Voz da Sapucaí, leitor das notas diz: "sou papagaio de pirata"
Famoso pelo bordão "só se for agora", Jorge Perlingeiro trabalha na organização dos desfiles e no anúncio das escolas de samba
A cada Quarta-Feira de Cinzas, o apresentador Jorge Perlingeiro torna-se o centro das atenções do Carnaval carioca. Ele é o mensageiro de boas e más notícias para as escolas de samba. Há 25 anos, Perlingeiro é a voz característica e marcante que anuncia as notas dos desfiles. O forte, grave e enfático “Nota Dez” é uma das grandes marcas da apuração das notas. Aos 68 anos de idade, o apresentador completa, este ano, 42 anos trabalhando com o Carnaval. Somente em 2013, ele vai ler 400 notas do Grupo Especial, e mais 760 do Grupo de Acesso. O apresentador conta que é comum ser questionado pelo público, nas ruas, a respeito das notas lidas na apuração. Segundo ele, é algo parecido com o ator que é confundido com o vilão que interpreta na novela.
“As pessoas passam na rua e perguntam ‘por quê você veio dar 8 para minha escola?’. Eu não dou nada, amigo. Sou papagaio de pirata, eu leio o que está escrito” relata Perlingeiro, lembrando que, na véspera do Carnaval, o que não faltam são pedidos curiosos por parte dos torcedores.
“Acontece muito agora de alguém chegar e pedir para eu não deixar de dar Nota Dez para determinada escola”, acrescenta.
Ele admite que utiliza uma interpretação dramática na leitura das notas, para dar mais emoção à apuração. “Eu interpreto o que está escrito, senão, coloca qualquer um lá e lê. Tenho que dar uma entonação de espetáculo. As pessoas falam que sou o cara das paradinhas, porque tenho umas paradinhas estratégicas. Tenho o resultado ali, toda hora o computador manda o posicionamento. E quando tem uma escola grande que não vai levar um dez, que é o aguardado, aí eu tenho que criar um espetáculo, para que os que vão lucrar com isso vibrem.”
Perlingeiro é também diretor social da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). Famoso pelo bordão “Só se for agora”, ele trabalha na organização dos desfiles e no anúncio das escolas de samba que vão passar, de sexta a segunda-feira, na Passarela do Samba. Jorge Perlingeiro vive tanto o Carnaval que, durante os dias de folia, mora, literalmente, na Marquês de Sapucaí. O diretor da Liesa se muda de mala e cuia para um contêiner executivo que é colocado na Passarela do Samba, com toda a estrutura para permanecer ali por quatro noites. De sexta a terça-feira, Perlingeiro muda de endereço.
“Tenho que ter o conforto necessário, com uma cama de casal, uma geladeira, uma TV, um ar condicionado, banheiro com chuveiro. Um contêiner que já vem aparelhado. Fico sozinho, só vejo a família à noite, no desfile. Fico morando lá, meu endereço vira avenida Marquês de Sapucaí, sem número”, afirma.
Essa operação é repetida há dez anos, depois de um acidente sofrido quando voltava para casa, na Barra da Tijuca, zona oeste, após sair do desfile, já pela manhã. Quando passava por São Conrado, na zona sul, dormiu no volante e bateu levemente com o carro. “Não estava correndo muito, e foi só um susto. Mas foi um sinal de que virar a noite e voltar dirigindo era uma rotina perigosa”.
O apresentador só volta para casa na terça-feira, e até a hora da apuração das notas dos desfile, na tarde da Quarta-Feira de Cinzas, fica praticamente incomunicável. Perlingeiro explica que, com a voz desgastada, a receita, além de muito gengibre, é poupá-la.
“Vou para casa e me isolo. Não falo com ninguém. Aí, é ficar enclausurado mesmo. Não atendo telefone, não converso com ninguém. Não consigo falar. A voz está prejudicada pelo cansaço”, comenta.
Durante as mais de duas décadas em que lê as notas da apuração, Perlingeiro recorda que uma nota baixa dada para a Porto da Pedra, escola de São Gonçalo, foi uma das mais marcantes de sua carreira. Na ocasião, a vermelho e branco precisava de um 8,9 para confirmar participação no Desfile das Campeãs. O locutor confidencia não ter acreditado quando abriu o envelope e viu um 8,4.
“O que eu vou fazer? Quando anunciei, aquilo veio abaixo. Ficou uma coisa na avenida. O presidente da Porto da Pedra veio até o palco, e falou baixinho no meu ouvido ‘Você leu essa nota errada, né?’. Respondi ‘presidente, gostaria muito de ter errado, mas é a nota verdadeira’” .
Perlingeiro garante que só toma conhecimento das notas no momento em que senta para anunciar a avaliação dos jurados para o público. Isso, inclusive, cria situações complicadas para o locutor, diante da dificuldade no entendimento da grafia de alguns dos julgadores.
“Às vezes, o cara tem letra de médico, é complicado. Quando vejo a nota, tenho que estar muito atento. A sorte é que o julgador tem que dar a nota também por extenso”, comenta.
Perlingeiro começou a carreira há 44 anos, quando foi trabalhar com seu pai, Aérton Perlingeiro, que tinha um popular programa de auditório nas tardes de sábado, na TV Tupi. Formado em Direito, foi chamado pelo pai para ajudar na parte burocrática dos negócios, já que tinha especialização em contabilidade. Acabou indo para frente das câmeras, no quadro “Sábado Feliz”, que tinha brincadeiras e prêmios. Três anos depois, assumiu uma nova etapa do programa. Era o início do “Samba de Primeira”, voltado, especialmente, para o gênero musical, e que está até hoje no ar, na rede CNT, aos domingos, às 20h30. Toda a produção do programa é independente, e Perlingeiro se orgulha em manter o “Samba de Primeira” nesses moldes.
“Na Tupi, era funcionário no início, foi a única carteira assinada que tive na vida. Quando a TV entrou em dificuldades, nos chamaram e nos deram baixa, e passei a ser locatário, o que sou até hoje. Sou o produtor independente mais antigo do Brasil, ninguém mais paga para trabalhar há 40 anos. Compro horário, contrato equipe, mantenho agência, funcionários, produzo, dirijo, coordeno, apresento e vendo”, observa Perlingeiro, que revela certa incerteza em relação ao futuro do programa, cujo contrato acaba esse mês.
“Estou aguardando para a gente conversar. No mercado comercial, temos que ter parceiros. Perdi alguns importantes nos últimos tempos. Não quero pagar para trabalhar, não tenho mais idade para isso. Minha vaidade não me dá esse direito de colocar do meu bolso para poder manter um programa vivo”, salienta.
Com tantos anos de carnaval, Perlingeiro destaca o histórico desfile da Beija-Flor em 1989, cujo enredo “Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia”, trouxe diversos componentes fantasiados de mendigo, além da escultura do Cristo, censurada pela Justiça, a pedido da Igreja Católica.
“Foi um momento de perplexidade na avenida. Eu não acreditava que pudesse ter um Carnaval daquele, com tanto mendigo num desfile. Não sei se uma escola de pequeno porte tivesse feito aquele enredo, teria ganho ou até permanecido no grupo. A genialidade e a ousadia do Joãosinho Trinta é que fez aquilo ali”, afirma.
Torcedor da Unidos de Vila Isabel, escola da qual foi diretor nos anos 80, Perlingeiro chama atenção de grandes escolas, como Mangueira e Portela, que não vêm conquistando títulos nos últimos anos. Ele ressalta que a Liesa distribui recursos financeiros semelhantes às escolas.
“É como meu time, o América. Ah, foi campeão lá atrás... Foi. Teve tradição, não tem mais. Com o samba é a mesmo coisa. Se as administrações deixarem as escolas caírem, elas não se erguem mais”.