YMCA: como hit do Village People virou um improvável hino para Trump
Abraçada pela cultura gay desde seu lançamento nos anos 1970, a música acabou tocada à exaustão nos comícios do agora presidente eleito dos EUA — um movimento que, para os especialistas ouvidos pela BBC, não aconteceu por acaso.
A música YMCA, da banda Village People, é um hit pop animado que incentiva jovens rapazes a frequentarem a Young Men's Christian Association (Associação Cristã de Moços), que surgiu no século 19 e reuniu milhões de associados desde a fundação.
Foi tocada pela pela primeira vez em 1978 por um grupo de dançarinos malhados ostentando bigodes e fantasias de couro coladas ao corpo.
A performance e a letra, interpretada por muita gente com duplo sentido, como uma ode à "pegação" nesses lugares, fizeram com que a música fosse abraçada pela cultura gay desde seu lançamento.
Agora, em um movimento surpreendente, ela tem ficado cada vez mais associada a Donald Trump: é tocada repetidamente em comícios e eventos para arrecadar fundos em Mar-a-Lago, e o presidente eleito dos EUA dança frequentemente ao som da música enquanto seus apoiadores cantam junto.
Nesta semana, foi anunciado que o próprio Village People se apresentaria em vários eventos da posse.
Trump também é fã de outro sucesso deles: Macho Man. Em uma carreira política na qual não faltam ironias e contradições, esta deve estar no topo da lista.
YMCA foi coescrita pelo produtor francês Jacques Moralis e o cantor Victor Willis, com uma mistura de fanfarra, violino, funk (americano) e uma melodia grudenta.
Os movimentos de braço da coreografia, que Trump dificilmente acerta, foram adicionados para uma apresentação no programa de TV American Bandstand em 1979.
É música de festa de casamento, de playlist de academia e hit de pista de dança.
Mas como ela foi das festas para a política?
'Imagens da masculinidade americana'
Em março de 2020, a música foi certificada como "culturalmente, historicamente ou esteticamente significativa" pelo Registro Nacional de Gravações da Biblioteca do Congresso dos EUA — um sinal claro de que não era mais vista como subversiva ou picante, mas como uma celebração para todos, como uma forma de se divertir com outras pessoas.
Um mês depois, a canção foi tocada em comícios contra a quarentena durante a pandemia de covid-19.
Alguns dos manifestantes trocaram as letras YMCA por MAGA (lema de Trump, Make America Great Again, ou "tornar a América grandiosa de novo", em tradução literal).
A música se tornou um "clássico" em comícios pró-Trump logo em seguida.
Enquanto algumas reuniões políticas podem parecer sérias e formais, Trump se orgulha da percepção de que seus comícios têm o clima popular de uma partida esportiva ou um show de rock — então o hit alegre do Village People faz sentido como sua trilha sonora.
Mas a ligação entre MAGA e YMCA não é apenas sobre diversão, diz Jamie Saris, professor associado do Departamento de Antropologia da Universidade Maynooth, na Irlanda.
"Não dá para separar Trump e sua base da nostalgia", diz Saris à BBC.
"Eles querem uma releitura. Ou seja, querem reviver certos momentos do passado que idealizaram. Eles simplesmente não querem lidar com as contradições."
"A era das discotecas era considerada problemática na sua época, mas agora as mesmas pessoas que costumavam se sentir desconfortáveis com ela estão dizendo: 'Os anos 1970 foram ótimos! Minhas costas não doíam!'."
Além disso, diz Saris, a nostalgia inerente ao movimento de apoiadores de Trump frequentemente resvala em algo mais caricatural.
"Você vê trabalhadores de escritório nos comícios de Trump se vestindo como veteranos de guerra, Navy Seals e operários", exemplifica.
Por mais estranho que pareça, ela continua, esse cosplay não é tão diferente daquele feito pelo Village People que, com ironia, fetichiza profissões e modos de vida supostamente másculos ao vestir roupas como de policial, soldado, cowboy, indígena americano estereotipado, trabalhador da construção civil e motociclista, argumenta o professor.
Todas essas, diz Saris, são "imagens ainda admiradas da masculinidade americana".
'Hino gay'?
Essas explicações, no entanto, não tornam a ligação entre a música e o político conservador menos intrigante.
Jingles de campanha eleitoral tendem a ser sobre patriotismo, liberdade e esperança — não sobre passar um tempo com os "brothers" quando você está sem dinheiro.
Trump não tem, contudo, muitas opções de músicas para escolher. A lista de artistas que reclamaram do uso de canções em comícios ou chegaram a acionar advogados para que enviassem-lhe notificações judiciais é enorme e inclui Beyoncé, Rihanna, Celine Dion, REM, Aerosmith e Jack White.
Neste último caso, quando Trump tentou usar a música Seven Nation Army, da banda The White Stripes, em um comício, White, que é o vocalista e guittarista, mandou um recado no Instagram.
"Nem pensem em usar minha música, seus fascistas. Vão receber um processo dos meus advogados (para somar aos outros 5 mil que vocês já têm)."
Desde então os trumpistas pararam de usar a música e a banda desistiu do processo.
Estranhamente, outro nome nessa lista é Victor Willis, do Village People.
Em junho de 2020, ele anunciou que não queria mais que Trump tocasse suas músicas e, em 2023, enviou um mandado judicial para que elas não fossem tocadas depois que um grupo vestido como Village People foi visto se apresentando em Mar-a-Lago.
Mais recentemente, contudo, Willis mudou de ideia.
"Os benefícios financeiros foram ótimos", ele escreveu no Facebook em dezembro. "Estima-se que YMCA arrecade vários milhões de dólares. Portanto, estou feliz por permitir que o presidente eleito continuasse a usar YMCA. E agradeço a ele por escolher usar minha música."
Aliás, Willis também afirmou no post que a letra não foi escrita para ter duplo sentido e que que sua esposa iria processar qualquer veículo de notícias que descrevesse o YMCA como um hino gay.
Ainda confuso com a visão de um presidente eleito de 78 anos dançando ao som de uma música pop com as palavras "young man" (homem jovem)?
Bem, pode ser que causar essa confusão seja intencional.
Uma coisa que diverte os apoiadores de Donald Trump é que ele não se encaixa perfeitamente em uma categoria.
"As seleções musicais de Trump nos dizem muito sobre ele", diz o professor James Garratt, autor do livro Music and Politics: A Critical Introduction ("Música e política: uma introdução crítica", em tradução literal, sem edição no Brasil).
"E, diferentemente de outros políticos, ele não parece se importar se suas escolhas (normalmente pessoais) parecem caóticas, aleatórias ou ideologicamente inconsistentes", acrescenta.
"Afinal, ele mudou repetidamente suas alianças políticas, e sua playlist também oscila ecleticamente. Não acho que ele esteja pregando uma peça nos progressistas ao usar músicas como YMCA. Muito pelo contrário, estamos vendo o autêntico Trump em toda sua confusão."