Round 6: seis coisas que a série da Netflix nos ensina sobre a realidade da Coreia do Sul
Trama vem sendo aplaudida por retratar questões reais que afetam a vida dos cidadãos no país asiático — e podem surpreender muitos espectadores estrangeiros.
Round 6, um drama sul-coreano sangrento, se tornou sem dúvida uma das séries mais populares da Netflix de todos os tempos. No início de outubro, era a mais assistida em 90 países — e seu sucesso está dando ao resto do mundo uma visão da complexa sociedade do país asiático.
Mas, além da narrativa de suspense, que mostra competidores sem dinheiro participando de jogos de vida ou morte em troca de uma quantia que pode mudar suas vidas, a série recebeu aplausos por retratar questões reais que afetam a vida dos cidadãos na Coreia do Sul.
A trama segue os passos de Parasita, o aclamado filme sobre as vidas repletas de contrastes de duas famílias em Seul — que, em 2020, se tornou a primeira produção de língua estrangeira a ganhar o Oscar de Melhor Filme.
O longa conquistou ainda outras cinco estatuetas do Oscar, incluindo de Melhor Diretor para Bong Joon Ho.
Muitos espectadores estrangeiros podiam não estar cientes dos problemas sociais da Coreia do Sul antes, mas isso certamente mudou agora. A seguir, algumas das principais questões sobre a realidade do país destacadas na série.
Aviso: esta reportagem contém alguns spoilers.
1) Misoginia
De acordo com a edição de 2021 do Global Gender Gap do Fórum Econômico Mundial, a Coreia do Sul ocupa apenas a 102ª posição na lista de países com maior igualdade de gênero.
Round 6 reflete essa cultura por meio de discussões sobre a aptidão das mulheres para realizar tarefas fornecidas aos competidores. Cho Sang-woo, o banqueiro de investimentos, mais de uma vez tenta impedir competidoras do sexo feminino de participar de tarefas em grupo.
Mas a série em si foi criticada por como retrata os papéis femininos.
Especificamente, houve polêmica em relação à personagem Mi-nyeo, que tem relações sexuais com o gangster Deok-su para entrar na equipe dele.
O escritor e diretor de Round 6, Hwang Dong-hyuk, negou algumas acusações de misoginia feitas nas redes sociais.
Em entrevista ao jornal coreano Hankook Ilbo, ele refutou a insinuação e disse que imaginou os personagens reagindo "quando colocados nas piores situações".
2) A situação dos desertores do Norte
Round 6 também discute a questão dos desertores norte-coreanos. Na série, a competidora Sae-byok (interpretada pela modelo Jung Ho-yeon) se junta à trupe na esperança de ganhar dinheiro para reunir sua família, que se separou enquanto fugia do regime repressivo do país vizinho.
Antes da pandemia de covid-19, mais de mil norte-coreanos buscavam refúgio no Sul todos os anos. Embora Seul tenha uma série de programas e benefícios de reassentamento em vigor, os desertores podem sofrer maus-tratos, discriminação e desconfiança por parte da população local.
Round 6 mostra alguns aspectos disso, que inclui um detalhe que vai escapar de quem não fala coreano: como muitos outros desertores na vida real, Sae-byok esconde seu sotaque original e fala no dialeto padrão de Seul.
Ela só volta a falar com seu sotaque original em uma cena quando conversa com o irmão mais novo, que está em um orfanato.
3) Pobreza
Qualquer pessoa seria perdoada por ficar desconfiada se fosse convidada a discutir a pobreza na Coreia do Sul. Afinal, o país asiático aparece em 23º lugar no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU), à frente da França, Itália e Espanha, por exemplo.
Mas o personagem principal da série, Gi-hun, foi demitido da fictícia Dragon Motors, tem dois negócios falidos, vive com a mãe doente e não é capaz de comprar um presente de aniversário decente para a filha.
Ele simboliza o trabalhador fracassado que não consegue sair da pobreza.
No Índice Gini, que mede a distribuição da riqueza nacional, a Coreia do Sul tem resultados melhores do que alguns países nórdicos e até mesmo os EUA. Então, por que a pobreza é um tema da série?
Pode ser porque a desigualdade está aumentando no país asiático. Os 20% mais ricos da Coreia do Sul têm um patrimônio líquido 166 vezes maior do que os 20% mais pobres.
Dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que quase 17% dos mais de 51 milhões de habitantes da Coreia do Sul viviam na pobreza antes da pandemia de covid-19.
Eles podem morar em cubículos minúsculos, chamados Goshitels e Goshiwon, alguns com apenas 2 metros de largura. Várias gerações de uma família podem viver amontoadas juntas em apartamentos.
Mas mesmo os mais favorecidos enfrentam dificuldades: o endividamento das famílias na Coreia do Sul agora vale mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) do país — o nível mais alto de toda a Ásia.
4) Exploração de migrantes
Um dos personagens mais cativantes de Round 6 é Ali, um operário migrante paquistanês que se junta aos competidores depois que seu chefe sul-coreano deixa de pagar seu salário por meses, forçando-o a deixar para trás o filho bebê e a esposa.
Os paquistaneses não estão entre as maiores populações de migrantes na Coreia do Sul, mas a história de Ali simboliza uma rotina de trabalho duro e exploração que alguns trabalhadores estrangeiros podem vivenciar no país.
Embora as autoridades sul-coreanas tenham aprovado leis de proteção aos trabalhadores nas últimas duas décadas, as condições ainda podem ser terríveis para os trabalhadores migrantes, de acordo com grupos de direitos humanos.
5) Corrupção corporativa e política
Um dos personagens principais de Round 6 é Cho Sang-woo, um banqueiro de investimento que se junta ao desafio após cair em desgraça por desviar fundos da empresa para a qual trabalhava.
Nos últimos anos, a Coreia do Sul foi abalada por escândalos envolvendo sua elite empresarial e política, incluindo uma investigação de corrupção em 2016 que derrubou sua primeira presidente mulher, Park Geun-hye.
6) Uma relação complicada com a China
Round 6 faz uma única referência à China, que é o principal aliado da Coreia do Norte: a mãe de Sae-byok é detida enquanto tentava chegar à Coreia do Sul pela China.
Mas foi fora das telas que a série se tornou mais um exemplo das tensões entre Seul e Pequim. A imprensa chinesa noticiou que os agasalhos verdes usados pelos competidores do jogo são semelhantes aos usados no filme chinês de 2019 Teacher, Like.
Isso levou a discussões acaloradas nas redes sociais, mas praticamente não prejudicou o sucesso de Round 6 no país. Apesar da Netflix ser bloqueada na China e não haver distribuição oficial, o programa está disponível por meio de serviços de streaming ilegais.
A série foi avaliada por quase 300 mil pessoas no Douban, a maior plataforma de resenhas de filmes e livros da China, com uma pontuação respeitável de 7,6 em popularidade.
Ironicamente, os sites de comércio eletrônico também oferecem mercadorias relacionadas a Round 6, incluindo os agasalhos verdes.
Em Xangai, há até lojas que vendem dalgona, biscoito coreano que aparece em um episódio.
Os competidores precisam destacar de forma perfeita a figura central desenhada no biscoito, feito de bicarbonato de sódio e açúcar.
Há também um "desafio dalgona" se espalhando pelos vídeos do TikTok, em que os fãs recriam a guloseima mortal da série.
Round 6 pode ter lançado uma imagem negativa sobre um alimento tão inofensivo, mas a popularidade da série destaca o que parece ser um fascínio global crescente pela cultura coreana.