Por que 'Emilia Pérez', com 13 indicações ao Oscar 2025, coleciona polêmicas e prêmios
O musical do diretor francês Jacques Audiard é um dos favoritos para os grandes prêmios do Oscar. Mas sua representação do México está gerando críticas.
Raramente um filme é tão bem recebido pela crítica e pelos eleitores das premiações, mas tão controverso entre seus detratores.
Emilia Pérez, do diretor e roteirista francês Jacques Audiard, ganhou em maio o prêmio do júri do Festival de Cannes, na França, e um prêmio conjunto para suas quatro principais atrizes.
Mais recentemente, o musical - falado em espanhol e ambientado no México, mas filmado principalmente na França - levou quatro Globos de Ouro, cinco European Film Awards (a premiação da Academia do Cinema Europeu) e ainda foi indicado para 11 prêmios da Academia Britânica de Cinema e Televisão (Bafta).
E agora é um dos favoritos para o Oscar deste ano, em várias categorias, com 13 indicações ao prêmio, incluindo melhor filme, melhor atriz e melhor filme internacional, categorias em que concorre com o brasileiro Ainda Estou Aqui.
Emilia Pérez teve o maior número de indicações ao prêmio deste ano e quebrou o recorde de indicações para um filme não falado em inglês. O longa concorre ainda em categorias como melhor direção, melhor edição, melhor fotografia, melhor roteiro adaptado e melhor atriz coadjuvante.
O filme mescla vários gêneros para contar a história de um senhor das drogas mexicano. Ele faz a transição para se tornar mulher e busca restaurar a justiça pelos "desaparecidos" do país — pessoas mortas e ausentes, vítimas da violência relacionada aos crimes e às drogas.
Emilia Pérez também fez história com a indicação de Karla Sofía Gascón para o prêmio de melhor atriz. Ela é a primeira mulher trans indicada nesta categoria.
De um lado, a caracterização da protagonista transgênero do filme gerou controvérsias. A organização LGBTQIA+ americana Glaad a qualificou de "retrógrada", mas este não é o maior motivo de discussões sobre o filme no momento.
A principal polêmica envolvendo Emilia Pérez é sua representação do México, que sofreu críticas cada vez mais fortes ao longo da temporada de premiações.
Antes mesmo da estreia do filme no país, em 23 de janeiro, críticos e figuras da indústria cinematográfica mexicana já se queixavam da participação inexpressiva de mexicanos na equipe e no seu elenco principal — e da própria representação do país em si, sem falar no seu tema assustador.
Críticas viralizaram
Após o sucesso de Emilia Pérez no Globo de Ouro, surgiu uma enxurrada de críticas entre os usuários mexicanos do X, antigo Twitter.
Em uma postagem que atingiu 2,6 milhões de visualizações, o roteirista mexicano Héctor Guillén marcou a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pelo Oscar, no dia seguinte ao Globo de Ouro.
Ele publicou um pôster que dizia: "O México odeia Emilia Pérez. Escárnio racista e eurocentrista. Quase 500 mil mortos e a França decide fazer um musical."
"Tentei copiar a forma hollywoodiana de promover filmes [para conseguir as premiações], sabe, quando eles basicamente dizem 'filme incrível'", contou Guillén à BBC. "Eu quis fazer a contrapartida, quis divulgar outra visão do que é Emilia Pérez para muitos de nós, mexicanos."
Guillén chama Audiard de "grande cineasta", mas afirma que a decisão de fazer a maioria absoluta do filme em estúdios perto de Paris, na França, e a forma em que a história aborda um doloroso tema nacional do México contrariaram muitas pessoas na sua rede social.
"Existe uma guerra das drogas, com cerca de 500 mil mortos [desde 2006] e 100 mil desaparecidos no país", prossegue ele. Os números mencionados por Guillén são estimativas recentes do governo mexicano.
"Ainda estamos imersos na violência em algumas regiões. Você está falando de um dos temas mais difíceis do país, mas não é apenas um filme qualquer, é uma ópera. É um musical."
"Por isso, para nós e para muitos ativistas, é como se você estivesse brincando com uma das maiores guerras do país desde a Revolução Mexicana [1910-1920]", prossegue Guillén.
"Parte do roteiro trata das mães que procuram os [filhos] desaparecidos, um dos grupos mais vulneráveis do México. E não houve nenhuma palavra para as vítimas, nos quatro discursos de aceitação do Globo de Ouro."
Guillén também questiona por que não se tomou a decisão de incluir mais profissionais mexicanos na produção do filme.
Uma das quatro atrizes principais, Adriana Paz, é mexicana. As demais são Zoe Saldaña (vencedora do Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante), de ascendência dominicana, mas nascida nos Estados Unidos; Karla Sofía Gascón, que é espanhola de um subúrbio da capital Madri, embora tenha trabalhado extensamente na TV mexicana; e Selena Gomez, a mais famosa, americana de origem mexicana.
Depois de crescer falando espanhol, mas perder sua fluência, Gomez precisou aprender novamente o idioma para o papel — e sua personagem Jessi foi reformulada para se tornar mexicano-americana, em vez de puramente mexicana.
Já a personagem de Saldaña, a advogada Rita, foi alterada para refletir a ascendência dominicana da atriz, em vez de mexicana. E Audiard não fala espanhol.
"Sua forma de produzir o filme ignora muitas pessoas da indústria [cinematográfica] do México que já falaram sobre o tema, sem considerar roteiristas mexicanos ou outros atores mexicanos além de Adriana, que fez um trabalho excelente", defende Guillén.
Ele menciona o comentário "realmente doloroso", da diretora de elenco do filme — Carla Hool, nascida no México — durante uma entrevista da Fundação Sag-Aftra, nos Estados Unidos. Ela declarou que eles procuraram atores mexicanos e de outras partes da América Latina, mas, no fim das contas, acreditavam terem escolhidos os melhores atores para o trabalho.
"Ter alguns mexicanos não faz com que o filme deixe de ser uma produção eurocêntrica", conclui Guillén.
Produto de exportação
Pode haver motivos comerciais por trás da escolha do elenco de Emilia Pérez. Gomez e Saldaña, sem dúvida, são nomes globais maiores do que muitos atores mexicanos.
O desempenho de Gomez, particularmente, gerou outro momento viral de críticas contra o filme — desta vez, em um popular podcast mexicano sobre cinema, Hablando de Cine.
Nele, o ator Eugenio Derbez declarou à apresentadora do podcast, Gaby Meza, que a pronúncia do idioma espanhol de Gomez foi "indefensável".
A afirmação levou Selena Gomez a comentar, em uma postagem do trecho do podcast no TikTok: "Desculpe, fiz o melhor que pude com o tempo que me foi dado."
Derbez se desculpou pelo comentário posteriormente e Meza declarou que a entrevista como um todo não foi uma crítica à atuação de Gomez no filme (indicada para o Globo de Ouro e para o prêmio Bafta), nem sobre o seu sotaque em espanhol, já que ela interpretava uma norte-americana que não tinha o espanhol como primeiro idioma.
"A intenção foi observar que, se você não fala espanhol, pode simplesmente acompanhar sua boa atuação com legendas", explica Meza. "E ela realmente oferece uma boa interpretação."
"O que não ficou bom é que existe uma desconexão entre as palavras que ela diz e sua compreensão delas. Seu corpo, sua voz e sua entonação dizem uma coisa, mas o diálogo não coincide com o que ela está dizendo."
"E isso não é culpa de Selena, pois eu acho que ela não recebeu as indicações adequadas, as ferramentas para sua interpretação", prossegue Meza. "O diretor é francês e Selena é dos Estados Unidos, mas eles se comunicam em espanhol."
Meza destaca que, na sua opinião, o filme é "voltado para a exportação".
"Se você visitar os resorts no México, os turistas compram objetos que parecem mexicanos, mas são fabricados em outros lugares", explica ela. "Neste filme, você pode observar referências à cultura mexicana e ele pode falar sobre o México, mas não foi feito no México."
A defesa do cineasta
Em meio à enxurrada de críticas, algumas acusações sobre o filme são incorretas.
Uma postagem no X, por exemplo, chamou seu diretor de "cidadão francês que nunca pôs os pés no México". Mas Audiard contou à BBC ter visitado o México diversas vezes, tentando filmar no país e escalar os atores principais.
"Tive a ideia de fazer uma ópera com Emilia Pérez e fiquei um pouco assustado", ele conta. "Senti que precisaria injetar um pouco de realismo no filme."
"Por isso, fui ao México, talvez duas ou três vezes, caçando talentos durante o processo de escolha do elenco. Mas alguma coisa não estava funcionando. E percebi que as imagens que eu tinha em mente [para o filme] simplesmente não combinavam com a realidade das ruas do México."
"Eram simplesmente muitos pedestres, era realista demais", explica ele. "Eu tinha uma visão muito mais estilizada em mente. Por isso é que o trouxemos para Paris e reinjetamos nele o DNA da ópera."
Audiard também destaca que "pode ser um pouco de pretensão minha, mas será que Shakespeare precisou viajar até Verona para escrever uma história sobre aquele lugar?"
A julgar pelo sucesso do filme na temporada de premiações, muitos críticos e eleitores devem concordar com Audiard — ou, pelo menos, acreditar que Emilia Pérez tem fortes méritos artísticos, independentemente desta questão.
"Senti que era uma obra imensamente inovadora quando a vi", declarou o crítico de cinema britânico James Mottram. "Quero dizer que é uma nova abordagem da história dos cartéis, um musical muito incomum, uma história transgênero."
"A simples combinação destes três elementos é uma façanha de habilidade narrativa. Admiro a coragem do filme, mais do que qualquer outra coisa."
"Audiard já trabalhou no gênero crime antes (se é que podemos chamar este de um filme de crime), com obras como De Tanto Bater, Meu Coração Parou (2005). Mas este parece totalmente novo", prossegue Mottram.
"E, como crítico, é o que sempre procuro — alguém que desenvolva personagens polêmicos, introduzindo uma nova visão sobre eles."
"Você pode chamar Emilia Pérez de novela ou de ópera. E é, de certa forma, uma fantasia", segundo o crítico. "Não acho que pretenda ser um retrato autêntico dos cartéis."
"Mas é difícil, posso entender por que alguns mexicanos ficaram ofendidos com este tema tão sensível para eles e porque foram poucos [os mexicanos] envolvidos na sua produção."
"Também surgiram queixas da comunidade trans a respeito do filme. Na verdade, Audiard foi atacado de todos os lados, talvez de forma compreensível. Mas acho que, quando você faz algo perigoso e polêmico, isso sempre irá acontecer", conclui James Mottram.
Jacques Audiard afirma que teve a ideia do filme depois de ler parte do romance Écoute ("Ouça", em tradução livre), do escritor francês Boris Razon.
Em um dos capítulos, o livro apresenta, como personagem secundário, um senhor das drogas "que queria fazer a transição", mas "Boris não deu continuidade à ideia", nas palavras de Audiard.
"Existem, na verdade, duas questões sensíveis neste filme: a identidade transgênero e os desaparecidos no México", destaca ele.
"É algo que não consigo explicar bem racionalmente, mas havia uma ligação entre os dois temas quando imaginei esta história, se este gângster, responsável por este mal, se redime por ele — e, por extensão, por todo o México — com esta transição, mudando a si próprio."
"E acho que o uso da ópera, do canto e da dança permite um certo distanciamento e torna a mensagem muito mais eficaz", explica ele. "Ela penetra muito mais profundamente do que se fosse documentada de forma muito realista."
Ainda assim, em recente entrevista coletiva no México, Audiard pediu desculpas aos seus críticos.
Ele disse que o filme é uma ópera e, portanto, não é "realista" — e que "se existem coisas que parecem chocantes em Emilia Pérez, realmente sinto muito... O cinema não fornece respostas, ele só faz perguntas. Mas, talvez, as perguntas de Emilia Pérez estejam incorretas."
Mesmo com todo o furor, o filme também tem grandes apoiadores no México. Um deles é Guillermo Del Toro, diretor de A Forma da Água (2017).
Para ele, Audiard é "um dos mais fabulosos cineastas vivos", segundo declarou em uma conversa no palco com o diretor, filmada pelo Sindicato dos Diretores dos Estados Unidos em outubro passado.
Issa López, diretora e roteirista da série True Detective: Terra Noturna (2024), declarou que o filme é uma "obra de arte". E, sobre a controvérsia, Adriana Paz fez a seguinte declaração:
"Ouvi algumas pessoas dizerem que o filme é ofensivo ao México. Eu realmente gostaria de saber por quê, pois não senti desta forma."
"Questionei algumas pessoas de minha confiança, não apenas como artistas, mas como pessoas, e eles não percebem desta forma. Por isso, estou tentando entender."
Zoe Saldaña declarou à BBC que é importante permitir que os cineastas transmitam sua visão artística, mesmo quando o tema é delicado.
"Acho que estamos atravessando tempos muito sensíveis, com comunidades deixando muito claro se estão sendo representadas de forma precisa", segundo ela.
"E eu hesito entre respeitar isso, que é meu objetivo principal, mas também dar espaço para que cineastas ou contadores de histórias cuidadosos tenham uma abordagem muito especial à questão — e dar espaço a eles, mesmo que não façam parte daquela comunidade."
"Porque, às vezes, eles podem ter a melhor história para contar. E acho que Jacques sempre foi respeitoso, sempre foi muito cuidadoso, com a sua forma de abordagem", afirma a atriz.
Saldaña ficou agradecida pelo filme ter lhe dado a oportunidade de trabalhar no seu idioma nativo, o espanhol. "Nunca consegui fazer isso antes, exceto por um filme independente na República Dominicana, quando era muito jovem. Mas nunca nos Estados Unidos."
Ela também afirma que não se preocupou com o fato de Audiard não falar espanhol, pois ele já havia feito filmes em outros idiomas, além do francês — como O Profeta (2009) e Dheepan: O Refúgio (2015), vencedor da Palma de Ouro de Cannes.
"Ele fez um desafio a si mesmo e questionou essa gravidade que nos prende pelo idioma", prossegue ela, "e não se eximiu de se conectar com outras pessoas."
"Sempre o admirei por sua curiosidade pelas outras culturas e por contar histórias sem se apropriar delas", conclui Saldaña.
Mas Emilia Pérez, agora, faz parte do debate cultural que procura descobrir se a autenticidade cultural é fundamental para contar histórias ou se as produções ocidentais devem ter mais consciência de que estarão sujeitas a acusações de apropriação cultural, quando os diretores tratarem de histórias de países e culturas fora da sua especialidade.
Questionado se ele acha que o filme deve ser premiado com o Oscar, Héctor Guillén responde que "isso simplesmente mostra como a indústria funciona, que ela está longe do que acontece na América Latina e no México, mesmo que a distância da Califórnia não seja tão grande assim".
O roteirista afirma que ele "simplesmente gostaria" que a produção tivesse sido "mais aberta" para orientações vindas do México.
"Acho que Audiard é um grande cineasta e que ele foi bem intencionado com o filme", explica ele. "Não acho que ele seja um francês racista que queira ridicularizar nossa cultura."
"Mas ele poderia ter sido mais aberto para os criadores e ativistas mexicanos, discutindo a forma correta de contar a história. Porque realmente achei, no final do filme, que aquela era uma oportunidade de termos uma obra notável e audaciosa, que trilhasse o caminho certo."
No Brasil, Emilia Pérez estreia nos cinemas no dia 6 de fevereiro.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.