Sozinho na fortaleza: como vive o último cavaleiro de ordem milenar em Malta
Os famosos Cavaleiros de Malta transformaram a capital maltesa de Valleta numa 'cidade para cavaleiros'. Mas por quanto tempo mais a ordem consegue sobreviver?
Eram 21h de um domingo quando liguei para Fra John Critien, e ele não ficou nada contente. Um cavaleiro não liga do nada para outro cavaleiro numa hora tão inoportuna, afirmou. A conversa acabou ali.
Em seguida enviei-lhe um email explicando que tinha ido a Malta exatamente para aprender a me comportar como os célebres cavaleiros da Soberana Ordem Hospitaleira Militar de São João de Jerusalém de Rodes e Malta, também conhecida como a Ordem Militar Soberana de Malta. Na manhã seguinte, então, ele me respondeu com mais boa vontade.
"Bem, imagino que ser um cavaleiro também signifique atender aos outros mesmo quando se é pego de surpresa num domingo à noite", ele escreveu.
E assim eu o encontrei numa terça à tarde no Forte de Sant'Angelo, no Grande Porto da capital maltesa de Valletta, onde ele é o único habitante da isolada fortaleza desde 1998. Vestido com camisa polo creme e mocassim, ele me cumprimentou com um caloroso sorriso e flutuou sua mão para cima. "Por aqui", disse o cavaleiro, e subimos a muralha.
A Ordem de Malta, fundada por volta de 1099 em Jerusalém, é uma sociedade de cavalaria católica romana. Em 1530, a ordem recebeu as Ilhas Maltesas em uma concessão perpétua por Carlos 1º, da Espanha, em troca da promessa de um falcão maltês por ano.
O grão-mestre Jean de la Valette, juntamente com seus cavaleiros, inaugurou a nova capital do país, que mais tarde seria descrita pelo ex-primeiro ministro britânico Benjamin Disraeli como "uma cidade construída por cavaleiros para cavaleiros".
Fra Critien é hoje o único cavaleiro no arquipélago que fez os votos da ordem, o que o torna o último verdadeiro Cavaleiro de Malta em Malta.
Nós caminhamos pela parte alta da Fortaleza de Sant'Angelo, um bastião medieval em tons de mel reconstruído no século 16. Ela serviu como sede maltesa do chefe da ordem e sede da ordem durante o Grande Cerco de Malta em 1565, quando os otomanos tentaram invadir o arquipélago.
A maior parte da fortaleza está sempre aberta a visitação. No último ano, exclusivamente, um limitado número de viajantes também pode visitar a seção mais isolada da construção, já que Valletta se tornou a Capital Europeia da Cultura de 2018. Mas Fra Critien está negociando com o Malta Heritage Trust para ampliar o acesso de visitantes para além de 2018. E espera inaugurar um pequeno museu dedicado aos recentes projetos dos cavaleiros.
Durante o tour, paramos numa espaçosa sala de estar cujas paredes eram adornadas com pinturas a óleo de grandes mestres, e eu endireitei os ombros copiando a nobre postura de Fra Critien. Dada à intenção de la Valette de criar uma cidade de cavaleiros, perguntei a Fra Critien o que exatamente significaria ser um cavaleiro aos olhos da ordem.
O lema oficial da ordem, Tuitio fidei et obsequium pauperum ("Defesa da fé e assistência aos pobres"), define sua dedicação à religião e à caridade. "No passado, a defesa da fé estava andando a cavalo, lutando contra inimigos", disse Fra Critien. "Agora defendemos a fé sendo exemplo para os que nos rodeiam".
Doações, trabalho em hospitais e programas para jovens são parte das ações dos cavaleiros de Malta. Segundo Fra Critien, eles seguem uma característica fundamental: o orgulho humilde.
"Até espero que haja uma reação de 'uau!' quando usamos nossos uniformes ou trajes da igreja", afirmou Fra Critien. "Mas rezo para eu não me levar muito a sério por causa disso".
Hoje, ele explicou, a ordem tem cerca de cem cavaleiros e damas (como as mulheres-membro são conhecidas) em Malta, porém estes não fizeram os votos da ordem. No mundo, de Nova York a Londres e Roma, há em torno de 13.500 cavaleiros e damas na ordem. Mas muitos consideram difícil fazer votos de pobreza, castidade e obediência como fez Fra Critien - por isso ele mantém o status de solitário cavaleiro em Malta e um dos 55 da ordem no mundo.
"O cavaleiro é uma raça em extinção?", perguntou retoricamente. "Bem, até certo ponto, sim".
Mas Fra Critien não acredita que é necessário ser um cavaleiro para agir como tal: "Para ser honesto, não vejo grande diferença entre ser cavaleiro e cavalheiro".
No dia seguinte, quando cheguei à Casa Rocca Piccola, em Valletta, assegurei-me de manter minha postura ereta como a de um cavaleiro. A residência pertence ao Marquês Nicolau de Piro, membro da Ordem de Malta e procedente de uma das famosas famílias aristocráticas do país. A construção mantém sua elegância barroca do século 16, com uma fachada de calcário que brilha em tom dourado com o sol da tarde. Atualmente, o marquês e sua esposa abrem o labirinto de quartos à visitação.
"Todo mundo pensa que ser um cavaleiro é apenas ser elegante, inteligente ou imponente", disse o marquês ao lado de seu papagaio, Kiku, em seu jardim banhado pelo sol. O verdadeiro impacto da Ordem de Malta, enfatizou, são as ações de caridade.
O comportamento é outra característica singular dos cavaleiros. E agir mal é um grande erro, acrescentou o marquês. Ele citou o exemplo do pintor Caravaggio, do Renascimento, que se tornou um cavaleiro da Ordem após chegar à ilha em 1607.
Caravaggio vinha de Roma, onde tinha matado um homem em um duelo. Mesmo assim, os cavaleiros acreditaram em suas boas intenções, e a Corte precisava de um pintor. A criação de sua maior e única obra assinada, A Decapitação de João Batista, ainda exposta na Catedral de St John, reforçou seu valor para a ordem. No entanto, um ano depois, ele foi preso por supostamente se envolver em uma briga. Os cavaleiros o aprisionaram na fortaleza e o expulsaram da ordem.
Enquanto visitávamos sua residência, o marquês revelou outro atributo de um cavaleiro: uma dose de humor. Ele citou a lápide de Anselme de Cays, famoso cavaleiro da ordem do século 18 enterrado na Catedral de São João. A inscrição de seu túmulo de mármore diz: Qui me calcas calcaberis ("Quem pisa em mim, será pisado"), declaração que, de acordo com o marquês, é uma ameaça bem-humorada.
Depois de me despedir do marquês, fui tomar um drinque no Club The Phoenicia Hotel, onde Pierre 'Pitro' Walton é o barman-chefe há 30 anos e já serviu nomes como a Rainha Elizabeth 2ª e Frank Sinatra. Enquanto tentava rever minhas lições de galanteria - orgulho humilde, trabalho de caridade, valentia, humor … -, perguntei o que Walton, um plebeu como eu, pensava do legado de cavalheirismo de seu país.
"Para ser um verdadeiro cavaleiro, você tem que ter uma espada grande e ir à guerra, mas o sangue dos cavaleiros flui pelas veias dos malteses", disse Walton. É por isso que, continuou, os malteses são conhecidos por sua hospitalidade.
O trabalho em hospitais - e por extensão, a hospitalidade - é parte inerente dos deveres da ordem, disse Walton. Inclusive, foi uma unidade de saúde para refugiados do século 11 que marcou o surgimento da ordem. Posteriormente, o famoso Hospital Sacra Infermeria, do século 16, em Valletta - agora o Centro de Conferências do Mediterrâneo - acolheu a todos, de mendigos a nobres. Foi aqui que os cavaleiros estabeleceram padrões médicos, como trocar a roupa de cama e usar pratos e utensílios de prata, além criar pomadas inovadoras à base de mel.
Claro, o remédio de Walton vem em forma de coquetel. Depois de me contar sobre a hospitalidade maltesa, ele me serviu um St Elmo, uma lenda de cavalheirismo em forma de elixir para comemorar o Grande Cerco de Malta. A bebida é feita de Bajtra (licor de palma-doce, do lado maltês), gim (pelo inglês), Cointreau (pelo francês), lima (pela acidez da vida) e suco de oxicoco (pelo sangue).
"Agora, sente-se", disse ele, endireitando o guardanapo sobre a mesa à minha frente.
Enquanto bebia meu St Elmo, que brilhava como um rubi no copo de martini, os ensinamentos da ordem rodavam na minha cabeça. E pela primeira vez desde que me encontrei com Fra Critien, senti meus ombros relaxarem.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.
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