Cannes 2021 - Primeira semana entre ativismo e o glamour
Do tapete vermelho com celebridades sem máscara à estreia de Stillwater, e lágrimas de Matt Damon, passando pela polêmica coletiva do júri
Dúvida era a palavra quando se pensava na edição 2021 do Festival de Cannes, que ocorre até o próximo sábado. Depois de cancelar a edição 2020 por conta da pandemia, a direção do maior festival de cinema do mundo decidiu realizar o evento neste ano, mesmo ainda em meio a tantos receios por conta das novas variantes da Covid 19 que circulam não só pela Europa mas pelo mundo.
Mas tudo corre bem em Cannes e, como assegurou a mesma direção do evento, poucos casos de Covid têm sido detectados pelos postos de exame que coletam a saliva dos que estão na cidade da Riviera francesa nesta quinzena.
Ainda assim, é estranho, ao menos para brasileiros, ver o desfile de celebridades pelo tapete vermelho. Mesmo com os certificados de vacina em dia ou os exames de PCR negativos em mãos, ver pessoas aglomerando sem máscara ainda é algo que nos causa um certo desconforto.
Dito isso, vamos aos filmes. Começamos pela semana passada, com os primeiros filmes exibidos em competição. E começamos por Lingui, de Mahamat-Saleh Haroun, o quarto filme africano a concorrer à Palma de Ouro, que já passou por São Paulo há alguns anos como convidado da Mostra de Cinema de São Paulo.
O longa conta a história de uma mãe e sua filha que vivem em uma pequena vila no interior do Chade. Quando a menina de 15 anos engravida, é expulsa da escola e vê seus direitos de escolha serem tolhidos por uma sociedade conservadora e machista. A trama de Lingui trata do direito ao aborto, mas, mais que isso, trata também dos direitos da mulher em um mundo contemporâneo que avança, mas que ainda segue a passos muito lentos em algumas regiões do mundo.
Muito mais que eutanásia
Já Tout S’Est Bien Passé, de François Ozon, que concorre à Palma pela quarta vez na carreira, traz a questão de um outro direito que é negado na grande maioria dos países a seus cidadãos: o de decidir a forma e a hora de morrer. No filme, protagonizado por André (vivido por André Dussollier), um velho pai de família sofre um derrame e, debilitado, pede ajuda da filha, ( Sophie Marceau) para praticar a eutanária. A partir daí, começa uma dinâmica intrincada de relações de família e os direitos de cada um decidir sobre como quer deixar de viver.
“Não acho que o filme em si seja a favor ou contra. Ele mostra ao público histórias muito pessoais e cada um tem de lidar com suas próprias questões sobre a vida e a morte. Foi isso que me interessou. De forma alguma eu tentei passar nenhuma mensagem política. Eu só coloquei as questões em pauta. E cabe a cada espectador decidir sobre o que eles fariam em cada situação. Pessoalmente, não sei o que eu faria. Não sei se teria a coragem de Emanuel e Pascal. Enquanto você não é confrontado por esta situação é difícil responder o que você faria”, afirmou Ozon durante a coletiva de imprensa do filme.
Trailer de "Jane par Charlotte", exibido fora de competição
Tudo sobre minha mãe
Quem também investiga seus assuntos particulares de família é Charlotte Gainsbourg em Jane par Charlotte, ou Jane por Charlotte, que integra a seleção não competitiva de Cannes este ano.
Retrato íntimo que a atriz de filmes como “Anticristo” faz de sua mãe, Jane Birkin, diva da cultura pop francesa. Em questão, não só os prós e contras de ser filha de dois ícones, a atriz e o cantor Serge Gainsbourg, mas também a relação com a mãe, suas inseguranças e a vontade de não aprender a viver longe da mãe, mas sim de aprender a conviver com o mito e a mãe real.
Em matéria de mito, Velvet Underground trouxe a lenda para a Croisette. Todd Haynes (de “Carol”) levou para Cannes um documentário sobre a banda que revolucionou a história da música. Surprendeu a todos pela riqueza de material de arquivo, imagens inéditas de shows (de tempos em que a música não era algo ultra documentado a todo momento), registros feitos por Andy Warhol e entrevistas.
Matt Damon foi às lágrimas
Em matéria de badalação e emoção, a première de Stillwater só perdeu mesmo para French Dispatch, de Wes Anderson. O longa dirigido por Tom McCarthy e estrelado Matt Damon faz parte da lista de filmes mais palatáveis ao grande público, que não entram na competição oficial mas garantem aquele tapete vermelho vistoso e aquelas pré-estreias mundiais cheias de glamour.
Rodado em Marselha com equipe norte-americana e francesa, Stillwater conta a história de um pai (Matt Damon) obcecado pela ideia provar a inocência da filha, presa na França sob a acusação de ter matado a namorada. Receita de fato perfeita para garantir momentos memoráveis, com plateia cheia de membros da equipe, emocionados com a estreia “em casa” e, e o grande astro emocionado ao final da sessão. Damon foi às lágrimas com os tantos minutos de aplausos e se disse feliz em fazer seu “primeiro europeu” ao lado da atriz Camille Cottin.
“Foi incrível. Marselha é um personagem imenso no filme, os atores que a gente conheceu lá, as pessoas, a equipe... Foi um filme francês E pela situação dos filmes nos Estados Unidos, é o que queríamos fazer”, afirmou o ator.
Coletiva do júri à altura de Spike Lee
Se nesta edição temos Spike Lee presidindo o júri, sabíamos que perguntas sobre política, ativismo viriam. Ainda que o júri não possa conceder entrevistas durante o festival, a coletiva do júri no primeiro dia de festival rendeu assunto para toda a semana e para a posteridade.
Uma jornalista da Geórgia pediu a palavra para denunciar um caso de violência de grupos extremistas (bancados, entre outras fontes, por verba da Rússia, segundo ela) que agrediram jornalistas que cobriam uma ação da semana do orgulho LGBTQA em seu país.
Ela perguntou aos jurados sobre como se manter ativo e resistir contra as injustiças do mundo. O mediador da coletiva passou a bola para Kleber Mendonça Filho, afinal é um desafio e um ato de resitência fazer cinema no Brasil de hoje. O diretor brasileiro defendeu a Cinemateca Brasileira” “No Brasil, atingimos a marca de 500 mil mortos pela pandemia Covid 19. Sabemos, por dados técnicos, que se o governo tivesse agido corretamente, 350 mil pessoas teria sido salvas. Então, acho que uma forma de resistir é compartilhar informação, falar, discutir. Interessante porque eu poderia mencionar o que está acontecendo com a Cinemateca Brasileira. A Cinemateca está fechada há mais de um ano. 90 mil títulos, 230 mil rolos de filme e fitas de TV. Todos os técnicos e especialistas foram demitidos. E esta é uma demonstração muito clara de desprezo pela cultura e pelo cinema. E acho que eu devia falar disso porque estamos no Festival de Cannes e todos amamos o cinema aqui. E penso que este é um templo da memória e da preservação. Então, alguns dos meus amigos não brasileiros perguntam “O que podemos fazer? “ E eu digo “fale disso, discuta, fale sobre isso, fale sobre isso no seu podcast. Talvez ligue para algumas pessoas do governo e questione “por que você está fazendo isso? Então eu acho que devia mencionar isso."
Spike Lee não deixou por menos e acrescentou: “Queria te agradecer por ter compartilhado a informação. Eu não acho que eu seja o único a não saber sobre a situação na Georgia. E este mundo é comandado por gângsters. O “agente laranja”, o cara dele no Brasil e o Putin. É isso. Eles são gângsters. E eles vão fazer o que quiserem. Eles não têm moral, não tem escrúpulos. Este é o mundo em que vivemos. E temos de falar contra gângsters como esses”
De fato, se o mundo é governado por gângsters, o cinema está aí e em Cannes diposto a equilibrar os merecidos deslifes no tapete vermelho com o ativismo e a responsabilidade cultural e social que detém. Como afirmou Matt Diop, cineasta franco-senegalesa que também integra o júri este ano, o cinema sempre foi potente arma para se lutar contra as injustiças do mundo.