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Clarice Lispector tem romance de estreia adaptado em Nova York

'Perto do Coração Selvagem', da companhia The New Stage Theatre Company, dá a largada para comemorações do centenário da escritora dentro e fora do Brasil

5 fev 2020 - 06h11
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Em um espaço muito singular, na rua 106 Oeste, em Nova York, a companhia teatral The New Stage Theatre Company levou para o palco, no fim do ano passado e início deste ano, Near to The Wild Heart (Perto do coração selvagem), uma adaptação do romance homônimo de Clarice Lispector (1920-1977), proposta pela húngara Ildiko Nemeth, fundadora e também diretora do grupo. A adaptação tomou como base a versão do texto de Lispector em inglês, assinada por Alison Entrekin. Assim, já foi dada a largada para as comemorações, dentro e fora do Brasil, do centenário da escritora.

Perto do coração selvagem (1943), romance de estreia de Lispector, conta a vida de Joana, uma personagem que rompe com os padrões do sexo feminino à época (ou, em tempos de retrocesso, de hoje) em uma linguagem experimental que mistura vozes, sons e imagens e lança mão de monólogos interiores que exigem um leitor performático, que ouça e perceba as imagens criadas pelo texto.

O livro inicia com uma série de onomatopeias que representam o som da máquina de escrever e do relógio, além do "chiado" do silêncio. Já no primeiro parágrafo há uma frase que dá uma pista para o leitor, como afirma Marília Librandi, especialista na obra de Lispector: "entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta". Há várias interpretações para "orelha morta", porém ela estaria morta porque apenas ouve, como ato involuntário, os ruídos à sua volta. A protagonista afirma, aliás, que apenas "finge" escutar.

Diferentemente de Joana, o leitor de Lispector precisa estar atento aos "malabarismos" sonoros da escritora para perceber o que "se passa entre as linhas, como a forma e o desenho de uma entonação", diz Librandi. Não é à toa que a epígrafe do Perto do coração selvagem seja uma frase do escritor irlandês James Joyce, outro artista preocupado com o ouvido e cujo último romance foi feito, segundo o autor, para ser lido em voz alta.

A estudiosa brasileira lembra ainda que Clarice faz, explicitamente, uma mistura entre escrita e outras formas de arte, de modo que os olhos também têm que estar abertos. Desse modo, é possível dizer que o teatro seria o habitat natural desse texto de Clarice Lispector.

The New Stage Theatre Company acerta na concepção da montagem de Perto do coração selvagem e dialoga com a estética da escritora ao lançar mão de uma série de tecnologias multimídias que exigem olhos e ouvidos atentos. Assim, há projeção de imagens, gravação de uma voz em off e luzes coloridas que cobrem duas pilastras do palco. Cores fortes ganham destaque, principalmente no figurino masculino, em contraste com os figurinos com cores pálidas da protagonista e da atriz que representa sua mãe ou seu subconsciente.

A montagem é bastante intimista, em uma sala pequena, para pouco mais de vinte pessoas, onde plateia e atores quase se misturam, quase se tocam. Nesse ambiente, nós, na plateia, ouvimos a respiração dos atores e vários detalhes de seus corpos e rostos.

Incomodam um pouco alguns clichês: a atriz que interpreta a tia de Joana, por exemplo, parece uma Carmen Miranda com turbante e maquiagem pesada, além de usar um vestido com estampas de abacaxis. Mas os acertos são grandes e percebe-se que são frutos de estudo e concepção acurados.

Na saída do teatro, Kären Wigen, professora de história japonesa na Universidade de Stanford, comentou algo curioso: "Acho que a Clarice está se tornando a Frida Kahlo brasileira". De fato, Clarice tem despertado cada vez mais a atenção fora do Brasil e vem se transformando numa figura pop, de certa forma, à moda da artista mexicana.

Estadão
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