O novo país irá abrigar a sede política dos muçulmanos bektashis. Eles formam a quarta maior comunidade religiosa da Albânia, atrás dos muçulmanos sunitas, dos cristãos ortodoxos e dos católicos.

Apenas os membros do clero e os funcionários da administração estatal poderão se tornar cidadãos do novo Estado, que não terá forças de segurança nem tribunais, segundo as informações disponíveis até o momento.

E, embora o primeiro-ministro albanês não tenha detalhado prazos nem datas concretas de fundação da micronação, ela aparentemente será uma teocracia, como o Vaticano. O país será dirigido pelos líderes dessa comunidade muçulmana, ligada ao sufismo.

Mas o que se antevê é que a criação do novo país será um processo disputado.

A proposta precisa ser aprovada pelo Parlamento albanês, com maioria qualificada de 94 dos seus 140 deputados. No entanto, o Partido Socialista de Rama detém apenas 75 cadeiras e a oposição conservadora já se manifestou, reprovando a ideia.

O novo microestado seria menor que o Vaticano, que tem apenas 44 hectares de área
O novo microestado seria menor que o Vaticano, que tem apenas 44 hectares de área
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Queridos amigos bektashis, tenham cuidado", afirmou o ex-primeiro-ministro Sali Berisha, líder do Partido Democrático, de oposição. "Edi Rama está apenas usando vocês covardemente para distrair a opinião pública das suas relações com o crime e para ocultar o despovoamento da Albânia."

"A iniciativa é inconstitucional, porque concede soberania territorial do país e representa uma ameaça direta à sociedade secular", afirmou à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) o ex-deputado albanês Romeo Gurakuqi, professor da London School of Economics.

Do lado oposto ao califado

Rama garantiu que sua surpreendente proposta pretende promover não apenas a convivência inter-religiosa, mas também impulsionar uma forma mais tolerante do islamismo. Ele também declarou que a medida está em sintonia com a história da Albânia.

"Somos uma nação pequena, mas oferecemos ao mundo bons exemplos de defesa da humanidade", declarou o mandatário. Ele recorda que, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o país dos Bálcãs se tornou o único na Europa a ver aumentar sua população judaica.

"A comunidade judaica da Albânia foi multiplicada por 20 durante o Holocausto, pois as famílias muçulmanas e cristãs protegeram os judeus dos nazistas", disse.

Rama relembrou que esta solidariedade se repetiu mais recentemente, durante a queda do Afeganistão nas mãos do Talebã. "Abrigamos vários milhares de afegãos que, de outra forma, teriam terminado no nono círculo do inferno - mortos, aprisionados ou cegos para sempre", disse.

O novo miniestado ficará no ponto oposto em relação aos califados impostos por grupos islâmicos radicais, como os talebãs e o Estado Islâmico, no Afeganistão e em partes da Síria e do Iraque, além de regimes autoritários vigentes em países como o Irã e na maioria das nações do Golfo Pérsico, segundo disseram as autoridades albanesas e os líderes bektashis.

Autoridades albanesas e líderes bektashis garantem que o novo país será tolerante e aberto a outras religiões
Autoridades albanesas e líderes bektashis garantem que o novo país será tolerante e aberto a outras religiões
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O futuro país muçulmano não proibirá a venda e o consumo de álcool, segundo as informações divulgadas. Também não haverá segregação de gênero, nem códigos de vestimenta. Ou seja, o hijab (o véu islâmico) e a burca não serão de uso obrigatório para as mulheres.

"Deus não proíbe nada e, por isso, nos deu mentes", declarou em entrevista recente ao jornal The New York Times o clérigo Edmond Brahimaj, conhecido pelos seus seguidores como Baba Mondi, o líder dos bektashis albaneses.

"Todas as decisões serão tomadas com amor e bondade", disse o religioso de 65 anos em declarações posteriores. Ele foi membro do exército albanês durante o regime comunista no país.

Quem são os bektashis?

Segundo o anúncio de Rama, o novo Estado irá abrigar esta ordem muçulmana, que surgiu no século 13 na Anatólia (Turquia). Os bektashis respeitam o grande imã Ali, genro de Maomé.

"É um caminho místico islâmico que busca a perfeição do homem, conduzindo-o a Deus", segundo se define o próprio grupo, na sua página web.

"São a grande ordem sufi etnicamente turca", disse à BBC News Mundo o professor de Estudos Árabes e Islâmicos Ignacio Gutiérrez de Terán, da Universidade Autônoma de Madri, na Espanha.

"Como outros grupos sufis, eles acreditam que a mensagem divina não foi bem compreendida e partem da ideia de que se abster de beber álcool, jejuar ou peregrinar a Meca não faz com que uma pessoa seja um seguidor melhor."

"Pelo contrário, [os bektashis] acreditam que estas normas são grilhões que obrigam as pessoas a fazer uma série de práticas e rituais mecânicos que desvirtuam a verdadeira mensagem religiosa, que é, antes de tudo, espiritual", diz o professor.

Esta postura mais relaxada e permissiva também explica por que eles são mais tolerantes e dispostos a conviver com outras crenças. E esta situação os colocou na mira de correntes majoritárias do islamismo ao longo dos séculos.

"Os xiitas e os sunitas os rejeitam", segundo Gutiérrez de Terán, "dizendo que eles se desviaram muito da verdadeira mensagem do Alcorão."

Para suas celebrações e rituais, os bektashis usam a música e a dança. E suas mesquitas não têm minaretes (torres).

Para o líder dos bektashis albaneses, Baba Mondi, 'Deus não proíbe nada'
Para o líder dos bektashis albaneses, Baba Mondi, 'Deus não proíbe nada'
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Mas quando e como os bektashis acabaram nos Bálcãs?

No final do século 19 e, principalmente, depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os membros do grupo foram forçados a se mudar para outras regiões do antigo Império Otomano, depois que as autoridades da nova república turca proibiram as atividades das diferentes expressões religiosas e retiraram o apoio oferecido a elas pelo Estado.

"A perseguição que eles sofreram ajudou a desenvolver o nacionalismo albanês", explica o historiador albanês Artan Hoax, professor da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos.

Segundo o censo de 2023, cerca de 50% dos 2,4 milhões de habitantes da Albânia são muçulmanos. A maioria dos muçulmanos albaneses são sunitas e cerca de 10% pertencem à comunidade bektashi. O restante da população é composto principalmente por católicos romanos e cristãos ortodoxos.

A política secular do fundador da Turquia moderna, Kemal Ataturk (1881-1938), forçou os bektashis a se transferir para os Bálcãs
A política secular do fundador da Turquia moderna, Kemal Ataturk (1881-1938), forçou os bektashis a se transferir para os Bálcãs
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Por que agora?

Apesar de Rama ter dito que sua proposta promove a convivência entre diferentes religiões, há quem acredite que existam outros motivos por trás da ideia.

"Acredito que esta deve ser considerada uma tentativa de atrair o eleitorado daquela comunidade por parte de Rama", explica Hoax. "No próximo ano, haverá eleições na Albânia e a popularidade de Rama vem caindo, devido aos escândalos de corrupção, à emigração e à fuga de cérebros, que atingiram níveis alarmantes."

O ex-deputado Romeo Gurakuqi também se pronunciou em termos similares. Ele afirmou que "o primeiro-ministro tem a tendência de perseguir causas estranhas para desviar a atenção do público em relação aos problemas que realmente importam para a sociedade".

Gurakuqi justificou suas observações com o fato de que, até agora, a minoria bektashi não havia reivindicado ter um Estado próprio.

O professor de Antropologia Social Dimitris Dalakoglou, da Universidade Livre de Amsterdã, na Holanda, afirmou que a proposta aparentemente pretende facilitar a incorporação da Albânia à União Europeia (UE).

"A Albânia poderia ser o primeiro país com maioria de origem muçulmana na UE", disse o professor. "E, ao promover o bektashismo, Rama toma uma decisão estratégica: fortalece uma ordem muçulmana independente de influências externas, que antagoniza com o sunismo e o xiismo."

A Albânia solicitou sua entrada na UE em 2009 e é considerada candidata oficial para ingressar no bloco europeu desde 2014.

Especialistas acreditam que a decisão de Rama representa um risco para a volátil região dos Bálcãs. Mas eles descartam que a medida irá gerar uma situação parecida com a ocorrida no final do século 20
Especialistas acreditam que a decisão de Rama representa um risco para a volátil região dos Bálcãs. Mas eles descartam que a medida irá gerar uma situação parecida com a ocorrida no final do século 20
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Brincando com fogo

Os especialistas consultados pela BBC News Mundo consideram perigosa a jogada do mandatário albanês.

"Esta concessão de poder aos bektashis irá certamente inquietar os líderes sunitas albaneses, que verão seu poder e suas conexões internacionais serem ameaçados", destacou Dimitris Dalakoglou.

Romeo Gurakuqi disse que "fortalecer uma seita religiosa dentro de uma sociedade multicultural não incentiva a tolerância, nem a coexistência, mas sim privilegia uma comunidade em relação às demais".

No entanto, os especialistas descartam que a eventual criação do miniestado muçulmano possa novamente detonar o barril de pólvora nos Bálcãs.

No final do século 20 e início do século 21, a região presenciou diversas guerras, na região da antiga Iugoslávia.

Os bektashis praticam uma forma de islamismo considerado muito mais liberal do que outras correntes muçulmanas
Os bektashis praticam uma forma de islamismo considerado muito mais liberal do que outras correntes muçulmanas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Ao mesmo tempo, alguns especialistas chegaram a prever que a materialização da proposta será simbólica e não trará consequências reais para o restante do mundo muçulmano.

"Acredito que este seja um caso isolado", afirmou Ignacio Gutiérrez de Terán. "Não acredito que os demais muçulmanos levem a sério um Estado muçulmano onde as pessoas poderão beber álcool em frente a uma mesquita e as mulheres poderão mostrar seus cabelos."

O especialista espanhol afirmou que, para o restante dos muçulmanos, os bektashis "não são relevantes".

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