Todos deveriam ler histórias em quadrinhos
Os quadrinhos foram o primeiro fenômeno de massa do mercado brasileiro. Tiveram um longo auge, dos anos 40 aos 80, com publicações semanais, quinzenais e mensais. As tiragens iam até a casa de quinhentos mil exemplares por título todos os meses. Isso em um Brasil analógico e com alto índice de analfabetismo. Trazendo em suas páginas anúncios dos mais diversos produtos, uma HQ atingia toda a família.
Mas os quadrinhos foram muito mais do que isso.
O senso comum enxerga o quadrinho apenas como uma distração sem qualquer mérito artístico. Porém algo tão aparentemente inócuo e descartável incomodou e influenciou gerações, além de movimentar fortunas e culminar hoje no domínio das bilheterias de cinema, com produções cada vez maiores.
Eu devo aos quadrinhos muita coisa e desde que me lembro por gente em minha casa sempre houve pelo menos uma estante enorme de livros e gibis. Em casa todos liam e praticamente todos os dias minha mãe ou minhas tias chegavam trazendo algo novo, fosse um livro ou um gibi.
Os quadrinhos me despertaram a curiosidade de querer saber mais sobre eles a ponto de escrever artigos e colaborar em publicações especializadas, pois foi através deles que conheci diversos escritores e ampliei o meu gosto literário.
Os quadrinhos são verdadeiras máquinas do tempo – e nesse ponto eles ganham dos livros, pois carregam dados da época em que foram publicados, como a moeda, os anúncios de produtos, cursos e instituições, gírias e expressões, elementos que nos transportam instantaneamente para os mais diversos pontos do passado e do futuro.
Minha primeira prateleira foi feita com um caixote de bacalhau, onde guardava minha tímida coleção junto aos meus livros de Monteiro Lobato, Júlio Verne, Francisco Marins e o meu Supermanual do Escoteiro Mirim. Aquela prateleirinha de menos de um metro de altura com três bandejas era o meu tesouro mágico, a chave do reino estava ali guardada impressa em papel de mil folhas.
Logo a coleção aumentou, pois passei a frequentar sebos e bancas de revistas usadas atrás de exemplares dos anos 60 e 70. Na saudosa Livraria Shazam eu escalava uma escada fina digna de um filme de Chaplin até o topo do pé direito da loja, que tinha uns cinco metros de altura, para fuçar pilhas enormes de gibis empoeirados. Um garimpo sempre bem recompensado com edições que não viam a luz desde os tempos em que os Antigos vagavam pela terra.
Eu já gostava de química e ciências, então fora da escola passei a ler e estudar tudo que achava interessante por ter conexão com livros, cinema e quadrinhos: História geral, física, astronomia, magia, astrologia, I-Ching, esoterismo, psicologia, política, arte e qualquer coisa que agregasse conhecimento ou que explicasse o que havia acabado de ler. Como pesquisar se a eletricidade poderia reanimar um corpo morto como em Frankenstein e descobrir que essa ideia foi inspirada nos experimentos de Galvani, em 1780.
Isso ampliou a minha cultura, me fez conhecer autores novos como Robert E Howard, Lovecraft, Thoreau, Aldous Huxley, Thomas Pinchon, Robert Bloch, Jack Keruac, Edgar Rice Burroughs, Edmond Rostand, Asimov, Bradbury, Charles Fort e automaticamente o cinema veio junto com Truffaut, Frank Capra, David Lynch, Almodóvar, Corman, Glauber Rocha, Carlos Saura, entre outros tantos.
Foi através dos quadrinhos que tomei lições de história e política internacional: Maus, Persépolis, e a história da Palestina e da Faixa de Gaza, por exemplo. Sem falar em tantos amigos de infância e adolescência que se tornaram advogados, repórteres e cientistas por influência de heróis como Batman, Super-Homem, Reed Richards e Demolidor.
Ainda hoje relaxo e esqueço dos problemas do dia a dia me divertindo com a turma do Limoeiro, ou com as peripécias de Lulu e Bolinha, volto à minha infância com Sobrinhos do Capitão e entendo melhor os dilemas da vida adulta com Charlie Brown. Crumb, Shelton, Wolverton, Bukowski, Crepax e Magnum me ensinaram sobre drogas e sexo sem groselha e como tudo isso poderia ser bem mais divertido.
E a música? Perdi a conta de quantas citações musicais encontrei pelos quadrinhos, de cantos gregorianos ao punk rock, passando por Billie Holiday e Black Uhuru. Aprendi mais sobre história do Brasil com Chibata, Casa Grande e Senzala, Guerra dos Farrapos, Lucas da Feira, Madame Satã e Cartas da Mãe – apenas alguns exemplos, pois a lista é grande.
Através dos anúncios de época, tipo de linguagem e contexto das histórias, acompanhei pequenos retratos da nossa vida como um todo e tive um melhor entendimento de como os políticos e os planos econômicos afetaram a todos os brasileiros.
Os quadrinhos me incentivaram a ler melhor, escrever melhor, desenhar melhor, ouvir melhor, pensar melhor e me divertir melhor, me levaram ao mundo da escultura, foi por causa deles que encontrei a minha nova profissão. Me desafiaram a aprender novos idiomas, meu inglês e o meu parco italiano, espanhol e francês são resultados disso, de querer ler obras em outros idiomas.
O quadrinho é uma das artes mais subversivas, pois ali embutida no entretenimento ele traz uma carga de ideias e visões que dificilmente seriam tão bem absorvidas através de outras mídias no mundo todo. Eles são o laboratório teste de novas ideias e conceitos, muitas vezes antecipando em décadas algumas visões de mundo e de tecnologia, representando mundos e histórias sem limite criativo. E exercita a imaginação do leitor: quem lê tem mais facilidade em usar sua criatividade no trabalho e no dia a dia.
Além disso, eles podem ser usados como forma de ensino, terapia, publicidade, comunicação empresarial, registro cultural e expansão dessa cultura para dentro e fora do seu país de origem.
E eu coleciono, coleciono quadrinhos e lembranças, os quadrinhos para mim são instrução, divertimento e prazer, e hoje tudo o que tenho, tudo que consegui, teve como seu primeiro passo a leitura de uma revista em quadrinhos.
E você? O que vai ler hoje?
(*) Nikki Nixon é especialista em Processos Criativos, palestrante e fundador da Deuses e Monstros – Escola de Artes.