'Round 6, O Desafio': os dilemas éticos do reality show da Netflix
Round 6: O Desafio é inspirada em Round 6, drama distópico de nove episódios lançado pela Netflix em 2021 e que se tornou programa mais assistido da plataforma de streaming.
Não há dúvida de que a série Round 6, da Netflix, é um grande sucesso.
E o reality show britânico Round 6: O Desafio, baseado na produção sul-coreana que virou sensação mundial, seguiu o mesmo caminho.
Assim como a série que o inspirou, o reality se baseia numa competição acirrada ao fim da qual há um prêmio milionário. Mas ninguém sai morto no final.
Após ser lançada, em 22 de novembro, Round 6: O Desafio se tornou por duas semanas a série de língua inglesa mais vista na Netflix, incluindo nos Estados Unidos e no Reino Unido.
A produção estreou na versão brasileira da plataforma de streaming em 30 de novembro.
E, na quarta-feira (20/12), foi anunciado que as inscrições estão abertas para a segunda temporada.
Mas o que explica seu sucesso?
Round 6: O Desafio é inspirada em Round 6, um drama distópico de nove episódios lançado pela Netflix em 2021 e que se tornou o programa mais assistido da plataforma de streaming.
Na série de ficção sul-coreana, 456 pessoas que precisam desesperadamente de dinheiro inscrevem-se para participar de um concurso secreto e mortal de eliminação baseado em jogos infantis; o último jogador sobrevivente ganha um prêmio em dinheiro de 45,6 bilhões de won sul-coreanos (R$ 175 milhões).
É revelado ao longo do programa que a competição está sendo realizada para clientes super-ricos entediados. A série foi amplamente interpretada como uma satirização do capitalismo.
Agora, em Round 6: O Desafio, esses jogos — ou a maioria deles — foram recriados em enormes cenários no Reino Unido com 456 competidores (a maioria dos EUA e do Reino Unido) competindo entre si por um prêmio de US$ 4,56 milhões, um recorde para reality shows.
Um brasileiro, Yohan Tanaka, participou do programa.
Round 6: O Desafio reproduz de forma brilhante a estrutura e a estética do programa original e também adiciona algumas novidades próprias. É uma visualização muito atraente, mas também levanta questões sobre o que constitui entretenimento.
Obviamente, Round 6: O Desafio não tem nenhum elemento letal, mas acontece, sem surpresa, que as pessoas estão preparadas para serem bastante cruéis e desagradáveis, a fim de conseguirem o prêmio final.
As chamadas "alianças" são traídas, as maquinações maquiavélicas são recompensadas e ainda poderemos ver as relações familiares postas à prova.
Além disso, foi notificado que dois competidores estão agora ameaçando processar a produtora do programa por supostos ferimentos sofridos durante as filmagens, embora um porta-voz do programa tenha dito: "Nenhuma ação judicial foi movida por nenhum dos competidores do Round 6. Cuidamos do bem-estar de nossos competidores extremamente a sério."
Em artigo no Psychology Today, a psicóloga Pamela Rutledge chega a sugerir que o programa é "eticamente questionável", argumentando que "transforma a série original, no qual a violência era um apelo à ação contra a desigualdade" — ou seja, na qual a violência era uma metáfora num drama sobre pobreza e disparidade social — em "um veículo que promove o oposto: um 'jogo' entre 'pessoas reais' no qual a crueldade e a falta de empatia são essenciais para um grande pagamento".
Deveríamos nos sentir mal por ver competidores sofrendo e sendo humilhados em uma plataforma global?
Em The Age of Static, seu livro sobre como a TV afetou a sociedade, o crítico Phil Harrison escreveu sobre a primeira temporada britânica do Big Brother, um programa ao qual Round 6: O Desafio foi comparado: "Ficou claro que, na melhor das hipóteses, esse material tinha o que foi necessário para competir e possivelmente até superar a ficção roteirizada."
Ele sente o mesmo em relação a Round 6: O Desafio.
'Inversão de valores'
"É terrivelmente divertido e eu não conseguia parar de assisti-lo", diz Harrison à BBC Culture.
"Mas também assisti com uma certa culpa. Acho que o problema, tal como é, é que a versão dramática é uma sátira tão amargamente aguda da crueldade do capitalismo tardio, ao passo que, encenada de verdade, perde o ritmo satírico e se torna aquilo contra o qual o drama criticava".
"Eu falo sobre o tropo do 'último homem de pé' em meu livro — a noção [promovida por reality shows] de que a competitividade agressiva é o único caminho viável para a realização pessoal — e como isso parece muito simbólico para a nossa era em termos de quantas pessoas perdem em oposição a quantas eventualmente ganham. "
"Você vê isso em programas como O Aprendiz e Big Brother e filmes como Jogos Vorazes também. Parece a expressão máxima disso, o que é irônico porque se trata de uma inversão do que eu imaginava que a intenção do drama era".
"Houve alguns momentos [na primeira leva de episódios] que achei realmente muito difíceis de assistir e fiquei bastante preocupado com o bem-estar das pessoas envolvidas. Mas suspeito que esse extremo seja um recurso, não um bug — é uma das razões pelas quais é tão atraente."
Então, somos todos sádicos, deleitando-nos com o sofrimento humano enquanto assistimos ao programa na segurança do nosso sofá?
Não necessariamente, diz Sandra Wheatley, psicóloga social e membro titular da Associação de Psicologia Britânica. Ela diz acreditar que somos levados a assistir a um programa como Round 6: O Desafio por razões menos obviamente malignas — por causa de um desejo de fazer parte da conversa cultural.
"As pessoas adoraram o Round 6 e isso está aumentando a reputação do programa. É novo, emocionante e um pouco arriscado", diz Wheatley à BBC Culture.
"Vai viralizar por causa do boca a boca, e aí as pessoas ficam com medo de ficar de fora. Elas gostam de acompanhar as coisas, de se sentir parte de um grupo. Quando você está no ponto de ônibus ou na fila do restaurante ou do bar e alguém diz 'Você viu Round 6: O Desafio?' e se você não tiver visto, eles vão dizer: 'oh meu Deus, você tem que assistir'.
"Gostamos de poder falar sobre coisas que temos em comum. Isso nos dá algum vínculo social."
Os organizadores do programa ressaltam que nenhum dos competidores foi coagido a participar e todos tiveram sua idoneidade verificada durante o processo seletivo.
John Hay, CEO da The Garden, uma das duas produtoras britânicas por trás do programa, diz à BBC Culture: "Esperamos que as pessoas estejam assistindo e entendendo que estamos exercendo o devido dever de cuidado com todas essas pessoas e que o que vocês estão vendo é a pressão de um jogo. Fizemos tudo o que podíamos e devíamos para garantir que a pressão estivesse em um limite tolerável."
Sobre Spencer, o competidor que cai em prantos no segundo episódio, ele diz: "Acompanhamos Spencer desde a transmissão (do programa) para ter certeza de que ele estava feliz com o programa".
Stephen Lambert, chefe do Studio Lambert, a outra produtora por trás de Round 6: O Desafio, lembra à BBC Culture que o que realmente mantém os espectadores ligados na série é "encontrar narrativas que o público ficará fisgado e parar no ponto no qual você só quer encontrar descobrir o que acontece a seguir".
E encontrar essas narrativas, quando os criadores do programa não sabiam quais competidores venceriam, foi um dos maiores desafios.
"O programa quebra todas as regras de improviso na TV — qualquer TV, na verdade. Você não pode envolver o público a menos que esteja se concentrando em um número relativamente pequeno de personagens e estávamos começando com 456", diz Lambert.
"Portanto, o desafio do ponto de vista da filmagem, mas principalmente do ponto de vista da edição, era descobrir em quem se concentrar. O problema é que não é possível filmar todo mundo ao mesmo tempo — mesmo que tivéssemos muitas câmeras. Sempre tivemos que concentrar nossos esforços em um determinado número, e muitas vezes as pessoas que achávamos interessantes e seguíamos sua narrativa eram subitamente eliminadas."
Por outro lado, Tim Harcourt, diretor criativo do Studio Lambert, diz que surpreendeu com o nível de civilidade dos participantes.
"Acho que você esperaria que muitas pessoas passassem por cima dos outras e fossem cruéis, e embora haja momentos em que elas são de fato cruéis, no fundo são essencialmente boas, gentis, colaborativas, sociais e atenciosas."