'Saudade até de Evidências', diz dona de karaokê após um ano de pandemia
Criado no Japão nos anos 1970, o karaokê passa por uma grande crise em tempos de distanciamento social. Haverá espaço para isso no mundo pós-coronavírus?
"Já cheguei a ouvir 14 vezes numa noite só, porque cada grupo quer cantar a sua Evidências. Mas, agora, estou até com saudade", diz Mônica Uezono, proprietária do restaurante Samurai, tradicional reduto de karaokê da capital paulista, no bairro da Liberdade.
Ela faz referência a Evidências, música de 1989 que se tornou hit na voz da dupla sertaneja Chitãozinho & Xororó, e que é a mais cantada dos karaokês do Brasil.
Como diversos bares e restaurantes da cidade que oferecem o karaokê como atração para seus clientes, o Samurai convive desde março de 2020, com microfones silenciosos e uma forte queda de faturamento, devido à impossibilidade de se cantar em segurança em ambientes fechados em meio à pandemia do coronavírus.
Após demitir ao longo do ano passado todos os seus 14 funcionários, Mônica mantém o negócio atualmente apenas com a ajuda da filha, vendendo marmitas por delivery.
Outros estabelecimentos não tiveram a mesma resiliência e fecharam as portas permanentemente, caso da Chopperia Liberdade, outra casa de karaokê tradicionalíssima de São Paulo, que demitiu todos os funcionários e devolveu o imóvel alugado, também na Liberdade.
"A última vez que cantei foi na primeira semana de março do ano passado. Então, já faz mais de um ano", lembra Paulo Mamoru Omine, de 68 anos e frequentador assíduo da Chopperia Liberdade, onde era conhecido como "Roberto Carlos japonês", devido às suas performances de hits do rei e à semelhança física com o autor de O Calhambeque e Jesus Cristo.
"A Chopperia, já no início da pandemia, eles entregaram a chave, porque não tinha como sustentar. O quadro de funcionários era muito grande lá, não tinha como manter a casa fechada com as despesas que tem", conta Omine.
"A gente fica triste, porque era uma das casas mais alegres e amplas, cabia bastante gente. Ali, se encontravam pessoas de várias faixas etárias e vários gostos musicais também. Então, tinha assunto para a noite inteira."
A história do karaokê
O karaokê surgiu no Japão no início da década de 1970, quando o músico Daisuke Inoue criou uma espécie de jukebox com microfone, que era alugada para alguns bares da cidade de Kobe.
"Um dia, o presidente de uma pequena empresa veio ao clube onde eu estava tocando para pedir um favor", contou Inoue em 2005 à revista Topic Magazine. O relato em primeira pessoa foi reproduzido em 2013 pelo site The Appendix.
"Ele ia encontrar clientes em outra cidade e sabia que o encontro iria terminar num bar e que ele seria chamado para cantar. 'Daisuke, eu só consigo cantar com seu teclado ao fundo! Você conhece a minha voz e sabe o que é necessário para fazê-la soar bem.'"
"Então, a pedido dele, gravei alguma de suas músicas preferidas num gravador de rolo, no tom mais adequado para sua voz. Dias depois, ele voltou todo sorridente e perguntou se eu poderia gravar mais algumas canções."
"Naquele momento, veio a mim a ideia da Juke 8: você colocaria dinheiro numa máquina com microfone, caixa de som e amplificador, e ela tocaria a música que as pessoas quisessem cantar", relatou Inoue, sobre a origem de sua invenção.
O karaokê no Brasil
Pedro Mizutani, presidente da UPK (União Paulista de Karaokê), conta que a cultura foi trazida ao Brasil pelos nikkeis, como são chamados os japoneses que vivem no exterior e seus descendentes nascidos fora do Japão.
"Karaokê quer dizer 'orquestra vazia'", explica Mizutani. "Antes, as pessoas cantavam com orquestras mesmo, com bandas. Depois, surgiu o advento do karaokê, em que você tem o acompanhamento musical, sem ter a orquestra 'cheia', presencial."
"Então, o karaokê surgiu para facilitar as pessoas a cantarem, um costume que se tornou mais comum no Japão após a Segunda Guerra. Para o Brasil, essa tradição veio com os imigrantes."
Por aqui, o videokê se tornou a forma mais popular de cantoria sem banda. Os equipamentos mais comuns no país são de origem coreana e se popularizaram a partir da década de 1990.
Antigamente, eram abastecidos por cartuchos contendo seleções de músicas. Hoje em dia, o repertório pode ser atualizado pela internet, através da compra de pacotes de canções.
Na comunidade nikkei, são populares os concursos de karaokê, realizados aos domingos.
"Desde fevereiro do ano passado, com a pandemia, não existem mais os concursos presenciais", conta o presidente da UPK, entidade criada há 30 anos para organizar as regras dessas competições no Estado de São Paulo.
"Agora, só existem eventos virtuais, onde as pessoas gravam em casa e mandam para esses concursos online de karaokê. Mas isso reduziu muito o número de pessoas que cantam, porque principalmente os mais idosos têm dificuldade de gravar."
Pior crise em 52 anos de história
Segundo Mônica Uezono, dona do restaurante Samurai, a crise do coronavírus é a mais grave dos 52 anos de história de restaurante.
"O restaurante Samurai foi fundado pelos meus pais em 1969", conta Mônica.
"Passamos por várias crises, a mais recente, antes da pandemia, foi quando surgiu o rodízio japonês, quando se perdeu toda aquela delicadeza da culinária japonesa, em que cada ingrediente que vai no prato para ser servido à mesa tem um significado."
"Tivemos a crise do salmão, quando devido a um parasita as pessoas ficaram com medo de comer peixe cru", lembra a proprietária.
"Antes disso, tivemos também a crise da cólera, que afetava peixes de água doce, mas, por falta de conhecimento de que nós trabalhamos só com peixe de água salgada, fomos afetados do mesmo jeito."
O karaokê chegou ao restaurante justamente em meio a uma dessas crises.
A empresária lembra que a atividade primeiro surgiu em São Paulo e em Manaus, quando foi criada a Zona Franca, para atender clientes corporativos, diante da cultura trazida do Japão de fechar negócios com um jantar, seguido por bebedeira e cantoria.
"Há 50 anos atrás, já tinha karaokê no Brasil, mas só iam neles os 'colarinhos brancos', só se cantava música japonesa, e parecia boate. As meninas que atendiam se sentavam junto com o cliente, serviam uísque, eram superproduzidas, superperfumadas."
No fim da década de 1990, com o movimento do restaurante bastante prejudicado pela febre do rodízio japonês, Mônica comprou um aparelho de videokê de uma prima que estava se separando e levou-o para a confraternização de fim de ano dos funcionários.
O aparelho ficou no andar de cima do restaurante e, às vezes, algum funcionário usava-o para cantar no fim do expediente.
"Dava para ouvir tudo no salão de baixo, e os clientes começaram a querer subir para ver e acabavam ficando", lembra Mônica.
"Foi difícil no começo. Os homens vinham aqui e perguntavam 'Cadê as meninas?' e o pessoal da nossa colônia que vinha com a família falava 'Ih, lá tem karaokê, não vou naquele restaurante, não dá para levar minha esposa'."
Com o passar do tempo, Mônica conseguiu consolidar o Samurai como um karaokê familiar e viu seu movimento voltar. Mas, então, no ano passado, veio a pandemia.
"Uns 80% do meu faturamento vinha do karaokê, era praticamente tudo. Quem vinha só para jantar era muito pouco", diz a proprietária.
"Eu fico muito triste de ver a minha casa vazia. Para facilitar a circulação e a limpeza, coloquei as mesas e cadeiras para cima. Então, até quem vem aqui buscar delivery fica triste, porque é uma pena ver a casa dessa forma. Mas temos que seguir em frente."
Um ano sem cantar
Se a situação é difícil para os empresários, os clientes cativos também sentem saudade da cantoria.
Funcionário aposentado da Prefeitura de São Paulo, Paulo Mamoru Omine, o "Roberto Carlos japonês", canta em karaokês desde o final da década de 1980.
"Meus irmãos gostavam e participavam de concursos que eram realizados entre a colônia japonesa. No começo, eu achava muito chato aquilo lá. Mas, depois que cantei a primeira vez, aí foi", conta Omine. "Eu não larguei mais."
Nascido no interior de São Paulo, no município de Lucélia, quando ainda nem tinha televisão por lá, Omine cresceu ouvindo os cantores da Jovem Guarda no rádio.
"O Roberto Carlos era o principal, o comandante da Jovem Guarda e o que mais teve sucesso. E o pessoal via em mim uma certa semelhança, do jeito, do cabelo. Então, eu comecei a estudar o Roberto Carlos e a fazer cover", lembra.
Com a pandemia, essa é a primeira vez, desde que tomou gosto pelo karaokê, que Omine passou um ano inteiro sem cantar.
"Não cantei nem em casa, nem para brincar, mesmo tendo um aparelho de karaokê. Nem uma música eu cantei, porque não vejo graça de estar em casa sozinho cantando", afirma.
"O que eu acho legal é o palco, que dá aquela emoção. A gente se sente um pouco artista. Não vejo a hora de voltar tudo ao normal."
Explosão de vendas
Mas nem todos no universo do karaokê estão tendo os negócios prejudicados pela pandemia.
Na contramão dos bares e restaurantes, quem vende aparelhos de videokê viu as receitas crescerem com as famílias presas em casa e em busca de alternativas de entretenimento.
Reinaldo França da Silva é proprietário da Videokê Delivery, uma revenda online de aparelhos da marca Videokê, aquela cujo logotipo tem um leãozinho cantando ao microfone.
"Nossas vendas aumentaram no ano passado, tanto que em maio dobrou o faturamento e todos os meses batemos recordes, até dezembro", conta Silva.
"Como as pessoas estão muito em casa e estressadas, elas compram esse equipamento porque, como diz o ditado, 'quem canta seus males espanta'. Então, muitas pessoas compram para se divertir em família e evitar aglomeração."
No começo deste ano, no entanto, o empresário conta que sentiu uma piora das vendas.
"Acho que isso está acontecendo em todos os ramos, não só no nosso, está devagar para todo mundo. O meu cliente, que é alguém que pode gastar R$ 2 mil ou mais num equipamento, no geral é um empresário, alguém que tem uma loja no shopping, que tem algum comércio. Como tudo fechou, todo mundo está segurando os gastos, por mais que tenha algum dinheiro guardado."
E vai ter karaokê fora de casa na nova realidade pós-pandemia?
Em meio à nova onda da pandemia, muitos se perguntam: um dia voltaremos a cantar karaokê fora de casa?
Pedro Mizutani, presidente da UPK, tem certeza que sim. "Neste momento não, por isso criamos vários eventos virtuais e deve ser assim este ano inteiro. Mas, no futuro, depois da vacina e quando o vírus estiver controlado, vão voltar os concursos presenciais. E se tiver que tomar todas as precauções, de higienização do microfone, de uso de máscara, nós vamos nos adaptar. O importante é a cultura se manter viva."
"Enquanto tiver o vírus, eu acho difícil voltar. O entretenimento deve ser o último da fila, infelizmente", avalia Paulo Omine. "Mas eu sou otimista, sou esperançoso e acredito que alguma hora tudo vai voltar ao normal."
"Ah volta, tranquilo", diz Mônica Uezono, do Samurai. "Até hoje tem cliente perguntando 'Vai abrir quando?'. O povo brasileiro gosta de cantar, gosta de comemorar com karaokê. Eu tinha um casamento marcado para o dia 13 de março. Estava combinado desde o ano passado, não deu, tivemos que desmarcar. Mas isso mostra o quanto os clientes gostam de cantar."
Vitor Mori, pesquisador da Universidade de Vermont, nos Estados Unidos, e membro do Observatório Covid-19 BR, explica que o karaokê é uma atividade perigosa na pandemia porque o principal mecanismo de propagação do coronavírus é a inalação de pequenas gotículas ou aerossóis, que ficam flutuando no ar depois de serem expelidos por uma pessoa infectada.
"Quanto mais alto alguém fala, mais partículas são emitidas. Então, cantar é um processo que emite muitos aerossóis e gotículas menores, o que coloca as pessoas em risco se alguém estiver infectado", afirma.
"Além disso, os karaokês são geralmente feitos em salas fechadas para garantir a vedação do som. São ambientes que não têm troca de ar com o ambiente externo, geralmente mal ventilados e com muita gente, então há um risco muito grande nesse tipo de local."
Mas o físico e pesquisador também avalia que um dia os karaokês vão voltar.
"Uma vez que a gente vacinar a maior parte da população, controlar a transmissão do vírus e a pandemia terminar, a vida vai poder voltar ao normal como era antes. Não há registros de uma pandemia que durou para sempre. Alguma coisa ou outra pode ser que mude, mas vamos sim poder voltar à vida normal, como ela era antes."
"Já estamos vendo isso em Israel, Austrália e Nova Zelândia, onde o controle foi feito com distanciamento físico e lockdowns muito rigorosos. A vida está praticamente normal e, quando controlarmos o vírus no Brasil, não vai ser diferente."