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"Conceição Evaristo é a maior escritora negra do Brasil"

20 nov 2024 - 08h11
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Em entrevista, biógrafa de Conceição Evaristo destaca a complexidade das obras de personalidade que é referência de autoria negra, e sua influência no novo cenário literário brasileiro.A profundidade de uma escrita marcada pela desconstrução de padrões estéticos e morais destinados a pessoas negras, associada a um ativismo baseado na própria existência, faz de Conceição Evaristo uma das maiores escritoras da história do Brasil, na avaliação da jornalista Yasmin Santos, autora do livro Conceição Evaristo: voz insubmissa, lançado em novembro de 2024.

Em entrevista à DW, Santos afirma que a escritora mineira de 77 anos, autora de Canção para ninar menino grande e Insubmissas lágrimas de mulheres, coloca a mulher negra no centro das discussões, algo raro na literatura predominantemente dominada por autores brancos, além de revelar uma realidade social precária, mesmo fugindo ao padrão de uma "alta" literatura.

"Às vezes, sua obra possui uma narrativa que parece muito simples, porque é muito fácil de entender a primeira camada do que ela está escrevendo. Não é uma leitura rebuscada. Mas ali tem uma escolha muito marcada de construir um discurso ancorado na oralidade negra. O ativismo dela aparece quando, sempre no centro da conversa, está a vivência de mulheres negras."

Para a autora, Conceição busca desconstruir a idealização branca de personagens, oferecendo às mulheres negras todas as complexidades e imperfeições que fazem delas pessoas com histórias reais.

"Nós fomos tão mal retratados pela literatura brasileira, tão destituídos de humanidade, que a gente acha que ser restituído de humanidade é ter esse personagem perfeito, muito bom para a sociedade, e não é. Às vezes, os personagens negros de Conceição não conseguem completar esse arco da bondade porque nós somos completamente imperfeitos."

DW: Qual é a importância de Conceição Evaristo, a figura central da sua obra, para a literatura brasileira?

Yasmin Santos: Conceição Evaristo é não só a maior escritora negra do país, como também uma das maiores escritoras brasileiras da história, mas que acaba tendo um reconhecimento tardio na sua carreira.

Conceição é muito devota do trabalho de Maria Firmina dos Reis, lá no século 19, que é a primeira escritora mulher brasileira, e que era negra; e também de Carolina Maria de Jesus, de quem ela defende honrosamente que Carolina fundou uma corrente literária com Quarto de Despejo.

Ela escreve romances, ensaios, poesias, contos, então consegue versar em diferentes gêneros da ficção e da não-ficção, além de ser essa intelectual pública que está sempre presente, não só para falar de literatura, mas também de política, de arte de forma geral, pensa muito o que é o Brasil e que país queremos construir.

De que maneira sua própria experiência como jornalista e escritora foi impactada por essa influência?

Eu devia ter uns 17 para 18 anos, quando estava na faculdade ainda, e o primeiro livro dela que eu li foi Olhos d'água, uma obra de contos, que foi muito impactante para mim, porque eu nunca tinha visto tantos personagens negros de diferentes faixas etárias, de diferentes orientações sexuais, com diferentes origens, retratados em um livro. Então, para mim, ler aquilo foi quase uma revolução.

Então, Conceição ocupa esse lugar de uma espécie de re-encanto pela literatura brasileira, pela literatura contemporânea, afrodiaspórica, assim, na minha vida.

Em sua análise da vida e da obra de Conceição Evaristo, como percebe a relação entre literatura e ativismo no trabalho da escritora? E de que forma Evaristo consegue dar voz a experiências de luta e sobrevivência, sem cair em simplificações ou estereótipos?

É indissociável o ativismo de Conceição da literatura dela. Ela sempre fala que o olhar dela, a escrita dela, está muito contaminada por sua vivência como uma mulher negra.

Às vezes, sua obra possui uma narrativa que parece muito simples porque é muito fácil de entender a primeira camada do que ela está escrevendo. Não é uma leitura rebuscada. Mas ali tem uma escolha muito marcada de construir um discurso ancorado na oralidade negra. O ativismo dela aparece quando, sempre no centro da conversa, está a vivência de mulheres negras.

Conceição faz uma coisa, por exemplo, que devolve a maternidade às mulheres negras. Porque se a gente entende o contexto, não só na literatura, as mulheres negras não eram mães. Davam à luz os filhos, mas não podiam criar os seus próprios, não podiam ter afeto por esses filhos.

Então tem esse racismo extremo, mas ao mesmo tempo a população negra ao longo dos séculos conseguiu imprimir a sua identidade dentro de tudo que a gente entende de brasilidade. E Conceição provoca isso tanto na sua carreira acadêmica, que é menos conhecida, quanto nos livros. Na hora de construir um personagem, ela traz o que quer dizer politicamente com uma história, sem perder a poética tão conhecida da literatura dela.

Você afirma que os papéis femininos desempenham um dos arquétipos mais poderosos da literatura, e Conceição, por sua vez, busca desconstruir a idealização branca dessa figura. Pode nos falar mais sobre isso?

Nós fomos tão mal retratados pela literatura brasileira, tão destituídos de humanidade, que a gente acha que ser restituído de humanidade é ter esse personagem perfeito, muito bom para a sociedade, e não é. Às vezes os personagens negros de Conceição não conseguem completar esse arco da bondade, porque nós somos completamente imperfeitos.

Numa obra, existe a figura de uma mãe que tem uma relação complicada com o filho dela que, quando a nora engravidou, faz de tudo para essa nora perder o filho. Então, ela retrata uma violência terrível ali, mas é algo que na cabeça daquela mãe faz sentido. Ela não é uma vilã, ela não é vilanizada, mas há um contexto em que você consegue entender os traumas dessas personagens. A literatura de Conceição é muito polifônica.

E eu acho que tem um elemento na literatura dela que perpassa os contos, perpassa também os romances, perpassa a poesia, que é o elemento erótico. E a gente tem nas mulheres negras esse lugar da hipersexualização. Então é muito difícil pensar que uma mulher negra ativista está construindo uma literatura e decide usar o erótico ali, dentro da sua literatura, de uma forma que não reforce o papel dessa visão de hipersexualização da mulher negra.

Como você acredita que o legado de Evaristo tem influenciado as novas gerações de escritoras e escritores no Brasil?

Há uma discussão sobre se os novos escritores, como Itamar Vieira Júnior, por exemplo, e mesmo a escrita de Conceição, são identitários. A gente sempre foi ensinado que existia uma literatura universal que era branca. E quando a gente aprende, entende que Machado de Assis era negro, por exemplo, abre-se uma nova chave de leitura para a própria literatura dele.

Conceição provoca e diz que se tem uma literatura universal, é o que ela faz, porque consegue dialogar com diferentes grupos. O projeto de país e também da literatura negra é um projeto em que ninguém fica de fora pois aprendemos ao longo dos séculos a trazer elementos da cultura branca, do cristianismo, mesmo que impostos, sem deixar ninguém de fora, e que dialoga com o Brasil como um todo e de diferentes facetas.

Esse seja talvez o principal legado dela: mostrar na própria literatura uma coisa que ocorre no campo político, no ativismo de várias organizações negras. Então ela diz que se tem uma literatura universal, é essa que ela faz, que o Itamar Vieira Júnior faz, que a Eliana Alves Cruz ou a Luciany Aparecida fazem. Essa é a literatura que os escritores negros de diferentes regiões do Brasil fazem, e que agora recebem o devido destaque.

Deutsche Welle A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas.
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