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Cannes: 'A cultura do Brasil saiu da UTI', diz Karim Aïnouz, concorrente à Palma de Ouro

Diretor cearense disputa o prêmio com o seu novo filme, 'Motel Destino'.

17 mai 2024 - 10h36
(atualizado às 13h06)
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‘Motel Destino’ narra a história de um jovem que, após cumprir pena socioeducativa, muda o destino de uma mulher que vive relacionamento abusivo
‘Motel Destino’ narra a história de um jovem que, após cumprir pena socioeducativa, muda o destino de uma mulher que vive relacionamento abusivo
Foto: Reprodução digital | Cinema Inflável, Gullane, Globo Filmes, Telecine e Canal Brasil / Portal EdiCase

Karim Aïnouz concorre à Palma de Ouro com "Motel Destino". Em entrevista à DW, cineasta brasileiro fala sobre retomada do cinema do país após o governo de Jair Bolsonaro."Quiseram nos dizimar, mas estamos aqui, mais firmes do que nunca". A frase, dita em tom de euforia, é do cineasta cearense radicado em Berlim Karim Aïnouz, que concorre à Palma de Ouro, do Festival de Cannes, com o filme Motel Destino.

O filme estreia em Cannes na próxima quarta-feira (22/05) e a expectativa é grande. Afinal, Karim não é novato no festival. Em 2019, ele ganhou a mostra Um Certo Olhar com o filme A vida invisível de Eurídice Gusmão. Ano passado, concorreu à Palma de Ouro com Firebrand, uma produção inglesa.

Estreado por Fábio Assunção, Nataly Rocha e Iago Xavier, Motel Destino conta a história de um homem que se esconde em um motel e tem um caso com a mulher do dono do estabelecimento, um ex-policial. O filme foi rodado no Ceará com uma equipe local.

Em entrevista à DW, Karim fala sobre Motel Destino, sobre o chamado "apagão" da cultura provocado durante o governo de Jair Bolsonaro e a volta com força do cinema brasileiro, refletida no Festival de Cannes.

DW: O Festival de Cinema de Cannes começou nesta terça-feira (14/05) no sul da França, com o seu filme Motel destino, que é um filme brasileiro, entre os concorrentes da competição oficial. Você, Karim, é um brasileiro radicado em Berlim e já foi premiado na mostra paralela Um Certo Olhar. Agora, volta ao festival com uma história de amor estrelada por Fábio Assunção, Nataly Rocha e Iago Xavier. Como é, para você, voltar para Cannes, desta vez na competição oficial?

Karim Aïnouz: Eu estou muito feliz. E o que acho mais interessante agora é estar aqui com esse filme que foi feito no Ceará, no local onde eu cresci, com uma equipe e um elenco de lá. Isso para mim é histórico. Não é uma conquista minha, é de todo mundo, de uma equipe e de um projeto. Há 15 anos, montamos uma escola de cinema lá com fomento público. [Karim e os cineastas Marcelo Gomes e Sérgio Machado são idealizadores do Lab Cena 15, um laboratório de formação de roteiristas na Escola Porto Iracema das Artes, em Fortaleza].

Esse filme mostra como é importante os trabalhos a longo prazo, já que grande parte da equipe foi formada lá. E acho importante também que foi feito com uma equipe do Ceará, que é um lugar totalmente fora do eixo Rio-São Paulo e muitas vezes marginalizado. Quando eu comecei a fazer cinema, era inimaginável pensar em fazer cinema no Ceará. Acho que nunca houve um filme do Ceará em Cannes. Agora, vamos ter um tapete vermelho quase só com cearenses. Isso para mim é muito importante e histórico.

Ano passado você concorreu à Palma de Ouro com Firebrand, uma produção inglesa. Esse ano está com um filme brasileiro depois do governo Bolsonaro, que provocou um chamado "apagão" no cinema. Como é para você estrear uma produção brasileira depois desse período?

Eu acho incrível que depois de quatro anos de fascismo a gente tenha conseguido se recuperar tão rápido. Foram anos de terror, onde a cultura foi dizimada. E hoje, tão pouco tempo depois, temos seis filmes brasileiros em Cannes e ainda teremos o filme sobre o Lula [o documentário Lula, dirigido por Oliver Stone] em uma exibição especial.

Isso mostra que temos uma capacidade de regeneração muito grande, temos muita fome de viver e também capacidade de ter esperança. Parece piegas isso, mas é também uma coisa muito concreta. Tivemos um momento de terror. Quiseram dizimar a gente, mas estamos aqui, mais firmes do que nunca.

Como enxerga o fomento à cultura no governo atual? O que falta para o Brasil nesse contexto, tanto fora do país quanto internamente?

Eu acho que as políticas de fomento estão de volta. Se elas são boas ou não, ainda não deu tempo de saber. Esse filme, para você ter uma ideia, é um projeto que ganhou a lei do incentivo da Ancine em 2017. Mas aí veio o fascismo, a tentativa de dizimar a cultura e ficamos anos sem receber o incentivo. Eu já tinha desistido. Achava que nunca mais ia fazer esse filme. Fui surpreendido quando o incentivo foi aprovado. Isso é muito simbólico, mostra como com uma canetada podem acabar com tudo e também como é possível voltar com os incentivos rápido, até mesmo burocraticamente. A cultura do Brasil saiu da UTI.

Li que você disse que esse é seu filme mais engraçado e erótico. Isso é também uma resposta ao ultraconservadorismo que vivemos no governo Bolsonaro e que continua nos rondando com tanta força?

Eu acho que sexo e comédia têm a ver com a vida. Não são questões morais, são sinais de vida. Depois desses quatro anos de tanto terror e energia de morte, cheguei no set querendo mostrar cor e vida. É um filme onde explode cor, explode tesão, explode humor. É um filme muito inspirado em pornochanchadas e naqueles programas policiais que passam na TV tipo meio dia. É um policial erótico.

A pornochanchada foi uma grande inspiração para mim nesse filme, porque esse era um gênero B, mas era também uma forma de resistência à ditadura. Mostrar sexo era uma forma de confrontar o regime. Era super machista, isso não se discute. Mas tudo era machista naquela época.

A personagem principal do filme é uma mulher em um relacionamento abusivo. Então a causa feminina está presente de novo em um filme seu. O que te interessa tanto no universo das mulheres?

As mulheres sempre me interessaram, mas nesse filme é o seguinte: o relacionamento entre os personagens é de um jovem que se esconde em um motel e tem um caso com a mulher do dono de motel. Mas esse relacionamento tóxico é entre um jovem desamparado e uma mulher desamparada. A minha ideia é mostrar o desamparo dos dois e também a união. Acho que a gente tem que parar de brigar e se unir.

Eu sempre falei muito sobre mulheres. Mas agora quis tentar também entender o lado masculino, entender até o macho tóxico, algo que não tinha explorado. Nesse filme faço uma espécie de anatomia do macho tóxico. Essas pessoas foram criadas em um sistema patriarcal barra pesada. Quis tentar entender isso.

O filme se passa em um motel, uma particularidade do Brasil. O que te fascina nesse tipo de ambiente?

O motel é um lugar onde tudo é permitido. É uma arena dramatúrgica muito brasileira. Sim, é algo que só tem no Brasil. Acho que só tem uns na Colômbias, em Tóquio. Mas o motel como instituição, com essa arquitetura toda especial, isso é uma coisa nossa. Uma verdadeira invenção brasileira. E que me permitiu usar muita fantasia neste filme. Por exemplo, no motel aparecem uns bichos...

Quais são as suas expectativas para o festival?

Estou muito ansioso para ver o filme do Lula. Também estou muito entusiasmado para ver Baby, o filme do Marcelo Caetano, para ver o filme brasileiro que está na seleção de curtas, o Amarela de André Hayato Saito, e as produções de todos os brasileiros que estão aqui. Porque é uma retomada. Não é só o Motel. Estamos de bando. Minha expectativa é ver como o mundo vai reagir a esse novo Brasil. Cinema é coletivo. Não existe cinema individual. Estamos aqui juntos!

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