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Distantes dos pacientes, Doutores da Alegria levam a interação com as crianças para o mundo virtual

Com uma história de três décadas, a ONG Doutores da Alegria se reinventa para levar conforto às crianças em tratamento de saúde durante a pandemia do coronavírus

14 jun 2020 - 11h21
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Depois de mais de um milhão e meio de intervenções em hospitais ao longo de três décadas, a ONG Doutores da Alegria se reinventou para continuar despertando sorrisos em crianças durante a quarentena. O grupo de 72 palhaços, que atua em São Paulo, Rio e Recife, estreou o Delivery Besteirológico, uma série de mais de 40 vídeos curtos feitos em casa e publicados no YouTube e grupos do WhatsApp.

As gravações incluem brincadeiras e formas lúdicas de explicar para os pequenos a importância de se proteger do novo coronavírus, lavando as mãos, usando máscara e passando álcool em gel. Segundo o diretor artístico Ronaldo Aguiar, que se transforma no palhaço Dr. Charlito, essa é uma forma de continuar garantindo às crianças internadas o acesso à cultura e ao brincar.

"As brinquedotecas estão fechadas por causa da pandemia do coronavírus e isso nos preocupa, porque a humanização ressignifica os hospitais desde a década de 1990. Esses lugares viraram espaços de brincadeira também", explica ele, que trabalha na Doutores de Alegria há 17 anos. "Agora, o foco é entreter as crianças pela internet para assegurar a elas o direito à infância", completa.

A ideia vem surtindo efeito: segundo Aguiar, os vídeos já tiveram mais de 59 mil interações e 3,5 milhões de visualizações desde o início do isolamento. Sarah Martins, de 5 anos, é uma das que se divertem com as palhaçadas. A menina está internada com leucemia linfóide aguda no Instituto de Tratamento do Câncer Infantil (Itaci), em São Paulo, e não recebe visitas desde abril por ser do grupo de risco da covid-19, devido à baixa imunidade. Assim, uma das formas de ela amenizar a falta da família e o tédio é rindo com os Doutores da Alegria.

"Eu vim para cá porque fiquei com um bichinho no sangue. Quando recebo coisa para brincar, sinto muita felicidade", diz a menina. "Ela se diverte. É muito importante que os palhaços continuem levando felicidade para as crianças, porque a atmosfera (do hospital) é muito pesada. Mesmo a distância, eles conseguem transmitir calma e paz", diz a mãe, Ariane Martins, que se isola no hospital com a filha desde o começo da quarentena para evitar o risco de contágio pelo coronavírus.

Além do Delivery, os Doutores da Alegria começaram há pouco tempo o projeto piloto Consultório Besteirológico Online, no qual o palhaço faz chamadas de vídeo ao vivo para os pacientes. Fora isso, a ONG está preparando para este mês a festa virtual São Joãozinho, improvisando em casa barracas de quermesse para brincadeiras juninas online.

"Antes fazíamos isso presencialmente. Agora, vamos nos reinventar para que a criançada, mesmo internada e no meio da pandemia, não esqueça do contexto cultural do nosso País", explica Ronaldo Aguiar.

Mensagem e cultura. O alto-astral dos palhaços não é apenas para animar pacientes diante de um momento difícil. Por trás de cada artista fantasiado existe um cidadão sonhador e preocupado em formar uma criança sensível à arte, sem que os problemas de saúde a impeçam de ter acesso à cultura que existe fora do hospital.

"Quando a criança brinca de presidente, médico, rei, ela cria perspectivas futuras e um leque de possibilidades na vida dela. A criança em contato com a arte deixa de ser limitada. Ela se projeta para além da situação que está vivendo. Então é importante que isso chegue na área da saúde, assim como chega nas escolas", analisa Aguiar.

Nesse sentido, o diretor artístico explica que os doutores atuam exclusivamente em hospitais públicos, com famílias mais pobres. "Na maioria das vezes, trabalhamos com pacientes que nunca tiveram acesso a alimentação e educação de qualidade, então muda muito o formato do discurso da criança na brincadeira. Muitas delas têm o primeiro contato com a arte quando são internadas no hospital. Então o nosso trabalho se faz necessário, mesmo que a distância."

Hospitais criam kits para manter a brincadeira de crianças

Quem passa hoje pela brinquedoteca do Instituto de Tratamento do Câncer Infantil (Itaci) não encontra mais crianças se divertindo. A sala, onde eles podiam esquecer das dores da quimioterapia, se tornou um lugar silencioso, de luzes apagadas. Mas, enquanto o isolamento perdurar, isso não será um empecilho para os profissionais da saúde: o calor dos sorrisos escondidos por trás das máscaras foi trocado pela empatia do olhar.

Como não pode mais frequentar a brinquedoteca, Sarah Martins, de 5 anos, se contenta em passar o dia pintando, brincando de boneca e vendo vídeos no quarto, onde passa a maior parte do tempo sob uma maca. As atividades fazem parte dos kits recreativos entregues aos pacientes toda semana pela equipe médica, a fim de preservar a saúde mental das crianças e dos acompanhantes.

Segundo a terapeuta ocupacional que integra o projeto, Mariana Franco, se não fosse a iniciativa, as cerca de 30 crianças internadas no Itaci não teriam o direito de brincar durante o isolamento. "Organizamos os materiais higienizados para evitar o risco de contágio, pensando na questão lúdica e no desenvolvimento cognitivo delas, de acordo com faixa etária e questões intelectuais."

Lucas Padela, de 15 anos, é um dos que sentem a importância desse trabalho. Portador do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), está internado há oito meses com linfoma de Burkitt - câncer linfático com forte poder de propagação pelo corpo - e não recebe visitas desde o início da quarentena. "Sinto saudade da minha mãe, Sandra. Sinto falta de voltar para casa e ouvir a voz dela", diz. Como ela trabalha em horários fixos, quem fica com ele é o pai, o autônomo Donizette Voga.

O adolescente teve ainda de passar semanas sem andar devido a um acesso venoso no pé, feito em decorrência da dificuldade de encontrar veias no seu braço. "Os dias estão chatos. Fico aqui deitado, mas feliz quando trazem brinquedos." Donizette também sente os efeitos positivos dos kits. "Ficar trancado no quarto durante uma guerra contra o câncer é difícil. Mas não nos intimida. Nosso único medo é sentir medo. Não temos medo. Nos apoiamos na fé e no trabalho humanizado do hospital para seguir em frente."

A psicóloga do Itaci, Juliana Gonzalez, analisa que cada paciente lida de uma forma diferente com a pandemia. Aqueles que são mais sensíveis ao câncer, emocionalmente falando, ficam mais angustiados no dia a dia; outros confundem o isolamento com abandono. "Depende da vivência de cada um. Tem criança que sente mais dificuldade de entender o motivo de não poder encontrar os parentes."

Atualização: com a recente flexibilização da quarentena, os pacientes entrevistados foram autorizados, em junho, a passar um fim de semana em casa para depois voltarem ao hospital.

Estadão
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