Carnaval 'no escuro': cariocas inovam, e blocos secretos ganham as ruas do Rio de Janeiro
Coletivos deixam para divulgar horário e local dos blocos momentos antes de o bloco sair; veja saga dos foliões para curtir atrações.
"Alguém já tem alguma pista sobre o 'Sobe Mais Não Desce?'".
Era uma segunda-feira e ainda faltavam cinco dias para o bloco de carnaval em questão. As perguntas que começavam a circular em um grupo fechado do Telegram dariam o tom de como seria a epopeia nos dias seguintes para descobrir o paradeiro de um dos mais tradicionais coletivos carnavalescos de rua do Rio de Janeiro. É por lá que nós, meros mortais, conseguimos ter acesso a informações quase privilegiadas sobre o cortejo.
Não é exagero. Há cerca de dez anos, os cariocas decidiram apostar numa espécie de carnaval "no escuro", com o desfile de blocos secretos, cujas informações sobre local e horário da concentração só são divulgadas no dia que vão para a rua.
Em 2018, cumpri as diretrizes estabelecidas no protocolo para curtir a terça-feira de carnaval. Era madrugada, no até então desconhecido bloco 'Minha Luz É de LED', hoje um dos mais procurados pelos foliões. Uma bicicletada adornada com LEDs e equipada com uma simples caixa de som arrastou multidões na zona portuária. Foi quando conheci os músicos do bloco e, em seguida, fui convidado a entrar no tal grupo.
De lá para cá, continuei a ir. De repente, uma notificação respondia à pergunta: "Será em Santa Teresa". A escolha não poderia ser melhor.
A região, que já serviu de pano de fundo para os contos de Machado de Assis e Manuel Bandeira, é conhecida pelas suas vielas íngremes que ligam dois pontos tradicionais da cidade: Glória e Lapa. Por ali, o tempo, conhecido como o ente implacável da mudança, encontrou um antagonista à altura.
O bairro montanhoso mandou às favas este tecido invisível capaz de transformar tudo. As casas com traços arquitetônicos remetem à época na qual o Estado ainda levava a alcunha de Guanabara; o bondinho circula pelas curvas acentuadas nas redondezas, levando e espalhando consigo os ares dos tempos pretéritos.
Me perdi nas memórias e não me dei conta que já estávamos na quinta-feira, a 48 horas do grande dia. Agora, restava saber em qual parte sairia o 'Sobe Mais Não Desce'. Seguiram as especulações: Mirante do Rato Molhado, Largo dos Guimarães, Praça Odylo ou Bar do Mineiro?
Como as informações vêm em doses homeopáticas, um dos membros do grupo compartilhou a mensagem de um músico do bloco: "Vai sair na altura da Rua Monte Alegre, 337", disse. "Mas o horário só vamos avisar sábado de manhã".
Misturas de sentimentos vieram à tona ao ler aquela notícia. A felicidade por saber que não iria ficar perdido em Santa Teresa - como já aconteceu em outras ocasiões - dividia espaço com a ansiedade, já que o horário permanecia uma incógnita. As 24 horas que antecederam aquele sábado foram tomadas por uma expectativa tamanha que fizeram aqueles últimos momentos parecerem dias, semanas, meses.
Persistência dos Lusíadas
Sábado finalmente chegou. Ao acordar, minha reação não poderia ser diferente: acessei o grupo para me atualizar, mas não havia qualquer informação nova. Alguns foliões já estavam na região, aguardando as novidades, e decidi fazer o mesmo.
Passava das 9h da manhã, já estávamos na Glória, em um dos acessos para Santa Teresa. Trajados para o cortejo, chamávamos atenção de quem passava pela Rua Luís de Camões. O poeta português, aliás, não se surpreenderia com a nossa persistência. Autor do poema épico Os Lusíadas, Camões narrou as aventuras dos marinheiros lusitanos em alto mar até a chegada à Índia. O escritor compreenderia a nossa cruzada.
"A concentração terá início em 30 minutos", dizia a nova notificação. Alívio. Mas começava ali uma nova etapa do rito: o boca a boca.
Após a confirmação do horário e local, os integrantes do grupo começaram a compartilhar os direcionamentos para os amigos. Estes, por sua vez, repetiam o processo.
Em pouco mais de 30 minutos, pude perceber que não estávamos mais a sós. As cercanias se coloriram com as purpurinas e as malhas brilhantes do período. O trajeto de mototáxi até o local sagrado parecia uma viagem rumo a um outro Rio de Janeiro. De fato, era.
Os músicos a postos inauguraram os primeiros tons dos acordes. Os moradores locais, habituados com os cortejos, apreciavam a manifestação. Alguns juntavam-se ao festejo. A turba estava formada e o bloco começou a andar pelas vielas de Santa. Na medida que progredia, mais gente ia aderindo ao bloco.
Bloco secreto, mas democrático
Observador como o jornalismo me exige, notei ali a presença dos mais variados estratos sociais: do playboy da zona sul e Barra, passando pelo artista global, até os moleques do Morro dos Prazeres, comunidade que faz parte do bairro. Diversidade de gênero e orientação sexual também, assim como pessoas de todas as religiões e até aquelas que não creem em nenhuma. Todos iguais, como deveria ser em diferentes momentos do ano.
O relógio no celular marcava as 13h, quando o cortejo parou na Praça Odylo Costa Neto. Uma pausa justa, inclusive, para os músicos que garantiam a animação até ali. O descanso durou pouco mais de meia-hora, e logo o bloco secreto seguia pelas estreitas ruas de Santa Teresa.
O calor apertava, mas os moradores solidários ofereciam água pelo caminho. Baldes e mangueiras brotavam das sacadas e varandas, numa verdadeira benção. Aquele momento parecia uma intervenção divina - mesmo para ateus, como eu, que não acreditam em dádivas.
O céu já escurecia quando chegamos ao pico de Santa Teresa. Já passava das 17h quando paramos em uma rua sem saída, defronte à Baía de Guanabara. Começou a chover. Permanecemos todos ali e sob o comando da orquestra cantamos "Banho de Chuva" -- mais apropriado impossível. Foi quando percebi que o meu amor estava ali o tempo todo: o Rio.
Por que secreto?
Por que um bloco secreto em meio a uma das festividades mais populares do país? Fazia esse questionamento comigo mesmo desde 2014, quando este movimento começou. De lá para cá, conversando com integrantes dos cortejos, compreendi que por trás da iniciativa havia questões sociológicas e culturais profundas. O carnaval, em especial o de rua, traz consigo traços marcantes, cuja essência é justamente a subversão da ordem estabelecida e a ocupação do espaço público.
A burocratização cada vez maior sobre as manifestações, somadas às mazelas que atingem a cidade, fizeram dos blocos secretos uma morada daqueles que amam o carnaval e desejam curtir com mais segurança a essência da folia - verdadeira experiência antropológica que transcende os aspectos meramente festivos.