Ambulantes acampados no circuito Barra-Ondina pagam até para tomar banho
Vendedores do carnaval de Salvador dormem em diferentes pontos do circuito por mais de 10 dias para tentar ganhar algum dinheiro no carnaval
Salvador, 14h30 de uma terça-feira pré-carnaval. O sol queimando, do jeito que o baiano bem conhece. Alguns tiram proveito do calor para pegar uma marquinha, tomar uma água de coco e ostentar o Farol da Barra em uma selfie. Já outros estão ali apenas esperando o tempo passar. Por dias, centenas de ambulantes tomam os passeios da Barra até a Ondina, sem ver a hora de o carnaval começar.
Enfileirados e com kits padronizados de trabalho, as histórias se repetem. Trazem consigo colchões e sacolas com mudas de roupa. Esse ano, o tempo longe de casa será ainda maior: todos com quem a reportagem do Terra conversou tinham acampado em frente à Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop) para tentar se credenciar para o carnaval.
Com o processo exclusivamente online, muitos não conseguiram realizá-lo e vão arriscar vender sem a autorização. Outros, gastaram muito além do esperado.
Foi o caso de Amaurílio José, de 61 anos. Ao todo, o ambulante gastou mais de R$ 500 para conseguir a licença - que custa R$ 140.
"Foram muitos dias para conseguir essa licença. Quando eu saía de lá [do acampamento em frente à Semop], eu pagava R$ 70 para uma pessoa ficar pra mim na fila, porque eu vinha trabalhar no Rio Vermelho", conta.
O esforço acabou sendo em vão. A secretaria não abriu as portas para os ambulantes e Amaurílio só conseguiu se credenciar porque uma amiga fez o processo online para ele.
"Paguei mais R$ 30 a ela, por fora, porque ela se esforçou muito, gastou muita internet pra conseguir isso pra mim", diz.
Entre os ambulantes ouvidos pelo Terra, foram poucos os que conseguiram sozinhos se cadastrar no sistema online. Tem gente que comprou a licença da irmã por R$ 340; outra que comprou da sobrinha, desta vez por R$ 300. Houve até quem decidiu arriscar e vender sem credenciamento.
"É muita gente sem licença, mas tudo no padrão. Eles [a prefeitura] fiscalizam mais o que a gente está vendendo. Se pegam mercadoria não autorizada, eles levam tudo", diz uma ambulante, que estava em um grupo com cerca de cinco pessoas, todas sem licença.
Em coletiva durante o Furdunço, o prefeito Bruno Reis constatou a dificuldade no credenciamento dos ambulantes, mas disse que a prefeitura fez o possível diante da situação.
"O sistema caiu de manhã, porque tinham 33 mil pessoas acessando o sistema de uma vez", disse Reis. Segundo ele, o número de licenças disponíveis era de cerca de 4 mil.
"Não é fácil tomar essas decisões, mas é melhor a gente bancar a dificuldade evitando que ocorra uma fatalidade no percurso por superlotação", afirmou.
Falta o básico
Muda-se o local, mas as dificuldades seguem as mesmas. Depois da batalha em frente ao órgão municipal, é a vez de esperar pelo início da folia para trabalhar. A festa em Salvador começa oficialmente nesta quinta-feira, 16, mas desde o sábado, 11, há programação no circuito.
Ambulantes como Gabriel Jesus, de 32 anos, se queixam da falta de estrutura para tantos dias de espera. Na profissão há 31 anos, desde "que se conhece por gente", é a venda de bebidas que sustenta a casa com quatro filhos.
O ambulante montou seu kit com isopor na última sexta-feira, 10, e só deve sair de lá na Quarta-feira de Cinzas, 13 dias depois.
"A gente vai revezando. Um vai pra casa, traz comida pro [sic] outro. Às vezes, consegue um balde de água, quando as pessoas querem dar, e toma banho no banheiro público. Nem chuveirão aqui na praia tem", reclama. Outros ambulantes preferem pagar aos comerciantes do bairro pelo uso do banheiro. O custo varia de R$ 5 a R$ 6, com direito a banho.
Ambulantes começam "de pequenininhos"
A fala de Gabriel Jesus sobre a idade pode causar estranhamento. Como que, com 1 ano, ainda bebê, ele já era ambulante?
Mas é só andar pelo circuito que dá para entender seu relato. Famílias inteiras ficam acampadas, incluindo crianças, como Gabriel um dia já foi.
Uma ambulante, que preferiu não se identificar por estar sem licença, está acampada com a prima e o sobrinho de 2 anos, que vieram de Santo Antônio de Jesus, na Região Metropolitana de Salvador, para vender no carnaval. Longe de casa, para eles não existe nem a opção de deixar o circuito.
"Ele não se adaptou na creche", diz ela, que garante que o menino não dá trabalho. "Dorme de 18h da noite até o outro dia. É com o trio mesmo que ele fica, no balanço do trio".
Ao final de toda essa saga, a expectativa com as vendas no carnaval deste ano não são as melhores. Os ambulantes também se queixam do tabelamento de preços feito pela prefeitura. Esse ano, o folião vai encontrar três cervejas por R$ 12, além de outras opções de bebidas.
Numa previsão otimista, uma das ambulantes espera "conseguir segurar por dois meses" as contas. Já uma outra teme não chegar nem a R$ 1 mil, pelo grande número de vendedores no circuito.