Vocabulário dos ritmos: entenda a diferença entre axé, pagode, samba e arrocha no Carnaval de Salvador
Há quem diga que, para distinguir e definir os estilos da música baiana, somente sendo músico ou pesquisador. No Carnaval, então, a mistura de sons é ainda mais homogênea, e fica mais difícil entender se o que está tocando é samba, pagode, arrocha ou axé music, ritmos próprios da folia. Isso até mesmo para quem é da terra.
Se o folião é turista, a tarefa fica ainda mais complicada. Isso acontece porque, na música popular baiana, os músicos têm sua forma própria de tocar os instrumentos, na escolha dos arranjos, na execução do tempo e nas letras.
Mesmo em ritmos conhecidos no país inteiro, como o samba ─ que, vale lembrar, nasceu na Bahia.
Mas dá para traçar um padrão. Segundo a cantora Daniela Mercury, para funcionar na Bahia o que vale na música é a cadência.
"O baiano gosta de dançar. Se der para ele dançar, ótimo. Se não, ele rechaça. É impressionante. Só funciona se tiver suingue", diz ela, em entrevista à BBC Brasil.
Esse ritmo dançante, aliado à cultura de matriz africana e os estilos incorporados ao longo dos anos, formam a identidade da música baiana.
Entenda as principais características de cada ritmo:
Samba
O samba da Bahia segue o mesmo padrão do samba de roda, que nasceu por volta de 1860 na região do Recôncavo Baiano, no interior do Estado.
É um pouco diferente do 'irmão mais novo', o samba carioca, que foi popularizado no Rio de Janeiro com as escolas de samba e com o samba-exaltação.
A principal diferença no som vem do fato de que, na Bahia, o ritmo tem uma influência maior de instrumentos utilizados nas religiões de matriz africana, como os atabaques. E outra coisa muito importante: no samba baiano, não há cuíca.
"O nosso samba é mais próximo do samba de roda. O samba de Riachão, de Batatinha. Mas temos diferenças na execução, sobretudo do tempo, que favorece a dança com rebolado. Dizem que o baiano dança samba com a bunda, e que o carioca dança com o pé", diz o jornalista, DJ e produtor Luciano Matos.
Pagode
O pagode baiano é 'filho' do samba, mas incorpora, também, instrumentos eletrônicos, misturas com a batida do funk e outros ritmos dançantes.
De acordo com a jornalista e youtuber Maíra Azevedo, especializada em música e entretenimento, são os elementos acústicos de origem africana que diferenciam o samba do pagode baiano.
"O samba se restringe à percussão. Tem a gonga, alguns usam o atabaque, o pandeiro. Mas sem qualquer instrumento eletrônico. Isso é samba", define.
Mas se você tem dúvida se o que está ouvindo é pagode, Azevedo indica observar se as pessoas ao redor estão dançando igual.
"Se a música é coreografada, é pagode", define.
Basta lembrar dos hits do grupo É O Tchan - mesmo quem não gosta sabe até hoje as coreografias mais importantes.
O músico Jonga Cunha, que é autor de Por Trás dos Tambores, livro sobre os bastidores do axé music, tem uma teoria sobre a diferença entre o pagode baiano e o do eixo Rio-São Paulo.
"O pagode do Rio é um pouco mais lento, o nosso é mais dançante por influência do samba de roda, da conga e dos cânticos do candomblé. Quando toca, não fica ninguém parado."
"Aí dizem que as letras são ruins. Mas são ruins no Brasil todo, o pagode baiano é uma maravilha", defende.
Maíra aponta que o pagode ainda é muito marginalizado, dentro e fora da Bahia.
"Existe uma discriminação muito grande porque algumas letras são sexualizadas, até mesmo explícitas", diz.
E, de fato, mesmo o maior fã de pagode concorda que, na Bahia, existe o termo 'baixo astral' para classificar as músicas de cunho muito sexual ou que sejam ofensivas às mulheres.
Mas Maíra defende que o preconceito não para por aí.
"A maioria das grandes bandas, mesmo as do alto escalão, veio de bairros extremamente pobres de Salvador. É o caso do Psirico, que vem do Engenho Velho de Brotas; Harmonia do Samba, de São Caetano; e Leo Santana, de Boa Vista do Lobato. E tudo que vem da periferia é tratado com desdém", opina.
Luciano Matos concorda. "Acho que hoje o pagode e o arrocha encontram o mesmo tipo de preconceito que o Olodum teve no final dos anos 1980 e 1990. É o que as pessoas de classe média e alta veem como música de pobre, música de empregada doméstica", critica.
Arrocha
Esse pode ser o grande motivo que impediu que o sertanejo universitário, que virou moda em boa parte do Brasil, tomasse conta da Bahia.
Com influência do forró e das músicas de seresta, o arrocha é a autêntica música de dor de cotovelo. E, assim como os outros ritmos, também é dançante.
"O latino-americano adora cantar o amor que perdeu em vez do amor que tem ou que vai ganhar. É uma música de dor e é musica de amor, também. Acho que é por isso que o sertanejo universitário está na moda. Não 'pega' tanto aqui na Bahia porque temos uma música local muito forte, que é o arrocha, que já faz sucesso há bastante tempo", diz Jonga Cunha.
Daniela Mercury acredita que a música estilo dor de cotovelo já está incorporada na cultura baiana.
"Dentro do universo da 'sofrência' você tem o arrocha, o groove arrastado do pagode e o próprio samba de roda. Esse sertanejo novo é uma variação do forró nordestino, o mesmo do arrocha, que começou a fazer sucesso. E já são velhos conhecidos nossos. Não temos preconceito e não temos limite para essa mistura."
Axé music
Talvez o axé music seja o que mais divide artistas, pesquisadores e o próprio folião baiano.
Para Luciano Matos, não é um ritmo, mas um estilo com vários ritmos.
Para Daniela Mercury, é um gênero musical, que possui influências diversas e múltiplas adaptações.
Já Jonga Cunha acredita que o axé é um movimento musical, como a Tropicália e a Bossa Nova.
Todos eles, no entanto, concordam que o axé pode ser visto como a representação musical do Carnaval da Bahia.
"Na verdade, o nome axé é um guarda-chuva para o universo infinito de possibilidades rítmicas. Então, o axé não é um ritmo, é um gênero musical, que é muito certo para o Carnaval em cima do trio, e que incorpora todos os ritmos mundiais, entre rock, reggae, funk... Desde que tenha o suingue", resume a cantora, que se tornou a primeira representante nacional do estilo.
O axé foi concebido - ainda sem esse nome - na década de 1950, quando Armandinho, Dodô e Osmar misturaram o frevo pernambucano com o galope, derivado do forró, e a guitarra elétrica. Mais tarde, vieram as influências de ritmos afro-brasileiros como o samba-reggae, e o ijexá do grupo Ilê Ayiê.
Mas a evolução musical continuou para além disso. "Artistas como Luiz Caldas e Geronimo juntaram outras referências, como ritmos latinos. Tanto é que o Pará tem até uma rixa com a gente, porque a lambada, que é deles, ficou famosa aqui", afirma Luciano Matos.
A percussão tornou-se tão importante no estilo que os próprios artistas começaram a incorporar, em sua forma de escrever e de cantar, sons que imitavam instrumentos como o timbal.
"(A letra do Olodum) 'Avisa lá que eu vou chegar mais tarde, oh yeah / Vou me juntar ao Olodum que é da alegria' é bem rítmica, é quase uma percussão feita com a letra da música e com a voz. Isso é algo bem próprio da música de Salvador", explica Mercury.
Nos anos 1980, o termo "axé music" foi criado, com cunho pejorativo, pelo crítico Hagamenon Brito. Mas acabou sendo adotado por produtores e artistas.
"Depois daí surgiu o que se chama de axé, com uma linguagem mais pop e de refrão fácil de decorar", disse Luciano Matos.
Basta lembrar as músicas mais famosas de Ivete Sangalo, Chiclete com Banana e Asa de Águia, com muitas exclamações e refrões que falam de amor e, claro, de seguir os trios elétricos no Carnaval.