Cannes: Curtas brasileiros disputam Palma de Ouro
"Sideral", de Carlos Segundo, e "Céu de Agosto", de Jasmin Tenucci, integram seleção oficial do festival este ano e estreiam nesta sexta
O Festival de Cannes entra em sua reta final e exibe nesta sexta-feira os curtas-metragens que disputam a Palma de Ouro desta edição. E o cinema brasileiro tem dois representantes na competição oficial: “Sideral”, de Carlos Segundo, e “Céu de Agosto”, de Jasmin Tenucci.
Mesmo completamente diferentes, ambos os filmes têm como pontos de intersecção o fato de trazerem narrativas que fogem do comum, olhar atento para a sociedade brasileira, além de personagens femininas fortes.
Do Rio Grande do Norte, chega “Sideral”, uma coprodução entre Brasil e França dirigida por Carlos Segundo. A trama se passa no futuro, na ocasião do lançamento do primeiro foguete tripulado brasileiro na base aérea de Natal. O fato histórico afeta diretamente a vida de Marcela, faxineira da base aérea, que toma uma decisão que muda completamente a rotina de seu marido e seus dois filhos.
Transitando entre a ficção científica, com ingredientes fantásticos e também realistas, com um humor muito particular, além de refletir sobre a condição da mulher no Brasil contemporâneo.
“Chegar em Cannes é um acontecimento. Meus quatro filmes dois estrearam em Clermont Ferrant, dois no FIDMarseille. Tinha uma expectativa que em algum momento podia chegar em Veneza, Cannes... Estar em Cannes ao lado de dez curtas tem sua responsabilidade, mas tem lugar de deleite. Tirar este peso das costas. Estar em pé de igualdade. É uma responsabilidade certeza de trabalho bem acabado e bem resolvido. Estamos representando o Brasil e o Rio Grande do Norte de uma forma muito bonita, muito potente", comenta o diretor.
Sobre as escolhas e sua linguagem, Segundo comentou: “Nos meus trabalhos, tento construir um lugar que está no limite do impossível e o possível. No sentido da realidade e como ela pode ser retrabalhada e potencializada neste limite do quase impossível. “Sideral”, “Fendas” ( primeiro longa do diretor) tem, “De vez em quando eu ardo” (curta) também tem. Nestes últimos trabalhos meus, o universo feminino foi um universo que eu busquei encontrar. Eu como diretor cis hétero homem, buscar este novo momento do homem em relação ao universo feminino. Todas as relações que vêm sendo construídas, que vem ganhando cada vez mais força e importânc ia. O filme também está neste lugar de propor e de somar estas discussões. De estar nesta ressonância atual.”
Carlos, que também é professor de cinema na Universidade Federal do Rio Grande do Norte acrescentou: “Sempre uso uma frase do Nietsche para falar de “Sideral”. Ele fala que “liberdade é saber encontrar o melhor momento de encaixar nosso desejo no desejo do acontecimento. Algo pulsa na gente o tempo todo. Mas como não ter medo, como encontrar este momento e, quando encontra-lo, como agir? Não ter medo, avançar, partir, mesmo que seja uma ruptura muito grande... “Sideral” fala um pouco disso, deste lugar do universo feminino, mas também de uma proposição de uma mudança. E como isso pode ecoar no universo masculino.”
Céu de Agosto – O Mal estar geral do que paira no ar do Brasil
“Céu de Agosto” também traz o personagem feminino para o centro da discussão ao narrar a história de Lúcia, uma enfermeira que está grávida e, em um mundo em que o ar está mais do que pesado, começa a se sentir insegura em relação a sua gravidez e temer pela saúde de seu bebê. O momento é de tensão, pois incêndios na Amazônia provocam nuvens estranhas em São Paulo, onde mora, e Lúcia sente o peso não só da atmosfera quanto das relações humanas.
Quem interpreta Lúcia é a atriz também potiguar Badu Morais, em ótima performance. Entre uma ida e outra a uma igreja Neopentecostal, a personagem encontra conforto para dias tão incertos. Jasmin, aliás, se inspirou num fenômeno que de fato ocorreu em São Paulo em agosto de 2019.
“Céu de Agosto” fala de algo que está no ar, de medos impalpáveis, que traduzem um estado de tensão e incertezas do Brasil de hoje.
“É um filme em que a personagem vai sentindo que tem algo no ar e ela vai ficando com medo… O medo vai tomando conta dela. Mas este é um filme anti-medo, o que foi um pouco o que aconteceu comigo… O filme foi inspirado num dia em que o céu ficou escuro, em 2019. A gente nãoo sabia na hora o que tinha acontecido. E a gente soube depois que era por causa dos incêndios na Amazônia. Parecia uma imagem concretizada do que a ente estava sentindo. De repente uma fuligem no céu escuro, uma fuligem se solidificando na nossa frente num Brasil em que estava todo mundo com medo, desesperado”, conta Jasmin.
“E eu andava com muito medo. E este céu escuro, de uma certa maneira, eu escrevi o roteiro um dia depois... Me moveu a produzir. No fundo, foi uma materialização meio terrível que me moveu. E a personagem também se move. Quando ela depara com algo tão maior que ela, que ela não tem controle, ela entra em movimento no filme fisicamente e imageticamente. Mas é um filme, claro, sobre estas coisas que estão no ar... tensões e medos que tem, claro, a ver com a política nos últimos anos do Brasil”, analisou Jasmin.
Sobre a recepção do filme, que no Brasil estreou na Mostra Tiradentes em janeiro, Jasmin tem sentido várias interpretações. “É um filme sobre o que está no ar... Quando veio a pandemia... eu verei agora estreando em Cannes como vai ser recebido. Em Tiradentes, tivemos várias respostas, vários significados. Mas vamos ver como o público internacional vai receber”, comenta a diretora.
Jasmin faz questão de pontuar que “Céu de Agosto” foi filmado antes da pandemia. “A gente filmou o filme antes. E depois da pandemia a gente não sabia como ele ia ser lido, ressignificado... Se ia passar, se ia ter festival online... a estreia internacional dele ser aqui em Cannes é um privilégio enorme... as pessoas reagindo ao vivo... Eu não entrava numa sala de cinema há 15 meses.. muita coisa junto acontecendo. É muito legal.”