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Mangueira: "Messias de arma na mão" não é só sobre Bolsonaro

Em entrevista ao Terra, compositora do samba-enredo da escola em 2020, Manu da Cuíca, explica letra sobre 'Jesus brasileiro' da favela

12 fev 2020 - 09h00
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A Estação Primeira de Mangueira chega para mais um desfile com um dos sambas mais críticos e polêmicos do Carnaval. Depois de retratar negros e mulheres esquecidos da nossa sociedade em 2019, homenageando, inclusive, a ex-vereadora Marielle Franco, a escola agora vai narrar a vida de um Jesus Cristo brasileiro, morador do morro da Mangueira, no Rio de Janeiro. O samba gerou reação de setores conservadores da sociedade, mas foi abraçado pela comunidade.

“A gente tentou buscar a mensagem de alguém que nasceu pobre, lutou por justiça e foi torturado e assassinado pelo Estado”, explica, em entrevista exclusiva ao Terra, uma das compositoras da obra, Manuela Oiticica, mais conhecida como Manu da Cuíca, de 35 anos.

Compositora do samba-enredo da Mangueira de 2020, Manu da Cuíca comemora na quadra ao lado de Luiz Carlos Máximo, que divide a autoria da obra
Compositora do samba-enredo da Mangueira de 2020, Manu da Cuíca comemora na quadra ao lado de Luiz Carlos Máximo, que divide a autoria da obra
Foto: Thiago Mattos/ Mangueira/ Divulgação

Ela também assinou o samba campeão no ano passado, com o enredo 'História para ninar gente grande', que resgatou os “heróis de barracões”. Agora, com o enredo 'A Verdade Vos Fará Livre', falando sobre o “Jesus da Gente”, como diz a letra, Manu vai tentar o bicampeonato ao lado da escola. E ao lado do marido também, já que Luiz Carlos Máximo divide com ela a autoria do samba desta vez. “Antes de qualquer conversa, a gente falou: 'Olha, esquece 2019'”, conta a compositora.

Depois do sucesso do ano passado, eles tinham o receio de que a expectativa pela qualidade do samba de 2020 atrapalhasse a criação da nova obra. Por isso, a estratégia foi pensar que estavam apenas compondo um samba como qualquer outro.

“Acho até que o samba de 2020 é mais querido por quem está no dia a dia do desfile, porque também diz respeito à subjetividade da vida das pessoas. Não sinto como se ficasse na sombra. Não é uma franquia do primeiro samba”, diz Manu.

Além de retratar um Jesus diferente do padrão criado pela Igreja Católica, a letra também gerou polêmica por parecer fazer uma referência ao presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. Porém, a compositora afirma que o trecho "Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/ Nem messias de arma na mão" não é uma crítica direta a Bolsonaro, mas sim a supostos heróis de nossa história que surgem com soluções fáceis e agem com violência e autoridade, simplificando questões complexas.

“Cristo é visto como um messias por outras religiões. Então, tem esse lugar. Acho que tem muitos messias de arma na mão em momentos de mais contradições, mais dureza no corpo social”, aponta.

Uma associação conservadora católica, o Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, divulgou um abaixo-assinado contra a Mangueira em seu site que, até o fechamento deste texto, possuía mais de 112 mil apoiadores. Na petição, o grupo diz que sente “repulsa por esse samba de 2020 que conspurca a figura sagrada de Nosso Senhor Jesus”.

Manu diz que imaginava que poderia haver algum tipo de reação por parte da sociedade. “No mundo em que a gente vive, a gente espera por tudo. A gente faz um enredo falando sobre partilha, fraternidade e tolerância, e algumas pessoas se revoltam contra isso. Não acho isso concebível”, contesta ela.

Ela garante que não há qualquer tipo de receio de censura ao samba. “Querem censurar o quê? A tolerância? O amor? A arte? Uma coisa é gostar ou não gostar, é direito de cada um. Agora, a gente não pode achar normal quem diz que está ofendido porque o Jesus tem a cara do Brasil”, argumenta.

Mangueira realiza ensaio na quadra
Mangueira realiza ensaio na quadra
Foto: Leo Queiroz/ Mangueira/ Divulgação

A compositora conta ainda que a montagem do barracão estava sendo acompanhada por setores da Igreja e que a escola tem recebido apoio de vários líderes religiosos, de diversas religiões, como evangélicos, católicos, protestantes, do candomblé e umbanda. Segundo ela, o samba, inclusive, vem sendo cantado em missas e em cultos.

“A gente também não está trazendo nenhuma mensagem nova. A gente fala 'Mangueira vão te inventar mil pecados'. É isso, estão inventando”, afirma, continuando a citar o refrão: “‘Mas eu estou do seu lado e do lado do samba também'. Isso é saber que tem muito mais gente que está do lado dessa mensagem em forma de samba”.

Confira a entrevista completa abaixo:

Você gostou do resultado final do samba?

Gostei bastante. Com relação às mudanças depois da disputa de samba, acho que está ali o enredo, a perspectiva poética que é importante de se levar pra avenida. As alterações propostas pela diretoria. Conversou com a gente, sugestões que fortaleceram o samba-enredo para aquilo que ele se presta, um desfile. Ele pode ter outros caminhos. A gente vai ter um samba cantado por milhares de vozes, um espetáculo que não tem no ensaio geral. Todos os ajustes fortaleceram isso.

Como foi o processo de inspiração para a letra desse samba?

Foi difícil porque é uma história já cantada e contada várias vezes. Não tem nenhuma novidade a história da vida de Cristo no que diz respeito aos seus fatos. Então, a gente tentou buscar muito mais a mensagem, onde tá a força dessa mensagem, que faz 2020 anos depois, uma referência pra tanta gente, uma referência na história de alguém que nasceu pobre, que lutou por justiça, que lutou contra os mercadores da fé, contra os intolerantes, contra os preconceituosos... E que foi torturado e assassinado pelo Estado. Então, a despeito de discrepância de tempo, tentamos ver onde essa mensagem está viva pulsando pra gente o tempo inteiro. Ter entendido que a gente estava falando de "Jesus da gente" foi um ponto a partir do qual se desenrolou melhor a letra. Quando a gente fez a primeira estrofe, que diz "Eu sou da Estação Primeira de Nazaré [...]", vimos que conseguimos trazer uma síntese de como é esse Jesus. Essa parte estava no meio do samba, aí o [Luiz Carlos] Máximo sugeriu começar o samba assim e na 1ª pessoa, porque estava na 3ª. Aí serviu de bússola pra gente continuar.

O trecho "Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/ Nem messias de arma na mão" é uma crítica direta ao presidente Jair Messias Bolsonaro?

O samba, como as outras manifestações artísticas, está na sociedade e faz parte de tabuleiro de contradições e tensões. Cristo é visto como um messias por outras religiões. Então, tem esse lugar. Acho que tem muitos messias de arma na mão em momentos de mais contradições, mais dureza no corpo social. Não faltam os que têm fáceis soluções, sejam elas pela violência, pela autoridade, por simplificar qualquer coisa. Tem muita a ver com esse momento no mundo. Cristo partilhou o pão, e isso é muito mais do que partilhar o pão. Tem que partilhar o pão, o trigo que sai do pão, a terra onde tá o trigo... Se não você não tem de fato uma partilha. A gente tem um planeta agonizando. E não tem futuro se a gente não fizer essa partilha. Acho que vale pras condições ambientais, o dia a dia, os recursos naturais são finitos. Tem gente que tem renda de um continente inteiro. Não é possível que alguém não ache que isso está absolutamente errado do ponto de vista humano.

Então, esse trecho é pedido também para sermos mais humanos, darmos mais amor, e investirmos menos em armas na sociedade?

Mais do que isso, embora isso também. Mas não vai ser pelo autoritarismo, pela repressão e pela violência que a gente vai construir uma sociedade melhor. As soluções não vão passar por aí. Passam muito mais por partilhas do que por signos de repressão e silenciamento.

Uma associação católica, o Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, está organizando um abaixo-assinado contra a Mangueira, e estuda entrar com ação judicial por causa do samba-enredo. Como vocês receberam essa notícia?

No mundo em que a gente vive, a gente espera por tudo. A gente faz um enredo falando sobre partilha, fraternidade e tolerância, e algumas pessoas se revoltam contra isso. Esse é o mundo que nós temos. Não acho isso concebível. Mas a gente tem recebido muito apoio de vários líderes religiosos, de diversas religiões, evangélicos, católicos, protestantes, do candomblé, umbanda... Então, a gente tem recebido muito apoio. Mais do que apoio. A gente vê o samba sendo cantado, ou sendo feitas referências a ele em missas e em cultos. A gente também não está trazendo nenhuma mensagem nova.  partilha está lá na história. A gente fala 'Mangueira vão te inventar mil pecados'. É isso, estão inventando. 'Mas eu estou do seu lado e do lado do samba também'. Isso é saber que tem muito mais gente que está do lado dessa mensagem em forma de samba.

Então, você acha que não há risco de censura?

Até onde eu acompanhei o barracão, a montagem desse barracão estava sendo vista de perto por setores da Igreja, que estavam dando aprovação. E querem censurar o quê? A tolerância? O amor? A arte? A mensagem, inclusive de fé, no sentido mais humano dessa palavra? Vai censurar a dignidade, a humanidade, a partilha? E a gente vai tratar isso como se fosse normal? Acho que a gente tem que evitar ver normalidade onde há anomalias. Uma coisa é gostar ou não gostar, é direito de cada um. Agora, a gente não pode achar normal quem diz que está ofendido porque o Jesus tem a cara do Brasil. A gente tem que tirar isso do campo da normalidade, porque isso não faz parte de um escopo do razoável.

Existia uma cobrança pra ficar melhor ou pelo menos do mesmo nível do samba do ano passado?

Quando a gente começou a fazer o samba, a gente teve muito esse medo, primeiro nosso. Antes de qualquer conversa, a gente falou: 'Olha, esquece 2019'. Ali teve um outro caminho, foi outro momento. Foi um samba que ganhou muitos espaços, mostrando que o samba em geral pode e deve ocupar vários lugares, porque é um gênero riquíssimo. Em sala de aula, nas rodas de samba, nas redações de escola, em manifestações... Mas, enfim, quando a gente começou a fazer esse, a gente falou pra esquecer tudo isso. Então, a gente fez com a tranquilidade pensando que estávamos fazendo um samba e ponto. Acho que existia uma expectativa das pessoas, mas o samba de 2020 eu acho até que ele é mais querido por quem está no dia a dia do desfile, porque acho que também diz respeito à subjetividade da vida das pessoas. Não sinto como se ficasse na sombra. E, principalmente, ele não é uma franquia do primeiro samba. Acho que não tem cara disso. Nunca vi ninguém achando que era uma versão do samba do ano passado.

Veja a letra e ouça o samba-enredo da Mangueira de 2020:

“Eu sou da Estação Primeira de Nazaré

Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher

Moleque pelintra no buraco quente

Meu nome é Jesus da Gente

Nasci de peito aberto, de punho cerrado

Meu pai carpinteiro, desempregado

Minha mãe é Maria das Dores Brasil

Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira

Me encontro no amor que não encontra fronteira

Procura por mim nas fileiras contra a opressão

E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão

E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão

Eu tô que tô dependurado

Em cordéis e corcovados

Mas será que todo povo entendeu o meu recado?

Porque, de novo, cravejaram o meu corpo

Os profetas da intolerância

Sem saber que a esperança

Brilha mais na escuridão

Favela, pega a visão

Não tem futuro sem partilha

Nem messias de arma na mão

Favela, pega a visão

Eu faço fé na minha gente

Que é semente do seu chão

Do céu deu pra ouvir

O desabafo sincopado da cidade

Quarei tambor, da cruz fiz esplendor

E ressurgi pro cordão da liberdade

Mangueira

Samba, teu samba é uma reza

Pela força que ele tem

Mangueira

Vão te inventar mil pecados

Mas eu estou do seu lado

E do lado do samba também”

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Fonte: Redação Terra
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