Cho Nam-Joo: 'O mundo muda quando a mulher tem mais voz ativa'
Autora fala ao 'Estadão' sobre seu livro 'Kim Jiyoung, Nascida em 1982'
Cho Nam-Joo era roteirista de TV quando precisou largar o emprego para se tornar dona de casa depois do nascimento do filho. Inconformada com a posição secundária de muitas mulheres sul-coreanas, ela fez várias pesquisas para escrever Kim Jiyoung, Nascida em 1982 (Intrínseca), obra que teve grande impacto nos debates sobre desigualdade e discriminação de gênero na Coreia, mas também repercutiu fora, traduzida para 18 idiomas e com mais de um milhão de exemplares vendidos no mundo.
O livro é narrado pelo psiquiatra de Kim, que passa a apresentar sintomas estranhos depois de obrigada a deixar o emprego para cuidar da filha recém-nascida: ela personifica vozes de outras mulheres, vivas e mortas. Ao rever a própria vida, Kim percebe que sempre foi vigiada pelos homens ao redor, desde o pai e o irmão até colegas do trabalho.
Sobre a denúncia que faz sobre o machismo estrutural, Cho, de 44 anos, respondeu por e-mail as seguintes questões, que foram traduzidas do coreano por Yun Jung Im, coordenadora do Curso de Língua e Literatura da USP.
O livro foi publicado em 2016 e, desde então, surgiram importantes movimentos como o #MeToo, também fundamental para inspirar uma nova onda de ativismo. Você notou mudanças concretas na condição feminina desde então? Mudaria alguma coisa no seu livro se o escrevesse hoje?
Depois que o livro foi publicado, surgiram documentários de TV abordando a vida e as preocupações das mulheres da década de 1980, além de relatórios analisando a situação do trabalho feminino das nascidas em 1982. A promotora Seo Ji-hyeon também citou o livro quando veio a público denunciar os abusos que sofreu dentro da instituição em que trabalhava. Houve até a apresentação de um projeto de lei intitulado "Lei Kim Jiyoung". Com certeza, meu livro deve ter servido de mote para essas coisas, mas creio que são acontecimentos que teriam vindo à tona independentemente dele. Hoje, penso que Kim Jiyoung, Nascida em 1982 surgiu em meio a uma onda de transformações daquele período, o que foi algo muito bem-vindo e do qual me orgulho, pois foram mudanças justas e necessárias. E, depois disso, continuei contando histórias sobre mulheres. Escrevi um livro falando sobre profissionais que haviam sido demitidas, mães no mercado de trabalho, estudantes de ensino médio que participaram das Passeatas com Velas (parte do movimento #MeToo, em que as pessoas carregavam velas acesas), mulheres que fizeram denúncias na onda do #MeToo, enfim, mulheres que enfrentam algum tipo de preconceito ou violência social. Também escrevi um romance sobre a adolescência em uma sociedade cuja educação é extremamente competitiva e com um sistema de ingresso em universidades demasiadamente complexo, e outro com reflexões de mulheres de várias idades sobre os significados e valores da vida.
A capa da edição brasileira mostra uma mulher sem rosto, ou seja, o leitor já constata uma alguém cujas emoções não devem ser relevantes - era assim que você e a grande maioria das mulheres coreanas se sentiam em relação à sua colocação na sociedade?
Quando escrevi o livro, minha esperança era que ele desempenhasse o papel de um material de referência. Na época, década de 2010, as mulheres retratadas nos meios de comunicação me pareciam emocionalmente distorcidas e muito orientadas para o consumo. Eu achava que aquilo não era verdade e quis registrar o que julgava ser a verdadeira realidade das mulheres sul-coreanas. Mas a Coreia do Sul mudou bastante desde então. As mulheres mudaram. A ponto de promoverem abaixo-assinados, protestarem abertamente, irem às ruas. Narrativas centradas em mulheres passaram a tomar maior proporção na cultura pop e também na literatura. Alguns homens denunciados pelo #MeToo foram punidos, a criminalização do aborto foi revogada e houve avanços no sentido de punir crimes sexuais. Se até pouco tempo atrás existia uma grande sensação de derrota e de cinismo, atualmente tenho experimentado na pele como o mundo se transforma na medida em que passamos a ter mais voz. Creio que essa experiência e essa certeza não possam ser abaladas facilmente.
Como você se compara a Kim Jiyoung: ela seria um reflexo seu ou uma projeção do que você gostaria de ser? Por que?
Não há nenhum episódio do livro que reproduza a minha experiência ipsis litteris. Planejei as épocas de vida da personagem - nascimento-amadurecimento-trabalho-casamento-maternidade - com base em indicadores estatísticos, e imprimi materialidade a ela com base em dados de pesquisas, entrevistas, artigos e posts na internet sobre a vida das mulheres. Mas, tendo nascido na Coreia do Sul e vivido nela por mais de quarenta anos, tendo também sido filha, estudante, profissional e mãe, não acho que minha vida seja completamente diferente da de Kim Jiyoung. A parte especialmente similar é a da experiência de ruptura na carreira após a maternidade. A realidade que dificulta conciliar filhos e trabalho, o cansaço da maternidade e dos afazeres domésticos, as dificuldades de retornar ao trabalho... Todas essas são situações que experimentei tal e qual minha personagem.
É possível notar que não há vilões masculinos individualizados. Isso acontece porque o problema é provocado por um coletivo?
Independentemente de gênero, não acho que exista um indivíduo concreto infligindo sofrimento à Kim Jiyoung. Ainda assim, ela se sente paralisada como se estivesse diante de uma parede enorme, sem encontrar respostas. Não se trata de um problema individual, mas de um problema estrutural. E havia o meu desejo de que o livro também fosse lido sem rejeição por leitores masculinos. No primeiro rascunho, havia episódios com situações claramente criminosas realizadas por agressores bem definidos, como violência doméstica ou agressão dentro de um relacionamento, mas excluí todos na revisão final. Refutei ao máximo situações e personagens extremos e busquei escrever de forma calma e moderada. O psiquiatra (narrador), mesmo afirmando entender a situação de Kim Jiyoung, não consegue ter empatia com a condição da colega mulher. Quando nos dirigimos aos homens para falar sobre misoginia ou discriminação sexual, é comum ouvirmos coisas como "pense na sua mãe", ou "imagine se fosse sua esposa ou sua filha", mas acho que há uma limitação nesse tipo de abordagem. Não se trata de uma questão de generosidade individual, mas sim de um senso comum e também de legitimidade. Era esse o ponto que eu queria ter tocado.
Seu livro me fez pensar que as mulheres coreanas, diante de tantas limitações, conseguem ainda assim encontrar alegria em coisas pequenas, até insignificantes. É possível determinar o limite entre felicidade e infelicidade? Onde termina uma e começa a outra?
A vida das mulheres não parece fácil em nenhum indicador social. As mulheres foram as mais impactadas no mercado de trabalho com a pandemia da covid-19 e a taxa de suicídio feminino na faixa dos 20 anos também aumentou muito nos últimos anos. Mas, curiosamente, são elas que mais compram ingressos antecipados para exposições e espetáculos. E, especialmente, as mulheres na faixa dos 20 anos demonstram maior participação social, como nas eleições, filiando-se em partidos ou participando de passeatas, do que os homens da mesma faixa etária. As jovens sul-coreanas têm demonstrado visão ampla, movimentam-se de forma pró-ativa e parecem buscar maneiras de coexistir com o mundo de maneira harmônica. Mas é claro que há desilusões durante esse processo. Não é possível traçar uma linha para afirmar que a felicidade vai até tal ponto e que, a partir dali, a infelicidade começa. Na vida, sentimos breves felicidades em meio à infelicidade. Mesmo nos sentindo inseguras de vez em quando, redobramos nossa coragem após cada episódio. Depois das decepções, sempre vêm as pequenas conquistas... Juntos, esses sentimentos e processos formam um cotidiano e uma vida inteira.
As estrelas do K-Pop fazem enorme sucesso mundial, mas a notícia de suicídios de algumas garotas foi, além de chocante, também revelador: o sucesso não é, assim, um caminho para se livrar do peso da tradição?
Penso que há um consenso ao entendermos que, ao mesmo tempo em que esses artistas são "eleitos" pelo público, também são julgados por ele. Não apenas por sua música ou performances, mas também por suas características físicas, seu gestual, tom da fala, expressões faciais, atitudes... Tudo nesses indivíduos se torna objeto de crítica. No caso especialmente das mulheres na indústria do entretenimento, muitas vezes isso leva à mercantilização sexual, assédio, violência cibernética, etc. Ha:tFelt (nome artístico de Park Ye-eun), que integrava a girl group Wonder Girls, foi nomeada conselheira especializada em crimes sexuais virtuais e hoje atua junto ao Ministério da Justiça na Coreia do Sul. Ouvi dizer que seu papel é sugerir melhorias institucionais e novas abordagens aos crimes sexuais praticados na internet com base em sua experiência e nos prejuízos que sofreu ao longo de sua carreira como ídolo. A esse respeito, certa vez ela disse estar buscando "ajudar outras mulheres estando na pele de uma mulher". Essa frase me marcou muito.