Com bandeira indígena, Portela alfineta Crivella e Bolsonaro
Escola azul e branco de Madureira é a última a entrar na Sapucaí neste domingo (23), 1º dia do desfile do Grupo Especial do Rio de Janeiro
Em um Carnaval recheado de sambas politizados, a Portela é mais uma escola que vai desfilar com uma mensagem crítica. A azul e branco de Madureira levanta a bandeira indígena ao lembrar aqueles que chegaram primeiro ao local que há quase 455 anos passou a se chamar Rio de Janeiro. Com o enredo 'Guajupiá, Terra sem Males', a agremiação diz em sua letra que sua aldeia é "sem partido ou facção, não tem bispo, nem se curva a capitão", em uma crítica indireta ao prefeiro do Rio, Marcelo Crivella, e ao presidente da República, Jair Bolsonaro.
Rogério Lobo, um dos compositores do samba, explica que a ideia não era se posicionar contra os políticos, e sim contar a história dos índios tupinambás. Segundo ele, o grupo não se submetia a líderes religiosos, nem servia a um cacique ou a uma hierarquia tão explícita. Porém, o compositor admite que a letra abrange esta interpretação.
"Lógico que a gente usa de uma licença poética para poder escrever. Mas o objetivo principal nunca foi fazer crítica nem ao governo municipal nem ao governo federal. Nosso objetivo é contar a história como ela é. Agora, as pessoas têm a liberdade de entender como elas quiserem", afirma Rogério Lobo.
Ele conta que a todo momento as pessoas perguntam aos sambistas se a letra foi feita para Crivella e Bolsonaro. O compositor acredita que isto ocorre devido à intolerância do governo municipal com o Carnaval e às polêmicas do governo federal com a questão indígena.
"Toda hora alguém pergunta. Mas só para ratificar: em nenhum momento nós propusemos a composição do samba pensando numa crítica explícita, até porque a sinopse do enredo não pede isso. A sinopse é bem clara com relação a questão dos indígenas antes da chegada do homem branco", diz Rogério.
A Portela é a última escola a entrar no sambódromo da Marquês de Sapucaí neste domingo (23), primeiro dia do desfile do Grupo Especial do Rio de Janeiro. Antes dela, vão passar Estácio de Sá, Viradouro, Mangueira, Paraíso do Tuiuti, Grande Rio e União da Ilha.
Confira abaixo a entrevista completa com Rogério Lobo:
Como foi o processo de construção da letra do samba com oito compositores?
Ano passado também ganhamos o samba da Portela. E tem dois compositores que são de Angra dos Reis. Então o deslocamento é um pouco dificultado por conta da distância. Assim como no ano passado, a gente fez a letra e a melodia pelo whatsapp mesmo. A gente fez algumas reuniões presenciais, logicamente, mas a discussão e a elaboração da letra e da melodia aconteceu em discussões pelo whatsapp. A gente se reunia e depois discutia algumas modificações, tanto da letra como da melodia, pelo whatsapp.
Mudou muito o samba do início ao fim? Vocês chegaram a uma versão e depois mudaram muito a letra e a melodia?
Sempre é assim. Toda elaboração de um samba é assim. A gente começa com uma ideia principal e a gente vai modificando, ou voltando pra uma ideia inicial mesmo, ou modificando tudo, colocando uma palavra diferente para dar o sentido pra frase e pra sinopse do samba.
Como foi a divisão de letra e melodia? Quem fez o quê?
Todo mundo dá pitaco em tudo. Na maioria das vezes é assim que acontece. Os compositores se reúnem e todo mundo dá opinião daquilo que acha que é o mais legal para contar a história do samba. Às vezes as discussões mais acaloradas acontecem. Aí vence a maioria.
O que você achou do enredo? Acha que vocês conseguiram representar bem o enredo no samba? Vocês se encontravam com os carnavalescos?
Não fizemos a tirada de dúvidas com os carnavalescos. Quando os carnavalescos apresentaram a sinopse, eles falaram que nós teríamos a liberdade para escrever o samba do jeito que achássemos melhor. Alguns foram até eles para poder tirar dúvidas. Nós optamos por não ir, pra nos deixarmos mais livres pra criar e compor. Porque eles sugerem algumas mudanças e tal, e isso acontece em qualquer escola. Em todas é assim que funciona. Acho que o samba conta perfeitamente a história e a sinopse do enredo. Acho que conta bem explicitamente.
Nos trechos 'Nossa aldeia é sem partido ou facção/ Não tem bispo, nem se curva a capitão', vocês fazem uma crítica direta ao presidente da República Jair Bolsonaro e ao prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella?
Não, nunca foi nossa intenção fazer isso. Quando a gente estuda a história dos índios tupinambás, a gente observa que eles não se submetiam a isso. Não existia nem na aldeia nem na etnia tupinambá uma hierarquia que eles devessem cumprir. Quando a gente fala que não tem bispo é que não existia um líder religioso. Por exemplo, se na minha oca, ou na minha região, eu resolvesse sair dali pra fazer a minha aldeia, eu tinha essa liberdade. Então não tinha essa obrigatoriedade de servir a um líder religioso indígena ou servir a um cacique, a uma hierarquia tão explícita. Todos tinham liberdade de formar uma nova tribo se quisessem. Lógico que a gente usa de uma licença poética para poder escrever. Mas o objetivo principal nunca foi fazer crítica nem ao governo municipal nem ao governo federal. Nosso objetivo é contar a história como ela é. Agora, as pessoas têm a liberdade de entender como elas quiserem. Mas o objetivo nunca foi fazer uma crítica explícita ao prefeito nem ao presidente.
Nem indiretamente? Vocês não imaginaram que ia respingar no prefeito e no presidente?
A gente sabia que isso ia acontecer. O entendimento das pessoas é diferente. Mas no nosso entendimento esses trechos compunham a parte da sinopse do samba. Acaba havendo uma certa confusão, pelo momento atual que se vive, por conta da intolerância que o governo municipal tem com o Carnaval e pela intolerância que o governo tem com a questão indígena. Toda hora alguém pergunta, também em entrevistas que a gente dá. Mas só pra ratificar: em nenhum momento nós propusemos a composição do samba pensando numa crítica explícita, até porque a sinopse do enredo não pede isso. A sinopse é bem clara com relação a questão dos indígenas antes da chegada do homem branco.
Veja a letra e ouça o samba da Portela abaixo:
Índio é Tupinambá
Índio tem alma guerreira
Hoje meu Guajupiá é Madureira
Voa águia na floresta
Salve o samba, salve ela
Índio é dono desse chão
Índio é filho da Portela
Índio é Tupinambá
Índio tem alma guerreira
Hoje meu Guajupiá é Madureira
Voa águia na floresta
Salve o samba, salve ela
Índio é dono desse chão
Índio é filho da Portela
Clamei aos céus
A chama da maldade apagou
E, num dilúvio, a Terra ele banhou
Lavando as mazelas com perdão
Fim da escuridão
Já não existe a ira de Monã
No ventre, há vida, novo amanhã
Irim Magé já pode ser feliz
Transforma a dor
Na alegria de poder mudar o mundo
Mairamuana tem a chave do futuro
Pra nossa tribo lutar e cantar
Auê, auê, a voz da mata, okê, okê arô
Se Guanabara é resistência
O índio é arco, é flecha, é essência
Auê, auê, a voz da mata, okê, okê arô
Se Guanabara é resistência
O índio é arco, é flecha, é essência
Ao proteger Karioka
Reúno a maloca na beira da rede
Cauim pra festejar, purificar
Borduna, tacape e ajaré
Índio pede paz, mas é de guerra
Nossa aldeia é sem partido ou facção
Não tem bispo, nem se curva a capitão
Quando a vida nos ensina
Não devemos mais errar
Com a ira de Monã
Aprendi a respeitar a natureza, o bem viver
Pro imenso azul do céu
Nunca mais escurecer
Pro imenso azul do céu
Nunca mais escurecer