'Nenhuma escola vive sem a ala da força', diz empurrador de carros alegóricos
Conheça a história do carioca Fernando Rodrigues, de 49 anos, uma das forças invisíveis do carnaval do Rio de Janeiro
Depois de um ano de preparação para o carnaval, finalmente é hora de desfilar na Marquês de Sapucaí, na região central do Rio de Janeiro. Os componentes das escolas de samba cantam, dançam, e pouco mais de uma hora depois, respiram aliviados ao cruzar a última linha da avenida. A ala da força, não. Enquanto todos comemoram a apresentação, os profissionais encarregados por empurrar os carros alegóricos trabalham ainda mais.
É correria para cá, desmonte de alegoria para lá. As montagens pesadas precisam sair da Praça da Apoteose com agilidade. Tudo tem que acontecer de maneira rápida e cuidadosa, para não danificar os carros e não prejudicar a pontuação da agremiação. Não dá tempo nem para abrir aquele sorriso de satisfação pelo trabalho feito.
Uma das mãos que contribuem para essa força é a de Fernando Rodrigues, de 49 anos. Atuante na função desde 2001, ele diz ao Terra que não tem tempo de sentir cansaço e garante: "Nenhuma escola vive sem a ala da força".
Esta é a segunda matéria da série de reportagem 'Invisíveis no Carnaval', que conta a história de profissionais negligenciados, mas essenciais para a folia em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Salvador, no Recife e em Olinda.
Amor que empurra para frente
Quem assiste aos desfiles das escolas de samba se encanta com os carros alegóricos gigantes, as rainhas de bateria exuberantes e a coreografada ala das baianas. Os componentes, claro, são essenciais para o espetáculo acontecer. Porém, se reparar bem, existem pessoas uniformizadas com as roupas de suas agremiações correndo de um lado para o outro.
Geralmente, são os integrantes da ala da força, garantindo que o percurso seguirá com tranquilidade. Se não correr 100% bem, não existe tempo para entrar em pânico. Eles precisam ir até a alegoria defeituosa e usar os braços para fazer o carro atravessar os 700 metros de avenida sem atrapalhar o resto do desfile.
Fernando Rodrigues já passou pela ala da força de várias agremiações e, hoje, contribui com a Grande Rio. Ele conta que, mesmo torcendo para dar tudo certo, os profissionais devem estar sempre preparados para os contratempos. "Se eu estou lá na frente e o carro lá atrás quebrou, tem que sair todo mundo correndo pela lateral e empurrar 'no braço', do meio da avenida até o final", explica.
Em todo o período que atua na ala, ele conta que já viu até situações mais extremas e graves.
Já vi carro pegando fogo! Aconteceu de estarmos tirando o carro, ele encostar em um fio e começar a pegar fogo no meio da rua, quase matando o motorista. Só a gente que vê essas coisas" - Fernando Rodrigues
Além de prestar atenção nos possíveis contratempos, o pessoal da força também precisa cantar o samba-enredo e sorrir durante todo o desfile. Isso não é um problema para Fernando, apaixonado pelo carnaval.
Ele explica que trabalha com pintura e obra, mas faz questão de atuar na força durante a folia. "Trabalho por amor, mesmo! Isso aqui é uma coisa que eu gosto de fazer. Ir por necessidade financeira é bom. Mas é melhor fazer e ganhar o dinheiro sem a necessidade, sem o desespero", justifica.
"Eu não gosto muito de necessitar totalmente disso, não. Por isso tenho meu trabalho fora e venho aqui só por um momento". Atualmente sem emprego fixo, ele afirma que, quando está empregado em outra função, precisa conciliar a rotina com o carnaval: "Não paro meu trabalho para fazer isso. Tenho que dar conta dos dois!".
Quando não está trabalhando na ala da força, Fernando 'tira' de R$ 2.000 a R$ 2.500 por mês com obra e pintura. Na função carnavalesca, ele garante que a renda dobra. Hoje, morando com a mãe, o carioca conta que tem três filhos para sustentar e a ala da força é uma alternativa para a entrada de dinheiro.
Com disposição e por necessidade, Fernando já chegou a trabalhar em três escolas em um só carnaval e arruma jornada dupla até para os amigos na folia.
É uma 'graninha' que ajuda. As vezes consigo duas escolas para um colega desfilar. Dá uma ‘graninha’ legal. E se vier o desfile das campeãs, melhor ainda! (risos)" - Rodrigues
Até o último segundo
Mesmo trabalhando, Fernando se diverte no desfile da escola do coração, a Grande Rio. A cabeça preocupada com os carros alegóricos e o andamento do espetáculo dão espaço para a emoção quando é hora da agremiação entrar na Sapucaí. "Quando toca a sirene na avenida, na hora que a gente vai entrar, arrepia tudo."
Para ele, não existe experiência que tire o tremor das mãos e o brilho nos olhos nesse momento. "Me sinto assim todos os anos, desde 2001. Se não arrepiar, não tem mais graça. Entramos em uma adrenalina, uma expectativa enorme. Não tem jeito", se emociona.
O nervosismo fica por conta da emoção de atravessar o maior palco a céu aberto do mundo. No entanto, a mente segue tranquila sobre o que é preciso fazer. "Nós, da força, estudamos muito os carros alegóricos para entender o caminho que faremos com eles e para não dar nada errado. Esquematizamos isso por muito tempo, até chegar o dia", detalha.
Os maiores e mais complexos carros alegóricos das escolas de samba são, hoje, motorizados e contam com condutores durante todo o percurso. Por conta disso, o trabalho da ala da força parece ter ficado mais leve. Mas só parece mesmo. O 'bicho pega' é no final do desfile.
Quem garante é o próprio Fernando. Sem titubear, o carioca ressalta que a parte mais pesada vem na dispersão. "Tiramos as alegorias e tudo que atrapalha o carro da frente. Temos que tirar nas laterais do carro, colocar em cima do caminhão e trazer esse carro em perfeito estado, para caso de voltarmos campeões. As alegorias têm que voltar intactas", explica.
Além da rapidez do desmonte dos carros, os profissionais da ala da força precisam se preocupar com a integridade física de quem está ali, na Praça da Apoteose. No ano passado, a menina Raquel Silva, de 11 anos, morreu ao ser esmagada por um carro alegórico da escola Em Cima da Hora, integrante da Série Ouro.
Para evitar acidentes, a Riotur criou um plano de contingência na dispersão do sambódromo. A saída passou a ser cercada e ganhou reforço na iluminação. Outra medida foi o aumento do tempo para a saída dos carros alegóricos e a extensão das interdições de trânsito no entorno da Sapucaí.
A força da comunidade
Se engana quem pensa que a ala da força só aparece nos dias dos desfiles para 'dar uma mãozinha' com os carros alegóricos. Fernando faz questão de dizer que todos estão inseridos na comunidade da escola de samba e, junto aos outros componentes, ensaiam muito para botar o carnaval na Avenida.
“A gente não só trabalha, a gente vive a quadra! Entramos nessa desde o corte de samba, aí começam os ensaios técnicos e também vamos, unimos a ala da força para ensaiar juntos… Aí de agosto para cá até o carnaval estamos toda semana na quadra”, compartilha a rotina.
Fernando conta com orgulho que foi uma das mãos que ajudou a Grande Rio a ganhar o primeiro título em 2022. Com o enredo Fala, Majeté! As sete chaves de Exu, a escola de Duque de Caxias foi campeã do grupo especial. "Primeira vez que ganhei no carnaval e o nosso trabalho foi essencial para a Grande Rio vencer."
O carioca não tem dúvidas em afirmar que nenhuma escola de samba sobrevive sem a ala da força. Para Fernando, eles dão uma ajuda e tanto no leva e traz dos carros alegóricos com técnica e cuidado. "Fora o serviço extra que a gente faz. Muitas vezes buscamos e levamos fantasias, de lá para cá e de cá para lá", detalha.
Serviço é serviço, mas o amor fala mais alto quando se trata da agremiação preferida. O integrante da força da Grande Rio defende com veemência os comentários negativos que a escola recebe. "Quem fala que a Grande Rio não é uma escola de comunidade é maluco, gente! Temos pouquíssimas alas que são pagas, o resto é tudo da comunidade", exalta.
Mesmo com o coração entregue à invocada de Caxias, Fernando não esquece a emoção de ter visto sambas históricos bem de pertinho. Para ele, a Sapucaí 'fala' e têm desfiles que você já sabe que serão campeões antes mesmo da apuração.
"Lembro que senti isso com o Salgueiro, em 1993, com Peguei um Ita no Norte. Ali não tinha como, não. E o último da Grande Rio! Foi demais ver aquele povo cantando, gritando alto. Foi uma das vezes que desfilei que mais arrepiou", se emociona.
Assim como Fernando Rodrigues, existem várias outras mãos e histórias de vida que fazem a força do carnaval carioca. A folia não acontece sozinha, mas em comunidade. O espetáculo visto por milhares de brasileiros e estrangeiros a cada fevereiro é empurrado por centenas de braços que estão ali por necessidade e por amor.
Mesmo quando a escola sai da avenida e todos comemoram o desfile, eles ainda estão lá, trabalhando com rapidez para tirar os carros do sambódromo e dar espaço às novas emoções que surgirão com os desfiles das próximas agremiações. E as próximas, e próximas… Até a 12ª escola cruzar a linha final da Marquês de Sapucaí.