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'A prisão é uma sociedade em si', afirma Philippe Lacôte

Em 'Noite de Reis', cineasta explora a paisagem claustrofóbica do presídio La Maca, na Costa do Marfim

31 jul 2021 - 05h11
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Comparado ao Cidade de Deus (2002) nos elogios que colheu em sua estreia internacional, na mostra Orizzonti de Veneza, em 2020, Noite de Reis (La Nuit Des Rois) traz uma cartografia da arte da contação de histórias na África, numa paisagem das mais claustrofóbicas - uma das maiores prisões daquele continente. O filme vai fechar o Festival do Rio 2021 neste sábado em projeções online no site do Telecine: ao longo desse dia 31, será possível assistir ao premiado longa-metragem de Philippe Lacôte, vindo da Costa do Marfim, e conferir a força estética que deu a ele o Prize Amplify Voices, no Festival de Toronto, e a láurea do Júri Jovem do Festival de Roterdã, na Holanda.

Ao longo de 93 minutos, Lacôte vasculha celas e corredores da Maison d'Arrêt et de Correction d'Abidjan, ou La Maca, apelido dado à cadeia com mais casos de superlotação - e brutalidade - em solo marfinense. Quem manda nos presos se chama Dangoro - esse é o nome usado para definir o "xerife" do presídio, o preso que controla os demais. No caso, o líder é Barba Negra, figura monolítica que o ator Steve Tientcheu compõe numa atuação fascinante. É uma figura assustadora, mas que anda abalada fisicamente por uma doença respiratória.

Pela lei de La Maca, a doença em seus pulmões pressupõe que é chegada a hora de ele deixar o posto e cometer haraquiri. Mas, antes de partir, é necessário que ele coordene um ritual, marcado para uma data em que a lua reflete espectros de luz avermelhados, o que dá a esse fenômeno astronômico o nome de Lua de Sangue. Nessa tal lua, um novo preso precisa assumir o papel de narrador oficial da Maca e contar uma lenda que mobilize o coletivo.

Eis que surge um rapaz, Roman (vivido por Bakary Koné), com a habilidade retórica necessária para essa missão, com um áspero histórico pessoal de vivências da miséria. Mas os demais criminosos, que querem ocupar o trono de Barba Negra, não estão contentes com isso, o que gera conflito, mas alimenta a imaginação de Roman.

Na entrevista a seguir, Lacôte - revelado com o documentário Cairo Hours, em 2002, e aclamado em Cannes com o thriller Run (2014), com Isaach De Bankolé - fala como esse "filme de cadeia" dialoga com o legado dos griôs - indivíduos que detêm a memória do grupo e difundem as tradições.

Como você definiria o universo prisional de Maca?

Primeiro, eu diria que a Maca é a maior prisão da Costa do Marfim e uma das maiores da África Ocidental. É uma prisão que foi construída no meio de uma floresta, que nos dá uma dimensão visual singular. Socialmente falando, Maca está repleta de jovens dos dois principais subúrbios da classe trabalhadora da região de Abidjan: Yopougon e Abobo. Estas duas comunas são os bairros mais próximos da prisão. Como todas as prisões do continente africano, a Maca está superlotada. É muito fácil acabar na prisão, na Costa do Marfim, se você não tiver dinheiro. Portanto, são os jovens das classes pobres que acabam parando lá. A partir desses dados sociológicos, Noite de Reis conversa com os códigos dos filmes de prisão, que são um gênero por direito próprio. Ao mesmo tempo em que confio nestes códigos, eu tento me desviar constantemente deles, para ir além. Minha intenção é observar a prisão como sendo uma sociedade em si, com direitos próprios, com seus códigos, suas leis, suas crenças. Foi um modo de mostrar, politicamente, que a prisão é um lugar possível para a criação de narrativas. Um lugar de imaginações.

De que forma a tradição de se contar histórias, da fabulação, mostrada na trama, funciona como metáfora do próprio audiovisual, hoje reinventado a partir das plataformas do streaming?

Para mim, contar histórias não é cinema. Não basta dizer que é cinema. Caso contrário, o cinema não teria aparecido. Teríamos ficado com a narração. O que me interessa é a necessidade irreprimível das sociedades de contar a si mesmas através de mitologias, antigas ou modernas. Noite de Reis defende que o poder da narração de histórias pode superar a violência. A analogia que eu estabeleço com o que está acontecendo hoje na indústria cinematográfica é a apenas a certeza de que seguir uma história é uma experiência que deve permanecer coletiva.

Em todos os festivais por onde passou, 'Noite de Reis' colheu elogios pela fotografia de Tobie Marier Robitaille. Como foi o trabalho para a construção de luz para reproduzir La Maca nas telas?

Tobie Marier Robietaille é canadense. Muito rapidamente, ao entrar no nosso projeto, Tobie veio à Costa do Marfim para ver as locações. Em relação à prisão, eu não queria um filme bonito, não queria que sentíssemos a forte presença de uma câmera, mas que tivéssemos a sensação de estarmos assistindo a um documentário. Queria a sensação real de estar na prisão, esquecendo a noção de filmar. Em termos de luz, procuramos por algo hipnótico. Queria compartilhar a percepção de meu personagem principal, Roman, que é catapultado para esta prisão.

A que tradição cinematográfica você pertence e de que forma 'Noite de Reis' o torna, de certa forma, também um griô?

Eu comecei no cinema como projecionista e, portanto, ele é muito importante como um lugar de desejos e fantasias inesgotáveis. Eu venho da tradição daqueles que acreditam no poder do cinema. Esta crença pode ser encontrada em Glauber Rocha, Fassbinder e Souleymane Cissé, para citar apenas alguns. Eu sou filho de John Woo e Djibril Diop Mambety. Mas não sou um griô, ainda sou um cineasta, alguém que conta histórias humanas com emoções, imagens e sons. Há um tipo de exotismo fácil neste rótulo griô. Esta etiqueta não é necessária. Já existem griôs modernos suficientes.

Estadão
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