Como morreu Edgar Allan Poe? Biógrafo consulta até agentes do FBI para desvendar mistério
Mark Dawidziak falou ainda com historiadores, cientistas e médicos para escrever 'Mistery of Misteries'
Com aquele jeitão maldito de dar dó, Edgar Allan Poe, morto em 1849 aos 40 anos, é um dos escritores mais instantaneamente reconhecidos de todos os tempos e o autor americano mais lido no mundo - só. Porém é muito mais: está na gênese de três dos mais fecundos gêneros literários: o policial (seu Auguste Dupin precedeu Sherlock), o neogótico e a ficção científica. Mas Poe transcendeu a literatura e virou um fenômeno cultural, um titã pop.
Os séculos 20 e 21 o viralizaram. Poe rouba a cena na capa do álbum dos Beatles, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. É citado em Just Like Tom Thumb's Blues, de Bob Dylan. Desponta em episódios dos Simpsons. Filmes e séries baseados em Poe são miríades, dos clássicos da Universal dos anos 1930, com Bela Lugosi e Boris Karloff, ao Vincent Price da década de 1960. A Netflix exibiu no fim do ano passado O Pálido Olho Azul (com Christian Bale), e promete para este A Queda da Casa de Usher, dirigido por Mike Flanagan.
TEORIAS. As hipóteses da causa da morte são quilométricas: bebedeira (a Wikipedia cita "delirius tremens"), raiva, tumor cerebral, encefalite, sífilis, suicídio, enfarte, envenenamento por monóxido de carbono, cólera, drogas, apoplexia, cirrose, deficiência enzimática, inflamação meníngea e assassinato (há suspeitos). Como notou um especialista, "temos mais de 22 teorias, e todo ano aparece uma nova".
E não é que saiu nos EUA uma obra que matou a charada? Trata-se de A Mystery of Mysteries: The Death and Life of Edgar Allan Poe, de Mark Dawidziak, que consultou acadêmicos, cientistas, médicos, historiadores, arqueólogos, patologistas forenses, agentes do FBI. Como todas as biografias de Poe, também essa começa não pelo seu nascimento, mas pela sua morte. E segue um conselho dado num conto do autor: "Não acredite em nada do que você ouve, e só em metade do que vê".
Antes de Poe, houve outros autores que morreram de forma excêntrica. Ésquilo, o tragediógrafo grego, foi morto aos 67 anos, quando uma águia deixou cair uma baita tartaruga na cabeça dele. A águia confundiu a calvície de Ésquilo com uma pedra, e tentou usá-la para quebrar o casco da tartaruga. Em 1673, Molière, dramaturgo e ator francês, sofreu um colapso em pleno palco, e expirou pouco depois. O nome da peça? O Doente Imaginário. Mark Twain, nascido em 1835, quando o cometa de Halley visitou a Terra, previu que morreria quando o astro regressasse - não deu outra, em 1910. Aliás, Twain passou a vida desmentindo especulações macabras: "As notícias sobre a minha morte são muito exageradas".
Há dois vilões canônicos na morte de Poe. Um é Rufus Griswold, poeta fajuto, que morria de inveja dele. No dia do funeral de Poe, Griswold assinou um obituário no New York Tribune, em que só faltou dizer que o escritor era Gengis Khan. "Edgar Allan Poe morreu, para tristeza de ninguém." E chamou Poe de imoral, arrogante, desequilibrado, desonesto e patife. De certa forma, deu certo: hoje ele é lembrado porque Poe "mitou". Já naquela época o poeta francês Charles Baudelaire, tiete de Poe, definiu Griswold como "um vampiro pedagógico". E perguntou: "Nos EUA não existe uma lei para manter cães raivosos fora dos cemitérios?".
VILÃO. O segundo vilão é John Moran, o médico residente de 20 anos que cuidou do autor no hospital de Baltimore. Poe agonizou durante quatro dias, e Moran só pisou na bola. Escreveu três relatos, todos discrepantes. Num deles, diz que por seis horas Poe gritou o nome "Reynolds", para em outro laudo nem mencionar a questão, e só comentar casualmente que Reynolds era uma família vizinha do hospital. Deu diferentes versões das últimas palavras de Poe, não fez autópsia nem emitiu atestado de óbito. E passou a descolar uma bela graninha promovendo palestras sobre o episódio.
Uma das hipóteses mais mirabolantes é de que Poe, que chegou a Baltimore no dia de eleições federais e estaduais, tenha sido vítima de "cooping". Na cidade, facções políticas sequestravam transeuntes, drogavam-nos e arrastavam-nos pelas seções eleitorais, trocando suas roupas entre elas, para fraudarem votos nos respectivos candidatos. Isso explicaria as roupas anômalas que o escritor usava.
Dawidziak desconstrói a caricatura a que Poe foi reduzido: "Somos irresistivelmente atraídos por como ele morreu, mas é muito mais importante entender como viveu". Poe foi quase sempre confundido com os seus narradores e personagens lúgubres. "O verdadeiro Poe era conhecido como um crítico literário severo, depois um poeta e só depois como autor de contos de horror. Nossa percepção dele inverteu essa ordem." Poe foi o primeiro americano a ganhar a vida como escritor - talvez por isso vegetou quase sempre na pindaíba.
Escreveu inúmeras sátiras e humor, embora hoje ninguém pense nele como um comediante. Poe era espirituoso e sociável, com numerosos amigos (e adorava gatos, que homenageou em O Gato Preto). Sim, a vida dele teve muita sofrência. Foi abandonado pela pai, e sua mãe morreu quando Edgar tinha 3 anos. Sua esposa e prima, Virginia Clem, morreu com 23 anos. E sim, ele afogava as mágoas, mas mais num dedal do que num piscina de álcool - bastavam um ou dois copos para se embriagar. Em sua obra, Poe transfigurou toda essa angústia, dramatizando a natureza do medo e da paranoia - o que também ajuda a explicar a sua popularidade na nossa época vitimizadora e neurótica.
CRIME. Alerta: spoiler em frente. O biógrafo não crava, mas aposta todas as fichas numa assassina, que tinha os meios e a oportunidade para o crime. Ou seja, a tuberculose - uma serial killer que matou os pais e o irmão de Poe, sua mãe adotiva e sua esposa. Uma assassina longeva, cuja presença foi encontrada já em múmias egípcias. Mas uma causa mortis banal para um homem tão ímpar: no tempo de Poe, um em cada sete americanos morria de tuberculose. Por sinal, embora pareça um mal do passado e se diagnosticada precocemente seja curável com antibióticos, a tuberculose continua entre as dez principais causas de morte no mundo (1 milhão de óbitos por ano). Segundo o Ministério da Saúde, só no Brasil são registrados 200 casos por dia.
TUBERCULOSE. Um doença literária, sem dúvida: abreviou a vida de autores como John Keats, Robert Louis Stevenson, Emily Brontë, Anton Chekhov, Franz Kafka, D. H. Lawrence e George Orwell (Manuel Bandeira foi outro famoso tuberculoso, e passou a receita do tango argentino no poema Pneumatórax). Como conclui o biógrafo, depois de ouvir todas aquelas fontes: "Há múltiplos fatores na vida adulta de Poe que minaram seu sistema imunológico e induziram a tuberculose: pobreza, estresse, álcool, moradia precária, poluição ambiental".
A alegação é convincente, mas - como no filme de John Ford, "quando a lenda se torna fato, imprimimos a lenda". É provável que o mito de Poe continue nebuloso e ambíguo, quase como se a obra dele fosse psicografada.
Como ele próprio entregou no conto Shadow: "Vocês que leem ainda estão entre os vivos; mas eu, que escrevo, já parti há muito para a região das sombras". E assim, o corvo poderá continuar a crocitar para sempre o seu mantra do contra: "Nunca mais!" (Never more).
A Mystery of Mysteries: The Death and Life of Edgar Allan Poe
Autor: Mark Dawidziak
Editora: St. Martin's Press
288 págs., US$ 28,99
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R$ 14,99 o e-book